Publicado em 14/01/2012
Como mudamos de residência da Gávea para Ipanema e a sede de nossa produtora está instalada agora no Centro da cidade, passei a ser um usuário frequente do metrô carioca. Chego muito mais rápido à Cinelândia do que se fosse de automóvel. E ainda posso, durante a curta viagem, ler confortavelmente o jornal do dia ou um livro cuja leitura esteja como sempre atrasada.
Sempre que viajo para Paris, Nova York ou Londres, uso habitualmente os metrôs dessas cidades, fugindo do caos urbano e de um tráfego de automóveis que está tornando inviáveis todas as grandes metrópoles do mundo, inclusive as nossas. E não estou me referindo apenas ao caso óbvio de São Paulo e Rio de Janeiro, mas também ao engarrafamento permanente em Salvador, Belo Horizonte, Recife e outras capitais.
Imagino que, qualquer dia desses, os carros não poderão mais avançar um milímetro, o engarrafamento total será definitivo, os motoristas abandonarão suas máquinas por inúteis e as ruas das grandes cidades ganharão uma nova presença ornamental, uma serpente metálica a ocupar suas ruas permanentemente.
Quando de manhã saio para a estação terminal de Ipanema, onde pego o trem para a cidade, sigo rota patriótica pela Visconde de Pirajá, homenagem a nobre militar baiano, herói de nossa independência, até a Praça General Osório, outro soldado glorioso, nosso líder na Guerra do Paraguai. Curiosamente, seguindo por aí, só atravesso transversais com referências à Bahia, ruas dedicadas aos que também lutaram pela independência do Brasil naquele estado.
Não que Garcia d'Ávila, Maria Quitéria, Joana Angélica e mesmo o corneteiro em frente ao Bob's não mereçam tal homenagem. Pelo contrário, a pátria lhes deve muito mais do que uma simples placa de rua. Assim como a Vinicius de Moraes, que, não por acaso, se segue aos ilustres baianos, já que em vida foi quase um deles (quem diabos será Farme de Amoedo?).
Mas por que em Ipanema? Que luminosa premonição uniu o bairro de Tom Jobim e da Garota à terra de Dorival Caymmi e Jorge Amado, mesmo que através de nomes de bravos guerreiros?
Talvez Ipanema já estivesse condenada a uma certa baianidade, desde sua criação e divisão em lotes e ruas. Quem sabe não existe em Salvador uma rua chamada Carlinhos de Oliveira e outra Tarso de Castro, embora nenhum dos dois nunca tenha pegado em armas? Por que não consagrar de uma vez a simbiose, inaugurando simultaneamente, aqui e lá, Praças João Gilberto?
A minha primeira boa surpresa, ao chegar pela primeira vez à estação Ipanema, foi descobrir que gente da minha idade não paga a passagem e não precisa nem entrar em fila. Sou o que os americanos chamam gentilmente de senior citizen e como tal me trata o metrô de minha cidade.
O funcionário que me deixa atravessar a roleta é gentil e atencioso, me faz um sinal de que nem preciso mostrar a carteira de identidade. Deve ser porque minha idade já está flagrantemente inscrita em meu rosto. O que me deprime um pouco, claro, mas não deixo o funcionário perceber, sorrio de volta para ele.
Num outro dia, quando volto para casa, no horário de pico em que o vagão já se encontra lotado, uma moça se levanta e me oferece gentilmente seu lugar, com o mesmo sorriso compreensivo do funcionário da roleta. É claro que não aceito, embora agradeça penhorado. Ainda sou capaz de passar uns 20 minutos em pé, para isso faço aeróbica diária, além de pilates e musculação de vez em quando, ora!
Há algo no metrô carioca que faz com que seus usuários, assim que penetram em seus corredores, escadas e vagões, se tornem ordeiros, cavalheiros e gentis. Pode ser que o futuro me desminta, mas por enquanto não tenho para contar um só pequeno acidente que tenha testemunhado, fugindo dessa regra geral. Não importa se os trens estejam lotados ou não, os passageiros se respeitam mutuamente e tentam fazer da viagem algo pelo menos suportável.
Quando Jorge Amado fez 80 anos, fui-lhe prestar minhas homenagens e lhe disse o lugar-comum (no meu caso muito sincero) de que gostaria de chegar à sua idade na forma em que se encontrava. Jorge respondeu de pronto que eu estava enganado, que não havia uma só vantagem em envelhecer. Mais recentemente, fui comemorar outros 80 anos, desta vez do produtor Luiz Carlos Barreto, cuja celebração foi uma pelada de futebol em que o aniversariante foi o melhor em campo.
Mesmo que às vezes me esqueça de praticá-lo, acho que sei o segredo desse estar no mundo em qualquer idade. De Orfeu e Eurídice à mulher de Lot, quem olha para trás vira sempre estátua de sal. E quando olhar para a frente, lembre-se sempre de que enquanto se espera pelo inevitável, o que acaba chegando é o inesperado. Isso está no livro "A soma e o resto", as memórias de Fernando Henrique Cardoso, que li em algumas poucas horas de metrô.
CACÁ DIEGUES é cineasta.
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