Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 14, 2009

''Aterradora figura'' na Torre de Babel Gaudêncio Torquato

O ESTADO DE S PAULO
Um dos mais sólidos fundamentos - político e ético - do sistema democrático mundial é a liberdade de expressão. Sobre ele versa a primeira das emendas à Constituição americana, de 1791, ao proibir o Congresso de fazer leis para "diminuir a liberdade de expressão ou da imprensa". Consolidava-se, assim, uma visão democrática, cujos princípios básicos foram lançados no século 16, aprofundados no século 17, debatidos amplamente no século 18, aproveitando o movimento iluminista, e finalmente aceitos no século 19, quando John Stuart Mill proclamava em seu famoso ensaio On Liberty: "Se toda a Humanidade, com exceção de uma pessoa, tiver uma certa opinião, e apenas essa pessoa for de opinião contrária, a Humanidade não terá razão em silenciá-la e nem ela o direito de calar a Humanidade." Na esteira desse pensamento se consagrava a ideia de que não há democracia sem meios de comunicação livres. Mais tarde, a partir dos anos 1930, essa base filosófica, que norteou o liberalismo, passou a abrigar a hipótese de que liberdade de imprensa, como a de expressão, implica responsabilidade, não sendo um poder absoluto, impermeável a restrições. Tal escopo, recorrente no seio das democracias, hoje frequenta a agenda nacional, levado pela recente extinção da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Nos países democráticos, os meios de comunicação sujeitam-se a controles estatutários básicos, entre os quais leis destinadas a proteger pessoas e grupos contra a difamação e a pirataria no campo dos direitos autorais, pela preservação de padrões comuns de decência e moralidade e em defesa do Estado contra ações que ameacem sua segurança. Nos EUA, país apontado como ícone do exercício democrático na área da comunicação de massa, o debate clássico põe em evidência duas emendas à Constituição: a primeira, que prescreve liberdade de imprensa, e a sexta, que prega justiça para todos. A discussão com maior eco gira em torno da questão: se a imprensa utiliza de forma absoluta sua liberdade de noticiar e tecer comentários sobre um acusado, pode o julgamento ser correto? Terá o acusado julgamento imparcial? Uma cobertura sem limites de um caso não implica prejulgamento, influenciando o corpo de jurados?

Entre nós, essa abordagem não ganha relevo. Os aspectos mais nevrálgicos por aqui abrigam os crimes contra a honra (difamação, injúria e calúnia) e o direito de resposta para quem se sente injustiçado pelo noticiário. Barbosa Lima Sobrinho, referência maior do jornalismo brasileiro, costumava dizer: "Não sei como enquadrar num Código Penal o direito de resposta, que deve ser fundamental numa lei específica." A fogueira, agora, é acesa pelo STF, que, ao revogar a Lei de Imprensa, teria deixado um vácuo jurídico e dúvidas sobre o cipoal de ações contra jornais e jornalistas espalhadas pelos tribunais: os processos serão extintos ou ficarão sujeitos aos outros códigos? A polêmica se restabelece em torno da indagação: é necessária ou não uma lei de imprensa?

Três grupos juntam argumentos. O primeiro, cujo expoente é o ministro Carlos Ayres Britto, que relatou a ação interposta pelo deputado federal Miro Teixeira, considera desnecessária uma lei de imprensa, sob o argumento de que a Constituição garante direitos e deveres arrolados por aquela "velha senhora de aterradora figura". Como se pode aduzir, o ministro Britto, no afã de defender o ideário democrático, parece ter lapidado seu parecer fazendo a conexão entre a "aterradora figura" e a ditadura militar.

O fato de a Lei de Imprensa ter sido criada em fevereiro de 1967, no governo Castelo Branco, certamente contribuiu para armar o discurso contra tudo o que dela se tenha originado.

O segundo grupo, cujo expoente é o experimentado advogado Manuel Alceu e que reúne entidades jornalísticas em defesa de uma lei, exibe argumentos consistentes. Para ele, os Códigos Civil e Penal e a Constituição não atendem às necessidades da imprensa, particularmente no que concerne ao artigo 27, que versa sobre casos que "não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação". A lei específica arrola hipóteses e realça o caráter da crítica sob o interesse público, faceta que passa ao largo de outros códigos, incluindo a Carta Magna. Para resumir, na ausência de apontamentos diretos, sem curvas, os casos relativos à imprensa ficarão sujeitos ao crivo de juízes de primeira instância. Ora, por mais que se queira enxergar na base do Judiciário compromisso com o lume da justiça, são visíveis as diferenças entre linguagens de juízes de primeira instância, alguns sujeitos a pressões de toda ordem.

O caldeirão começa a esquentar. Se a prova da verdade existia na Lei de Imprensa, no Código Penal ela só existe para a figura da autoridade pública. Qual é o caminho mais direto para resolver o impasse? Eis uma boa discussão.

Já o terceiro grupo defende a autorregulamentação, algo como um código de ética. Para evitar invasões entre o lícito e o ilícito, seria oportuna a adoção de limites éticos à ação da imprensa, sem excluir eventuais responsabilidades jurídicas. O campo ético, subjetivo, é sujeito a chuvas e trovoadas. A fluidez poderia entortar a ferramenta de ajuste ético de comportamentos.

Por último, vale dizer que a sociedade tem o direito de ser informada. Essa é tarefa indelegável dos meios de comunicação. Quando um ente privado ou público - sob o argumento de transparência - decide publicar pela internet as respostas a perguntas que um jornal ou uma revista lhe fazem, antes que estes as divulguem, comete desvio ético. Investe contra um patrimônio jornalístico e desmonta um dos componentes do jornalismo, o furo. Esse é caso da Petrobrás ao veicular num blog as respostas aos questionários de jornais e revistas. Ainda bem que recuou ante a pressão da mídia.

A construção do edifício jurídico da comunicação no Brasil, como se pode aduzir, é uma Torre de Babel. Sobra dissenso e falta bom senso.

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