da Veja
A geopolítica do pop
Artistas exilados, perseguidos por ditaduras, ameaçados pelo terrorismo: a música contemporânea é acossada pelos problemas que conturbam o mundo. Mas o ouvinte às vezes nem percebe isso
Sérgio Martins
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A fama internacional da cantora inglesa de ascendência singalesa M.I.A. se deve ao seu mix festeiro de reggae, música eletrônica e até funk carioca, mas trouxe também um curioso efeito colateral: jovens que de outro modo jamais prestariam atenção às perturbações políticas do obscuro Sri Lanka subitamente tomaram conhecimento das reivindicações da duplamente obscura etnia tâmil por uma nação independente. M.I.A. é filha de um líder dos Tigres da Libertação, violenta organização terrorista que há 26 anos instiga a guerra civil naquele país (e que teria sido finalmente esmagada no mês passado, segundo o governo do Sri Lanka). O apoio de M.I.A. à causa do pai – com quem há muito não tem contato, pois ela voltou ainda criança para a Inglaterra – se dá de forma sutil, como o tigre que rosna no vídeo da canção Bird Flu. Mas isso basta para fazer a informação circular entre ouvintes e fãs. E o caso de M.I.A. não é único. Aberto a artistas de todas as partes do mundo, o pop às vezes chama atenção para conflitos renhidos, mesmo quando as letras não trazem nem sombra de discurseira política ou espírito "engajado". Uma demonstração disso está no mapa que ilustra esta reportagem.
O aspecto, digamos, geopolítico do pop emerge com frequência da biografia de músicos apanhados pelas tempestades da história. É o caso do jazzista Ray Lema, que fez shows no Brasil há duas semanas. Em 1979, o compositor congolês escrevia uma ópera sobre a África quando recebeu uma proposta que classificou de indecorosa. O governo "pedia" que a peça fosse convertida em uma ode ao ditador Mobutu Sese Seko, que governou o Zaire (hoje República Democrática do Congo) entre 1965 e 1997. Lema não topou. "Nunca aceitei dinheiro para louvar os feitos dos governantes", disse a VEJA. A recusa custou caro: o músico foi demitido do cargo de diretor artístico do Balé Nacional do Zaire, seus bens foram confiscados e ele foi proibido de fazer shows por cinco anos. Mas não esperou pelo fim do degredo artístico: aproveitou uma turnê pelos Estados Unidos para se despedir em definitivo da terra natal. "Havia recebido uma licença para ficar três meses fora do país. Estou longe de casa há trinta anos", diz o músico, hoje radicado em Paris.
Roberto Setton |
COMIDA DE LEÃO |
Na Geórgia, o grupo pop Stephane & 3G marcou seu protesto contra a invasão do país pela Rússia, em agosto de 2008, sem fazer propriamente uma canção de protesto. A banda foi proibida de participar do Eurovision, tradicional concurso musical europeu (que neste ano calhou de ser apresentado em Moscou), porque o regulamento proíbe letras de conteúdo político. A crítica estava disfarçada em um trocadilho da música, cantada em inglês: a frase We Don’t Wanna Put In pode ser interpretada como Não Queremos Putin,ou seja, como ataque direto a Vladimir Putin, o todo-poderoso ex-presidente da Rússia. A banda punk cubana Porno Para Ricardo é igualmente bem-humorada, mas mais explícita, em suas estocadas contra a tirania dos irmãos Fidel e Raúl Castro. Seu maior sucesso, El Comandante, também se vale de um trocadilho para satirizar a decrepitude de Fidel: no modo como é berrado pelo guitarrista Gorki Águila, o título revolucionário "Comandante" se desdobra em "Coma Andante". A polícia comunista retaliou: Gorki foi preso em 2008, acusado de "periculosidade social". Acabou liberado, por pressão internacional – mas os shows de sua banda em Havana são eventos clandestinos. "O regime cubano não tolera nenhuma manifestação artística que contrarie sua ideologia. E não aceita o rock, música típica dos Estados Unidos", diz Gorki.
A mesma desconfiança de um governo totalitário em relação às origens americanas do rock assombrou a carreira do Acrassicauda, banda que cometeu a temeridade de fazer thrash metal – vertente mais rápida e pesada do heavy metal – no Iraque de Saddam Hussein. O trio começou suas atividades em 2001, em Bagdá, mas nos dois anos seguintes só conseguiu fazer três apresentações. A invasão liderada pelos Estados Unidos, em 2003, não foi exatamente auspiciosa para a banda: o único lugar que tinha para ensaiar acabou bombardeado. O grupo migrou para Istambul, na Turquia, e virou tema do documentárioHeavy Metal em Bagdá, exibido em 2007. Mais recentemente, mudou-se para os Estados Unidos – onde está finalmente gravando seu primeiro disco.
Ernesto Mastrascusa/AFP |
COMA ANDANTE |
Na vizinha Síria, o grupo instrumental Hewar vem fazendo sua mistura de ritmos árabes e orientais sem ser incomodado pela ditadura. O nome do conjunto quer dizer "diálogo", palavra que resume sua proposta generosa (e ingênua) para as tensões do Oriente Médio. Não por acaso, Kinan Azmeh, clarinetista do Hewar, também participa da Orquestra West-Eastern Divan, regida pelo israelense-argentino Daniel Barenboim, que integra músicos árabes e judeus. "O diálogo é a melhor saída para esses dois povos", entoa Azmeh. Viajar com o suspeito passaporte sírio tem trazido problemas para o músico, que é detido e interrogado nos aeroportos dos Estados Unidos sempre que desembarca para shows no país. O incômodo até virou tema de uma canção, Airports. Mais dramática é a situação de Souad Massi, pop star da Argélia que foi amea-çada pelos fundamentalistas islâmicos apenas porque ousava cantar música romântica e se mostrar como uma mulher independente. Em 1999, ela emigrou para Paris. "Meu país agora é o palco", declarou. Treze anos antes, o cantor de rai (uma espécie de blues argelino) Cheb Khaled também tomou o caminho da França. Fugiu da Argélia depois que seu produtor e outros artistas de rai foram assassinados por grupos fanáticos. A experiência do exílio, como se vê, é comum no colorido mundo do pop. Ray Lema guarda a esperança do retorno. Depois de trinta anos sem pisar no país natal, pretende voltar ao Congo no ano que vem. Mas tomou suas precauções: recrutou um grupo de jornalistas para acompanhá-lo nessa cruzada. "No meu país, quem fica parado vira comida de leão. Eu aprendi como não ser comido", diz.
Os músicos envolvidos em conflitos em todo o mundo
REP. DEM. DO CONGO
Fotos: AFP, Macarena Lobos/Folha Imagem, Divulgação, Juan Arredondo/The New York Times
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