O Estado de S.Paulo - 29/05/11
O chiste tem algum fundamento. Cabral inaugurou por estas bandas o toma lá dá cá. Vejam. Dois dias depois do Descobrimento do Brasil, em 24 de abril de 1500, o capitão-mor recebeu os tupinambás em sua caravela. Para causar forte impressão, pôs a vestimenta mais exuberante. Desconfiados, os índios provaram a água e o vinho que lhes foram oferecidos e cuspiram. Não aprovaram o velho líquido barrento, tirado do alforje, nem a bebida com gosto de vinagre. Só tinham olhos para o brilho das roupas e o imenso chapéu de abas para o céu, que dava ao descobridor a feição de deus das matas e das águas. O cacique e seus índios desceram da nau, sem arcos e flechas, mansos e felizes por ganharem os primeiros mimos na simbólica troca que plantou a árvore do fisiologismo em terras tupiniquins. Foi assim que os indígenas, cheios de bugigangas, e o cacique, com um pitoresco chapéu, abriram as páginas de nossa História de cinco séculos, em que tramoias mesclam coisas do Estado com negócios privados. Há poucas dúvidas de que a herança ibérica, carregando a tiracolo o patrimonialismo, tenha salpicado os ciclos históricos com as sementes da corrupção, particularmente na seara das teias criminosas que encobrem maquinações de servidores públicos, mandatários, grupos e indivíduos, todos girando na órbita do Estado.
Dito isto, vamos à assertiva que ganha força neste momento em que mais um episódio assoma no painel da perplexidade nacional: não há governo que não abrigue seu escândalo particular. Nos episódios mais recentes - consultoria do ministro Antônio Palocci com suspeita de favorecimento a terceiros e denúncias de peculato envolvendo servidores da empresa de saneamento de Campinas - o imbróglio gira em torno da linha que estabelece os limites entre legalidade e ilegalidade, a começar pela possibilidade de um detentor de mandato popular realizar serviços de consultoria. Pois bem, legalmente isso é possível. Na atual legislatura, alguns deputados se apresentam como consultores. Mas o servidor público, vale frisar, incluindo o mandatário, deve regrar-se por princípios de probidade e moralidade. É proibido usar o cargo ou a posição para obter vantagens indevidas (sejam econômicas ou até de natureza valorativa/sentimental). O detentor de mandato agrega, na escala do poder, condição mais elevada que a média dos cidadãos, ou seja, tem mais influência nas frentes onde presta, eventualmente, seus serviços. Donde se aduz que a consultoria desenvolvida por um parlamentar obtém, ao menos teoricamente, maior eficácia que a de outras pessoas sem poder de representação.
Agora, não há impedimento a que o mandatário se dedique às demandas de suas bases eleitorais e atenda aos pedidos de grupos que representa. A proibição é de que esse apoio redunde em tráfico de influência, significando o uso do poder para favorecer junto ao Estado os negócios de patrocinadores. Neste ponto, emerge a questão do lobby. Apreciável parcela da representação exerce o lobby, seja pela defesa de interesses de grupos, seja no apoio à causas coletivas patrocinadas por setores da sociedade. Veja-se o Código Florestal, cuja aprovação só foi possível pela força da bancada ruralista. Da mesma forma, a legalização da relação estável de pessoas do mesmo sexo passou pelo corredor de grupos organizados, que acabaram fazendo pressão sobre a Suprema Corte. Há algo de errado nisso? Não. Para deixar as coisas mais transparentes, o sistema de pressão e contrapressão deveria ser escudado por uma norma. A inexistência de legislação sobre lobby abre cortinas de fumaça. Sua prática condiz com o modelo contemporâneo de democracia, cuja configuração contempla núcleos e facções da sociedade.
Trata-se de uma cultura consolidada nos EUA, país cuja fundação se inspirou nos princípios pluralistas dos pais fundadores James Madison, John Jay e Alexander Hamilton. A tradição liberal e de organicidade - bem captada por Alexis de Tocqueville - sublinha a conquista permanente de reivindicações pela sociedade civil. A imbricação entre política e interesses grupais e coletivos tem-se acentuado na moldura das nações. Nos EUA, metade dos deputados e senadores que deixam as Casas parlamentares se torna lobista. De crachá no peito, eles agem dentro da lei, representando tanto os mais claros quanto os mais difusos interesses da sociedade. Os gastos por empresas e grupos de pressão para defender suas causas atingem, hoje, cerca de US$ 3 bilhões por ano. E as agências de lobby em Washington chegam a 35 mil. Já nos países europeus há distinção entre lobbies profissionais - e interesses financeiros - e lobbies da cidadania, sob patrocínio de ONGs e associações. Os avanços nessa área ocorrem ainda na esteira de conceitos como "relações institucionais" e "negócios públicos". A exigência é de que trabalhem com transparência e ética.
Por aqui, como se sabe, o lobby é mascarado. Existe na prática, mas dorme nas gavetas do Congresso, sob o desprezo de alguns que o consideram incompatível com nossa realidade. Visão capenga. Basta contemplar a proliferação de entidades que fazem intermediação social. Portanto, já temos uma base formada. E, por falta da lei, vive-se o paradoxo, caracterizado pela ausência de contrapesos no sistema de pressão. Alguns setores contam com lobbies poderosos em detrimento de outros que ficam à margem do processo. Como pano de fundo, temos uma democracia representativa vivendo uma crise crônica. Partidos mais parecem massas amorfas. As bancadas corporativas, essas, sim, ganham projeção. As doutrinas são nuvens difusas dentro de discursos homogêneos. As bases cedem lugar aos setores organizados. O palco institucional, nessa configuração, sugere o ingresso de novos atores. Sob um lobby legalizado, transparente, ético, imbróglios como o do ministro Palocci deixariam de causar tanto estardalhaço. E a planilha de episódios farsescos não seria tão densa.