O Estado de S.Paulo - 01/05/11
Em algum momento do início de maio a inflação vai ultrapassar o topo da meta, estabelecido em 6,5%. Mais do que isso, para a maior parte dos analistas e para nós, da MB, a alta dos preços vai seguir se acelerando até ultrapassar os 7% na metade do ano. Na verdade, a ultrapassagem do teto de 6,5% surpreendeu a todos, pois ocorreu antes do esperado, que era julho ou agosto.
Antes de prosseguir, gostaria de chamar a atenção para um ponto. Percebemos em várias manifestações uma tentativa de desqualificar a pesquisa Focus, que o Banco Central realiza semanalmente há muitos anos. Nela, mais de uma centena de bancos, analistas e empresas registram suas projeções e expectativas para a inflação e outras variáveis, com acertos e erros médios semelhantes às estimativas do Banco Central, como vários exercícios realizados por diferentes analistas mostraram.
No período recente, a pesquisa certamente estava correta, pois a inflação de fato vem se elevando de forma importante. Neste espaço, eu mesmo venho alertando desde agosto do ano passado (quando a inflação em 12 meses estava em 4,5%) que a inflação iria subir significativamente.
A pesquisa pode ser, sem dúvida, aprimorada, mas o que chama a atenção é a frequente sugestão que as projeções de inflação seriam sempre viesadas para cima, de sorte a influenciar na elevação da taxa de juros, beneficiando o sistema financeiro em detrimento do chamado lado real. Temos aqui uma má aplicação da teoria da conspiração, pois o que faz com que os bancos ganhem dinheiro, mesmo, é uma forte expansão da carteira de empréstimos, com baixa inadimplência, o que só ocorre quando a taxa de juros está caindo, e não se elevando. Basta olhar os dados recentes da relação crédito/PIB.
Voltando ao debate atual, este pode ser entendido a partir dos seguintes elementos:
1. Diagnóstico da inflação atual: desde julho passado, as autoridades insistem em declarar que a inflação brasileira é fruto apenas de uma elevação nos preços internacionais das commodities e apontam a estabilidade da utilização de capacidade produtiva como uma indicação da ausência de pressão da demanda, derivada do aquecimento da economia. Ora, sabe-se que a forte elevação das importações tem substituído em parte a produção nacional; confunde-se aí uma alteração na composição da oferta (via elevação das compras no exterior) com ausência de pressão da demanda. Esta pode ser facilmente vista no mercado de trabalho e em suas consequências, especialmente na forte inflação de serviços, que caminha para ultrapassar os 9% em bases anuais. A pressão dos serviços e a indexação, ainda existente na economia brasileira, junto com os preços de alimentos, petróleo e matérias-primas, explicam o esticão atual da inflação. Neste sentido, perde muita força o argumento, frequentemente utilizado, de que não teremos pressão na oferta, pois o BNDES vem financiando a expansão da capacidade. Ora, o banco faz muitas coisas, mas certamente não eleva a oferta de mão de obra nos volumes exigidos hoje pelo País. O problema, como se sabe, decorre das enormes limitações de nosso sistema educacional.
O diagnóstico das autoridades ainda deixa de observar a evidente modificação nas políticas de formação de preços na economia. Quando a inflação estava mais próxima da meta, o normal para as empresas era utilizar a política de preços como instrumento de competição e de reposicionamento de produtos. De um tempo para cá, o maior objetivo de muitos setores é repassar custos que têm subido muito aceleradamente. Disse-me um executivo de uma grande empresa que tomou um susto ao preparar a primeira versão de seu orçamento, pois todos os principais itens (salários, matérias-primas, logística, energia, etc) haviam subido mais de 8% durante os últimos 12 meses.
Os níveis relativamente elevados dos índices de difusão da inflação (que medem a cada mês quantas categorias de produtos têm se elevado em relação ao total) refletem, a meu juízo, uma piora na questão inflacionária. Tentei apontar neste espaço a impropriedade do diagnóstico das autoridades já em outubro do ano passado, quando concluí minha coluna dizendo que "o Banco Central ainda vai se arrepender amargamente por declarar vitória prematura no quesito inflação" e também em meu artigo no início de fevereiro.
2. Estrutura da política econômica: como se sabe, ela é constituída de três partes - uma proposta de corte de gastos de R$ 50 bilhões, a utilização de medidas macroprudenciais e uma elevação gradual da taxa de juros básica. Com esta estrutura, espera-se uma convergência para a meta de 4,5% em dezembro de 2012.
Existem, entretanto, várias dúvidas quanto à eficácia de tal arranjo. Em primeiro lugar, há poucas evidências de que o ajuste de despesas esteja mesmo sendo feito, como atestam as discussões com o Congresso quanto ao efetivo corte nos chamados restos a pagar. A despesa é mesmo rígida e o inchaço da máquina torna muito difícil qualquer economia significativa no custeio; como não se deseja reduzir o investimento, a meta fiscal fica mais uma vez, e sem surpresa, dependente da elevação de tributos, onde o IOF vai tendo papel crescente.
Em segundo lugar, existem sérias dúvidas quanto à eficiência das medidas macroprudenciais. Este conjunto de medidas, bem ao gosto do Brasil, nada mais é do que um novo nome para uma velha prática, o controle do crédito. Já vi em minha vida profissional várias rodadas destes controles: estes são em geral ultrapassados por novos tipos de operações ou pela reedição de práticas antigas. Por exemplo, cheques pré-datados e leasing não pagam o novo IOF.
O resultado, em geral, é o seguinte: os efeitos dos controles de crédito não só demoram muito a aparecer como também criam distorções. Para funcionar mesmo, só com doses maciças, o que termina com o que não se deseja, que é a redução drástica do crescimento.
3. Consistência de objetivos e expectativas: finalmente, o que fica claro das declarações das autoridades governamentais é que a política econômica atual tem muitos objetivos, sendo muitos deles conflitantes. O governo quer ao mesmo tempo: (I) trazer a inflação para a meta, mas manter o crescimento em 5%; (II) quer reduzir o aumento do consumo, mas manter os gastos com investimento, que, a despeito de seus efeitos positivos sobre a inflação no médio prazo, no curto prazo, implicam em aumento da demanda; (III) quer fazer ajuste fiscal, mas com cortes pequenos nas despesas de custeio e sem aumento nos impostos; (IV) quer controlar o crédito, mas de forma extremamente seletiva; (V) quer ainda evitar uma maior apreciação da taxa de câmbio. Enfim, uma tarefa impossível, cujo efeito na verdade é uma piora no ambiente econômico. Já vimos no passado, no período de alta inflação, que quanto maior a incerteza sobre o desempenho futuro da economia, menor é a eficiência da política monetária, pela maior utilização de mecanismos formais e informais de indexação.
Assim, controlar a inflação exigirá mais esforço e, antes de tudo, a aceitação, por parte das autoridades, de que não será possível controlá-la apenas com medidas pontuais ou de pequena envergadura, que não limitem de fato a expansão da demanda. Neste aspecto, uma política fiscal mais severa seria fundamental.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS