O GLOBO -
A Economia do GLOBO abriu, ontem, com uma detalhada reportagem de André Machado sobre a situação dos trabalhadores chineses que produzem nossas traquinalhas eletrônicas. O tablet, seja Apple, seja Samsung, não é feito por robôs. Cada microcomponente é encaixado ali por uma mão em gestos repetitivos, milhares de vezes por dia, às vezes sete dias por semana. Já há registro de que, após dez anos desse tipo de trabalho, teve operário que perdeu a função de suas mãos numa tendinite elevada a níveis desumanos. A vida na China é dura. Devemos nos sentir culpados? Vez por outra, as sweatshops voltam à tona. Na tradução literal, fábrica de suor, o termo em inglês para as fábricas de quase escravidão do Oriente onde, não raro, até crianças trabalham. No centro deste tipo de escândalo já estiveram inúmeras marcas, dentre elas a Nike. Agora é a vez da indústria da tecnologia, Apple à frente. O diário americano "The New York Times" vem publicando uma série de reportagens sobre o assunto, levantando o debate. A equipe do jornal foi inspirada pelo primeiro episódio do ano de "This American Life", o melhor programa de rádio em existência. (É em inglês, mas todos os episódios podem ser ouvidos no endereço thisamericanlife.org.) O editor Ira Glass dedicou uma hora ao depoimento do ator Mike Daisey, que estreia um monólogo, em Nova York, baseado em suas pesquisas na China sobre as fábricas que produzem o equipamento Apple. É uma hora dura de ouvir, mas é também bom jornalismo. Glass leva o ouvinte à depressão para, no fim, trazer Nicholas Kristof que diz: sweatshops não são tão ruins assim. Kristof é um personagem importante. É colunista do "New York Times", especializado em questões sociais no mundo. Um daqueles raros jornalistas que chegou a um ponto tal da carreira que não tem orçamento. Marca quando quer uma viagem para onde desejar e vai. Quase sempre são buracos do mundo. Ele é conhecido pela sensibilidade extrema, pela empatia. Quando diz que sweatshops não são tão ruins assim, a afirmação carrega um peso que choca. Não diz à toa. Sua mulher é chinesa, de uma família que vivia tradicionalmente numa região próxima de Shenzhen. Trata-se da terceira maior cidade da China. São 14 milhões de habitantes. E, 31 anos atrás, era um vilarejo. Foi beatificada por Deng Xiaoping para se tornar uma zona econômica especial e receber as fábricas que se transformariam na locomotiva chinesa. Quem mora lá trabalha na indústria ou quer trabalhar. Antes, viviam no campo. Pode parecer cruel, mas a vida dessa gente toda melhorou muito com a migração do campo para a cidade. Eles têm teto e têm comida. Quando plantavam arroz, nem teto, nem comida eram garantidos. A vida no mundo lá fora é dura. Devemos ter culpa? A vida é dura e bem mais complicada do que a fabricação de um iPad. Porque não basta abrirmos mão de tablets da Apple, celulares Samsung ou computadores Dell. Comecemos pelo Brasil. Estamos bem enquanto o mundo vai mal por quê? Podemos entrar no debate se o responsável é a estabilização econômica do PSDB ou a distribuição de renda do PT, mas a resposta imediata é mais simples. Quem a deu, semana passada, foi o Nobel de economia Joseph Stiglitz, também aqui no GLOBO, em entrevista à Deborah Berlinck. O Brasil vende fortunas em soja e minério de ferro para a China. É o que nos mantém com o pescoço fora da água. Se houver desaceleração econômica por lá, comprarão menos ferro porque haverá menos obras e menos traquinalhas eletrônicas. E nós afundamos. Não somos apenas nós que nos mantemos em pé puxados pelo intenso crescimento chinês. EUA e Europa estão conosco no mesmo barco. E a verdade é que o intenso crescimento chinês é movido a 17 horas por dia de trabalho, exploração sem cerimônia da mão de obra barata de gente muito pobre. Se pararem de crescer, o número de gente muito pobre e com fome vai aumentar no mundo. A China não é comunista. Ela vive o tipo de capitalismo que revoltou Karl Marx na Inglaterra do século XIX. E antes era pior. O iPad não é inocente. Ninguém é. As fábricas chinesas são horríveis. Os chineses que lá trabalham sofrem. E a vida deles era muito pior antes