DA VEJA
"Prepare-se o leitor para o sublime encontro entre
um autor anônimo, possivelmente sujo, talvez faminto
e desocupado, e um dos luminares da literatura"
O amor é importante, pombas. No original, não é "pombas". É um palavrão, que também começa com "po". A frase, desenhada com as letras angulosas e sem curvas dos grafiteiros, nas últimas semanas tomou conta de muros, paredes e beiradas de viadutos de São Paulo. Enfim, um grafiteiro inteligente. Ou poético, ou pungente, dependendo do estado de espírito de quem o lê. "O amor é importante, po", de autoria desconhecida, eleva o grafite paulistano da habitual indigência ao nível dos clássicos do ramo produzidos no maio de 1968 francês – "A imaginação no poder", "Seja realista: exija o impossível", "É proibido proibir".
O segredo da frase é a palavrinha que começa com "po" aposta à oração principal. É o que faz que um pensamento banal adquira vísceras e atinja o leitor. "O amor é importante", sozinho, seria uma bobagem. Ocorre que o grafiteiro queria dizer exatamente isso, que o amor é importante. Encontrou um jeito de driblar o lugar-comum ao socorrer-se do palavrão. O palavrão contrapõe-se à pieguice do desabafo sentimental e o redime. A violência do expletivo chulo compensa a moleza do pensamento central. Produz-se o inesperado. E o rabisco na rua alcança o patamar da beleza literária.
Esse mesmo fenômeno de uma expressão secundária, na frase, sobrepor-se ao principal e salvá-la encontra-se em… (em quê? em quem? …prepare-se o leitor para saltar dos clandestinos assaltos aos muros de São Paulo para os textos antológicos da literatura universal) …em Jorge Luis Borges. Não que se queira comparar o desconhecido grafiteiro com o criador do Aleph (ou melhor: é o que se quer, sim; prepare-se o leitor para o sublime encontro entre um autor anônimo, possivelmente sujo, talvez faminto, quase certamente desocupado, cuja diversão é vagar pelas ruas da cidade nas horas vazias da noite, e um dos luminares da literatura do século XX). O recurso empregado em "O amor é importante, po" é o mesmo de dois versos do poema La Luna, de Borges:
"Según se sabe, esta mudable vida
Puede, entre tantas cosas, ser muy bella".
A ideia central, a de que a vida pode ser bela, é simplória como a de que o amor é importante. A maravilha dos versos se deve ao "segundo se sabe" com que se abrem e ao "entre tantas coisas" que precede a qualificação da vida. Eis, de novo, a mágica de componentes secundários da frase – dois, neste caso – tomarem o lugar do principal e o modificarem a ponto de conferir-lhe estatuto de obra de arte. O "segundo se sabe" prepara o espírito para algo já muito repisado, e com isso ameniza a banalidade do que virá a seguir, mas não está aí seu efeito principal. Mais relevante é que se trata de uma expressão marcadamente prosaica, frequente em peças de argumentação, aquelas em que se procura defender um ponto, como um editorial de jornal, uma tese acadêmica ou um arrazoado de advogado. Encontrá-la num poema, a escorar um luminoso momento de encantamento com a vida, produz um contraste da mesma família do palavrão sacado pelo grafiteiro para sublinhar o recado de que o amor é importante.
O "entre tantas coisas" abre ao infinito o leque de feições que pode assumir a vida. Nenhuma surpresa. A vida pode ser bela, mas pode ser muitas outras coisas, feia inclusive. "Vida", como mulher fácil, pode ir com qualquer adjetivo. Mas aí que está. Se a vida pode ser também feia, trágica, cruel, frustrante e dura, além de agradável, surpreendente ou reconfortante, quando nos damos conta de que, "entre tantas coisas", ela pode também ser bela, aí sim é que se torna mais bela ainda. Se Borges tivesse apenas escrito que a vida pode ser bela, que decepção, para um escritor de sua estatura. Seria como se o grafiteiro afirmasse que o amor é importante, e ponto final. Ao escrever que a vida "puede, entre tantas cosas, ser muy bella", ele a torna extraordinariamente bela, ofuscantemente bela.
Se a frase do grafiteiro é digna de Borges, como aqui se procurou demonstrar, a recíproca é verdadeira. Borges é também digno do grafiteiro. Não. Não dá para imaginar o argentino, spray na mão, a esgueirar-se na noite, em busca do muro mais imaculado para aplicar sua marca, isso não. Mesmo porque enxergava mal e podia acidentar-se. Mas dá para imaginar o "Según se sabe, esta mudable vida…" aplicado a um muro, uma parede, uma beirada de viaduto. O efeito seria o mesmo do "O amor é importante, po". O de uma pausa, uma surpresa e um renovador respiro, em meio à selva da cidade.