A pergunta é intrigante: como se explica o fato de um partido que administra oito Estados, detentores de 50% do PIB do País, com uma população de 64,5 milhões de habitantes e um eleitorado correspondente a 47,5% dos eleitores, padecer a maior crise de sua história? O partido é o que empunha a bandeira da social-democracia e adota um tucano como símbolo, o PSDB. A fogueira consome a lenha do partido acumulada ao longo de 23 anos de história. Bombeiros correm para apagar o fogo, alegando tratar-se de um foco de incêndio isolado e devidamente controlado. Essa é a resposta do presidente da sigla, deputado Sérgio Guerra (PE), para quem a tensão entre alas tucanas em São Paulo não indica crise, "nem qualquer quebra de ética", apenas divergências entre correligionários, ao se referir à saída de vereadores do PSDB que entraram no PSD, criado pelo prefeito Gilberto Kassab. A verdade, porém, é que os tucanos nunca se haviam bicado de forma tão violenta quanto nestes tempos de "guerra de guerrilha" entre alas divergentes. A querela assume importância extraordinária por se desenvolver no seio do PSDB paulista, o maior do País, tendo, portanto, reflexos sobre os pleitos de 2012 (municipal) e 2014 (estadual e federal).
Os grupos liderados por José Serra e Geraldo Alckmin há muito se bicam. Serra, ao chegar ao governo em 2006, depois de entregar a Prefeitura ao vice (Kassab), teria desmontado a estrutura do antecessor. E este, disputando a Prefeitura contra Kassab, em 2008, não teria recebido apoio serrista. As duas aves fazem voos paralelos. Ao retomar, agora, o comando da administração paulista, diz-se que Alckmin dá o troco com juros e correção monetária. Apesar de acenos públicos de integração de propósitos, a cisão é evidente. Nem intervenções pontuais do tucano-mor, o ex-presidente Fernando Henrique, conseguem repor a harmonia na sigla, que tem dificuldades para administrar os 44 milhões de votos obtidos no último pleito. O partido da social-democracia parece perdido. Mesmo dominando os dois maiores colégios eleitorais, São Paulo e Minas Gerais, e tendo ainda Paraná e Goiás, dois enclaves fortes, o PSDB atravessa um ciclo de intensa obscuridade, seja por falta de comando, seja por obsolescência de discurso, desmotivação das bases e desunião de grupos. A falta de comando tem que ver com a hegemonia paulista. Para compensar o peso de São Paulo o partido passou a escolher dirigentes do Nordeste, como Tasso Jereissati e Sérgio Guerra. Imaginava-se que a região, que detém perto de 30% do eleitorado nacional, poderia ser contrapeso ao Sudeste, onde os tucanos têm alcançado boas vitórias desde a criação do partido.
O PSDB, porém, não conseguiu equalizar as densidades eleitorais e a "paulistização" tucana virou marca. Ademais, pesa sobre a sigla a insinuação de ter muito cacique e pouco índio. E, ainda, que é distante das bases. Já as mais fortes classes médias, as mais poderosas entidades e os contingentes laborais que vivem em São Paulo se ressentem da falta de um discurso consentâneo com suas expectativas. Que fonte categorizada do partido pode exprimir algo e merecer respeito? Fernando Henrique, sem dúvida. Mas bate o bumbo sozinho. Tentou mostrar o fio da meada ao partido e recebeu escasso apoio. Afinal, qual é a mensagem do PSDB? Ou está ele engolfado pela onda que afoga os partidos social-democratas em todo o mundo?
Vale lembrar que, ao ser concebida, a social-democracia brandia como escopo o estabelecimento do Estado de bem-estar social (baseado na universalização dos direitos sociais e laborais e financiado com políticas fiscais progressistas) e o aumento da capacidade aquisitiva da população. Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendimentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos e regulação de atividades-chave para a expansão econômica. Mas a partir dos anos 70-80 os partidos social-democratas passaram a incorporar princípios neoliberais e estes impregnaram a ideologia dominante da União Europeia. Portanto, a doutrina social-democrata ganhou novos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, transformando suas bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com maior acesso ao capital financeiro. Tony Blair, na Inglaterra, Schroeder e Merkel, na Alemanha, Zapatero, na Espanha, e outros deram efetiva contribuição para moldar a social-democracia com a solda neoliberal.
O Brasil ingressou nessa rota. O ideário dos partidos de esquerda, a partir do PT, arquivou os velhos jargões da sociedade de exploração capitalista, Estado burguês, classe dominante, submissão a interesses do capital financeiro. Hoje, as teias sociais estão sendo bem costuradas, programas de distribuição de renda passaram a frequentar a mesa de todos os núcleos, a ideia de extinguir a miséria continua acesa, mas a receita do "velho socialismo" aparece de forma esporádica e, mesmo assim, sujeita a apupos. Se o PSDB se ressente da ausência de discurso, é porque seu tradicional menu foi repartido por outros comensais. Tocar corneta sobre os buracos da obra governamental - como tem sido prática de partidos de oposição - não tem a mesma significação que a construção de um projeto estruturante para a realidade brasileira. A crise que consome o partido pega parceiros como o DEM. É sabido que os exércitos oposicionistas sofrem a síndrome da atração fatal provocada pelas "tetas do Estado". Moeda forte, economia em expansão, escudo de proteção às beiradas sociais, caixa do Tesouro locupletada funcionam como um buraco negro que atrai as massas que giram ao redor. Poucos resistem ao fabuloso balcão de recompensas do governo. Daí a devastação das frentes de oposição. Por fim, a fragmentação dos partidos e a desunião de atores e parceiros fazem parte de uma política cada vez mais sem graça e plena de desgraças.