Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 01, 2009

Livros Os Três Grandes, de Jonathan Fenby

Os senhores do século XX

As limitações pessoais e os erros históricos dos líderes aliados
na II Guerra Mundial são examinados com rigor em um novo
livro sobre o tema. Mas não se perde de vista o fundamental:
o mundo é um lugar melhor porque eles venceram


Nelson Ascher

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Trecho do livro

Até que ponto a vida e a morte de milhões de pessoas, de povos e nações inteiras, dependem, às vezes, das decisões de alguns poucos indivíduos? E, sobretudo nas grandes encruzilhadas históricas, quanto dessas decisões é racional e quanto decorre das excentricidades, para nem falar dos erros e enganos, de cada qual? São perguntas assim que emergem de Os Três Grandes (tradução de Gleuber Vieira; Nova Fronteira; 488 páginas; 89,90 reais), do jornalista e historiador Jonathan Fenby. Ao descrever e esmiuçar as difíceis relações entre Winston Churchill (1874-1965), Josef Stalin (1879-1953) e Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), líderes da Inglaterra, da União Soviética e dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial, o autor penetra nos meandros das discussões, acordos, desacordos, concessões, suspeitas, negociações e trapaças que determinaram os rumos daquela conflagração – e muito do que ainda caracteriza o mundo contemporâneo.

Quando o primeiro-ministro britânico, o autocrata soviético e o presidente americano começaram a trabalhar juntos com o intuito de derrotar militarmente seus rivais, a Alemanha nazista, a Itália fascista, o Japão imperial e outros colaboradores menores, tudo o que, de fato, tinham em comum eram a faixa etária (a meia-idade beirando a velhice), o estado de saúde (geralmente sofrível), a experiência de longas carreiras políticas e um gosto pelo cinema. De resto, eles procediam de meios diferentes, desde o aristocrata hereditário inglês até o self-made man georgiano que, de humilde terrorista provinciano, se transformara em ditador, passando pelo americano que, embora de alta classe média (o único do trio que se formou numa universidade), não deixava de ter seu lado populista. Ademais, descontando seu objetivo consensual, a rendição incondicional do inimigo, cada um tinha uma visão diferente de mundo e metas distintas para o futuro.

Time & Life Pictures/Getty Images
AMIGO AMERICANO
Harry Hopkins (à esq.), conselheiro do presidente Roosevelt, visita o ditador Stalin, em 1941: receptivo demais aos interesses dos futuros inimigos


Churchill, apegado à era vitoriana, desejava preservar o império britânico, que via como o principal pilar de uma ordem internacional civilizada. Stalin, o revolucionário, queria enterrar tudo isso, estendendo ininterruptamente as fronteiras dos próprios domínios. Roosevelt, mais pragmático do que visionário, beneficiara-se da fama (até certo ponto injustificada) de ter salvo seu país da Grande Depressão e, reconhecendo o peso e a importância geopolítica crescentes dos Estados Unidos, pensava igualmente numa nova ordem, só que liberal e pós-colonial. Assim, nas horas mais negras, os três viam também oportunidades variadas. Nenhum conseguiu tudo o que queria. O império britânico se desfez e sua matriz foi à bancarrota. A União Soviética estendeu suas fronteiras europeias sem, no entanto, conseguir se apossar da metade ocidental, a mais valiosa, do continente. Os Estados Unidos conquistaram não tanto as glórias da hegemonia como o ônus de uma superpotência, cuja recompensa costuma ser o rancor das demais nações. E, se tampouco asseguraram às gerações vindouras a harmonia celeste, eles pelo menos as salvaram da paz dos cemitérios e mantiveram o planeta girando, imperfeitamente como sempre, em torno de seu eixo.

O que Jonathan Fenby faz de modo competente e agradável em sua narrativa é, à medida que apresenta a crônica de suas decisões, ações e, principalmente, encontros bi ou trilaterais, iluminar o caráter e o temperamento de cada líder, suas virtudes e limitações pessoais. Pode-se, graças ao autor, seguir o desenrolar de um evento tão crucial e complexo do ponto de vista de suas mais altas instâncias decisórias, algo que, em vez de sugerir onipotência, antes revela quão estreitos eram não raro os horizontes das lideranças, quão parciais e limitadas suas informações. Malgrado se concentrar no trio de gigantes, o autor apresenta com detalhes vivos uma impressionante galeria de personagens secundários, como o chinês Chiang Kai-shek, o francês Charles de Gaulle ou Harry Hopkins, um dos principais conselheiros de Roosevelt, seu emissário junto a Churchill e Stalin, responsável central pela ajuda econômica americana aos aliados (inclusive aos soviéticos, futuros inimigos na Guerra Fria: Hopkins era receptivo demais às queixas e aos interesses de Stalin).

Sessenta e quatro anos após seu fim e duas décadas depois da conclusão do conflito seguinte (a Guerra Fria), a II Guerra, que entre 1939 e 1945 dividiu o planeta em dois campos que lutavam pela supremacia, parece, para muitos, coisa do passado, capítulo de uma história que diz respeito a avós e bisavós. No Brasil, essa impressão de relativa irrelevância, ainda mais forte, subjaz a um amplo desconhecimento e leva um sem-número de pessoas a opinar irresponsavelmente e fora de contexto a respeito de episódios isolados. Daí a facilidade com a qual se passam julgamentos sobre o bombardeio de Dresden ou a devastação nuclear de Hiroshima e Nagasaki. Quanto menos se sabe sobre o assunto, mais simples é concluir quem é o mocinho, quem o bandido ou, pior, afirmar que, no fundo, são todos vilões. Uma leitura superficial deste livro é capaz até de reforçar um juízo desses, já que nem Stalin, o genocida, nem Churchill, o imperialista da velha escola, nem Roosevelt, que acreditava no destino manifesto dos compatriotas, saem de suas páginas com uma imagem inequivocamente positiva. Que se possa compará-los e avaliá-los, porém, somente enfatiza a justiça de seu sucesso, pois é quase inconcebível quão pior seria o mundo caso tivessem fracassado.


LIVROS

Trecho de Os Três Grandes, de Jonathan Fenby

Jantar em Teerã
29 de novembro de 1943

A única coisa pior do que ter aliados é não ter aliados.
Winston Churchill

Foi Iosef Stalin quem começou a confusão. O chefe soviético passara o lauto jantar provocando Winston Churchill. Não parava de alfinetá-lo, e seu tom era nitidamente debochado. "O marechal Stalin não perdia oportunidade para constranger Mr Churchill," registrou o relatório oficial americano. "Quase todo comentário ao primeiro-ministro continha uma dose de mordacidade."

O primeiro-ministro não caiu na provocação, mesmo quando Stalin mencionou a longa relutância inglesa em desfechar um ataque frontal às forças nazis na França, como que insinuando uma afeição secreta pela Alemanha - talvez ele até quisesse oferecer ao inimigo uma "paz generosa." Só porque o povo russo era simples, disse o ditador, não fossem pensar que era cego.

Quando os garçons trouxeram os hors d'oeuvres, sopa russa "borsch," peixe, carne, saladas e frutas, vinho, champanhe russo, vodca e brandy, Franklin Roosevelt, em sua cadeira de rodas, pouco falou, limitando-se a lugares-comuns e chavões. Mais tarde, disse aos membros de seu gabinete que achara muito divertida a forma como Stalin importunava Churchill. Seu intérprete, Charles Bohlen, por outro lado, descreveu o clima como "azedo."

Nem o presidente nem o primeiro-ministro estavam bem naquela noite em que jantaram na sede da missão diplomática soviética em Teerã, no Irã, no segundo dia da primeira reunião tripartite de cúpula com Stalin. Ambos tinham feito longas viagens por mar e ar. Um ataque de indigestão obrigara Roosevelt a deixar o jantar em que fora anfitrião na noite anterior. Segundo Churchill, ele ficara pálido durante o primeiro prato do banquete soviético. Embora fosse um segredo cuidadosamente preservado, a pressão sanguínea de Roosevelt era perigosamente alta, o Presidente sofria de anemia e revelava sintomas de doença pulmonar. Quatro meses mais tarde, seria diagnosticado que sofria de hipertensão, de doença cardíaca em decorrência da hipertensão, defeito congênito do coração e bronquite crônica. Churchill estava resfriado e com a garganta inflamada, mas seu maior problema era a pressão exercida pela guerra cobrar seu preço de um homem já com sessenta e tantos anos que, embora indomável, estava em grande parte fora de forma e acima do peso, bebia muito e tinha complicações cardíacas. Às vezes, estava simplesmente "adoentado e cansado demais para pensar com clareza."

Desde que ascendera ao cargo de primeiro-ministro, em 1940, Churchill jogara todas as fichas na conquista da amizade de Roosevelt. A aliança anglo-americana era a essência de seu "sistema." A caminho de Teerã, dissera para a filha, com lágrimas nos olhos: "Eu gosto daquele homem." Nenhum amante estudara tão atentamente sua amada quanto ele estudara o Presidente, comentou em certa ocasião.

Mas o alvo de suas atenções chegara à reunião de cúpula em Teerã com um objetivo principal: conquistar a confiança de Stalin. Para atingi-lo, Roosevelt estava disposto a nada fazer que levasse o superdesconfiado ditador a pensar que ele tomava o lado dos ingleses. Se isto significasse tratar friamente o primeiro-ministro, assim faria. Ignorara pedidos de Londres para um encontro preparatório a fim de discutir a agenda de interesse do Ocidente. Em Teerã, mudou-se para aposentos na sede da representação soviética e teve encontro bilateral com Stalin, mas se recusava a almoçar a sós com Churchill. Logicamente isto não repercutiu bem junto aos representantes do país que resistira sozinho a Hitler em 1940, quando Moscou era aliada de Berlim. Certa vez, Churchill contou a seus assessores a improvável história de que o mais íntimo auxiliar de Roosevelt descrevera o Presidente como "inepto."

Quando Churchill começou a beber brandy no final do jantar, o principal assessor de Roosevelt, Harry Hopkins, ergueu um brinde ao exército soviético. Em seu agradecimento, Stalin entrou no assunto do estado-maior geral alemão. Disse que pelo menos cinqüenta mil oficiais superiores deveriam ser sumariamente fuzilados, talvez cem mil.

Churchill saltou. Com o rosto vermelho, ergueu-se e caminhou pela sala. A idéia ofendia o senso inglês de justiça, disse. Ninguém, nazi ou não, seria submetido sumariamente a um pelotão de fuzilamento. "O parlamento inglês e o público jamais tolerarão execuções em massa," trovejou ele.

"Cinqüenta mil devem ser fuzilados," repetiu Stalin, e fez novo comentário sobre a "simpatia do líder inglês pelos alemães."

"Prefiro ser levado para o jardim, aqui e agora, e ser fuzilado do que ultrajar minha própria honra e a de meu país com tal infâmia," replicou Churchill.

Os olhos de Stalin piscaram à medida que o intérprete traduziu as palavras. Voltou-se para Roosevelt, que continha um sorriso, para perguntar o que pensava a respeito. O Presidente preferiu gracejar a fim de acalmar as coisas. "Quem sabe, em vez de executar sumariamente cinqüenta mil criminosos de guerra, seja possível nos contentarmos com um número menor," disse. "Talvez, quarenta e nove mil."

Americanos e russos em torno da mesa riram. Anthony Eden, ministro do Exterior inglês, fez um gesto para Churchill de que não passava de uma brincadeira. Mas Stalin não se esquivou do assunto e pediu a cada um dos convidados seus comentários. Adotando uma abordagem diplomática, Eden afirmou que a matéria demandava estudo mais aprofundado. Os americanos disseram que a vitória na Europa ainda estava um pouco distante. Então chegou a vez do filho de Roosevelt, Elliott, oficial de inteligência da força aérea, que acompanhava o pai nas reuniões de cúpula.

O rapaz, sob efeito do champagne que lhe fora prodigamente servido, disse esperar que muitas centenas de milhares de nazis fossem liquidados. Stalin levantou-se, deu a volta e pôs a mão em seu ombro. Quando o ditador propôs um brinde à saúde de Elliott, Churchill confrontou o jovem americano.

"Você quer comprometer as relações entre os aliados?" rugiu. "Sabe o que está dizendo? Como ousa dizer uma coisa dessas?"

E abandonou solenemente a sala. Pela primeira vez em muitos anos, alguém dava as costas a Stalin daquela forma. De pé, na penumbra de uma sala vizinha, o primeiro-ministro sentiu mãos a tocá-lo. Voltando-se, viu Stalin e Vyacheslav Molotov, comissário do Exterior. Ambos deram uma gargalhada. Era só brincadeira, disseram. Não estavam falando a sério.

O líder inglês não se convenceu. Lembrava bem de quando, ainda aliados de Hitler, os soviéticos haviam assassinado 22 mil prisioneiros de guerra poloneses na floresta de Katyn. Não duvidava que Stalin fosse capaz de cumprir sua ameaça. Mas também sabia que qualquer rachadura com o Kremlin seria terrivelmente prejudicial ao esforço de guerra. Assim, voltou para a mesa e, mais tarde, registrou que o restante da noite "decorreu de forma agradável." Segundo Archibald Clark Kerr, embaixador inglês em Moscou, os dois protagonistas encerraram a noite com a mão no ombro um do outro, entreolhando-se.

Mas os presságios estavam evidentes. Mais tarde, naquela mesma noite, Harry Hopkins foi à embaixada inglesa para convencer Churchill a não retardar a invasão da França, a "segunda frente" objeto de pressão por parte de Stalin desde 1941. Os americanos e os russos já estavam resolvidos, afirmou o auxiliar de Roosevelt. Os ingleses deviam aderir à resolução. Depois que ele saiu, Churchill conversou melancolicamente com membros de sua delegação sobre guerras que aconteceriam no futuro e disse que bombardeiros ingleses deveriam ter a capacidade de alcançar Moscou. Ao regressar a Londres, descreveu a si mesmo na Conferência de Teerã com "o grande urso russo à sua esquerda, de garras estendidas; do outro lado, o grande búfalo americano; e entre eles o pobre e pequenino asno inglês, o único (...) que sabia o caminho certo de volta para casa."

Além de travar uma guerra em três continentes, os três líderes aliados estavam organizando a esperada paz em encontros como a Conferência de Teerã. Ao contrário do que sucedera na Primeira Guerra Mundial, a Segunda não terminou com a realização de uma só conferência de paz para decidir o futuro do mundo. Em vez disso, o processo transcorreu ao longo de cinco anos, assinalado por encontros pessoais, acordos e conflitos, fazendo emergir profundas discordâncias que tiveram de ser superadas a fim de abrir caminho para a vitória, mas que ressurgiam à medida que se avizinhava o novo mundo. Seis décadas depois, a história de como os Três Grandes costuraram sua aliança e administraram-na para, em seguida, serem surpreendidos por sua incapacidade de preservá-la, é uma lição objetiva e insuperável sobre política internacional no mais alto nível.


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