da democracia"
Mark Blinch/Reuters |
UM ATO DE VONTADE Eleitores celebram a posse de Barack Obama: "O extraordinário é que a cor da pele foi secundária na sua eleição – contra ou a favor dela", diz o historiador inglês Simon Schama |
|
Catedrático de história e história da arte da Universidade Colúmbia, em Nova York, o inglês Simon Schama, de 64 anos, é um dos mais influentes historiadores da atualidade. É também passional, como se vê em O Futuro da América – Uma História (tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, Donaldson M. Garschagen e Rosaura Eichenberg; Companhia das Letras; 560 páginas; 54 reais). Nesse novo livro (que rendeu ainda uma série de TV, a terceira empreitada do gênero de Schama), ele se impõe a missão de desfazer percepções que considera equivocadas sobre os Estados Unidos – país em que passou boa parte da vida e que claramente admira, às vezes ao ponto da inflamação. Schama argumenta, por exemplo, que a cultura americana não é essencialmente guerreira, como se crê; diz que os americanos têm um profundo senso de sua história e desejo de se guiar por ela; e afirma que foi o descaso para com as vítimas do furacão Katrina que abriu os olhos do país para Bush. Acima de tudo, Schama acredita que a eleição de Barack Obama seja a retomada não apenas da democracia americana, como da moralidade. A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu à editora Isabela Boscov.
OS AMERICANOS E O PASSADO
É errada a impressão de que os americanos só olham para o futuro. Livros históricos frequentam suas listas de best-sellers, e mais de 19 milhões de espectadores viram a série documental A Guerra Civil. Mesmo nesse nível mais cru, portanto, há evidências maciças de que os americanos são obcecados por sua história. O sentido de história é crucial para as minorias, que o cultivam na lembrança das guerras de cunho racial e das lideranças do movimento pelos direitos civis. Ela faz parte, ainda, do tecido da vida americana: a Constituição é um documento vivo, e uma das atribuições mais relevantes da Suprema Corte é interpretar as intenções dos pais da nação nela dispostas. Um inglês, por exemplo, não acha que seu modo de vida é definido por Henrique VIII ou pela rainha Vitória da forma como um americano se sente definido pelos patriarcas da nação.
Robyn Beck/AFP |
O MAIOR DOS ESCÂNDALOS O descaso com o horror do Katrina fez a popularidade de Bush despencar |
O EFEITO KATRINA
Em 2005, a negligência do governo federal para com a devastação causada pelo furacão Katrina em Nova Orleans – as imagens de cadáveres boiando na lama, de desabrigados sem assistência – fez a popularidade de Bush despencar do dia para a noite. Andei por lugares como o estado de Oklahoma, de forte maioria branca, cristã e republicana. Pessoas que nunca apoiariam um democrata estavam tão escandalizadas que mal podiam esperar pela eleição para votar contra o que Bush representava. A indagação que o Katrina provocou foi: para que serve o governo se não ao menos para vir em socorro dos necessitados? Quando a crise financeira estourou, em 2008, Obama se beneficiou desse estado de ânimo com a promessa de restaurar a competência, a energia, a integridade e a transparência. Os americanos querem pertencer a um país que funciona.
RELIGIÃO E POLÍTICA
A ultradireita cristã ajudou Bush a ganhar a eleição de 2004, mas perdeu a de 2008. Tentou reverter a lei que autoriza o aborto, e não conseguiu. Esse é um movimento cheio de tipos pitorescos, que aparecem na TV e fazem barulho, mas há exagero sobre sua influência. As campanhas para obrigar à oração nas escolas, incluir o criacionismo nos livros didáticos ou definir o casamento como uma união heterossexual em geral não tiveram sucesso. Iowa, um estado muito cristão, acaba de legalizar o casamento gay. É só por causa das megaigrejas e dos televangelistas que se tem essa percepção da igreja americana como uma criatura da direita. Obama é um cristão devoto, e foi eleito dentro das igrejas. Também o movimento pelos direitos civis nasceu dentro das igrejas. A igreja cristã foi a instituição progressista essencial em grande parte da vida americana.
PATRIOTISMO E GUERRA
Acredito que a cultura americana enxerga o cidadão que está dentro da farda e procura se certificar de que é justo enviá-lo à guerra. O 11 de Setembro criou uma situação peculiar, uma vez que milhares de civis foram massacrados no coração do território nacional. O país se uniu em torno da causa. Mas, assim que os americanos perceberam que algo cheirava mal na ligação feita entre o 11 de Setembro e a Guerra do Iraque, o apoio a ela desapareceu. Os americanos são extraordinariamente patrióticos, mas se identificam com a nação por meio dos ideais dela. É claro que em vários momentos os Estados Unidos se precipitaram em se lançar à guerra. Mas em quase toda a sua história a perspectiva de um conflito armado foi precedida de um debate feroz. O presidente Dwight Eisenhower despediu-se do cargo, em 1961, com um alerta sobre o crescimento do complexo bélico-industrial. "O potencial para o aumento desastroso do poder mal-empregado existe e persistirá", disse ele – como se vê na Guerra do Iraque.
O REDESPERTAR DA DEMOCRACIA
O reencontro da democracia americana com a moralidade se deu já no processo eleitoral. Obama foi eleito por um número imenso de americanos, e por membros das minorias – negros, latinos; e também por uma quantidade sem precedente de jovens. Dezenas de milhões de espectadores assistiram aos debates entre os candidatos, que não foram assim tão emocionantes. Os americanos retomaram sua democracia por um ato de vontade.
TENSÃO RACIAL
A eleição de Obama foi um momento de extrema importância na vida da população de descendência negra e representa a culminação do movimento pelos direitos civis. Mas o mais extraordinário é que a cor da pele de Obama foi um fator secundário em sua eleição – contra ou a favor dela. Seria ingênuo dizer que o problema racial americano está resolvido, mas deu-se um passo importante nessa direção. Seria improvável um candidato não branco eleger-se em qualquer país europeu, mas aconteceu nos Estados Unidos.
CRISE ECONÔMICA
Creio que a crise trará uma alteração maciça no equilíbrio de poder nos Estados Unidos. Não acredito que a luta de classes se instalará no país, mas é certo que a amargura dos mais pobres em relação aos mais ricos deve aumentar. O sentido de desmoralização, de choque diante da desigualdade e de temor do desemprego tem um grande peso, que ainda não é possível quantificar. O saldo final depende sempre de como se legisla. Ao término da II Guerra, milhões de pessoas ganharam acesso à instrução superior graças ao decreto que garantia essa chance aos ex-combatentes. Hoje, a ampliação da assistência à saúde proposta por Obama é uma das várias medidas que podem aliviar os efeitos da crise.
ISRAEL E PALESTINA
Parece-me indiscutível que os israelenses cessaram os recentes bombardeios contra os palestinos na Faixa de Gaza em razão da pressão americana. Antes mesmo da posse de Obama, a equipe de transição deixou claro a Israel que considerava sua reação monstruosamente desproporcional. Por outro lado, os americanos se solidarizam com Israel no sofrimento das suas regiões fronteiriças. É preciso repudiar uma reação imoral como essa a que Israel submeteu Gaza. Mas também não se pode esperar que eles fiquem sentados enquanto o Hamas lança milhares de projéteis todos os dias sobre alvos civis israelenses. O papel dos Estados Unidos é ajudar Israel a escolher entre ações que promovam a segurança nacional e as que vão agravar a situação. Creio, por exemplo, que o governo Obama ficará horrorizado se Israel cumprir a ameaça de bombardear as instalações nucleares iranianas. Obama é firme no apoio à integridade de Israel, mas tudo indica que não será tão indulgente com os israelenses quanto Bush e Bill Clinton o foram.
O PODER DA HISTÓRIA
O público tem um interesse muito mais vivo pela história, recente ou remota, do que se julga, embora vivamos numa era imediatista. Pessoalmente, tenho é paixão por manter o passado vivo. Não há nada mais gratificante do que quando pessoas de fora do mundo acadêmico – um taxista, o vendedor de uma loja – comentam comigo minhas séries de TV ou agradecem a oportunidade de conhecer temas até então alheios à sua experiência. Junto com muitas outras pessoas, acho que contribuo para que a história se aloje na nossa cultura comum e para que as pessoas se indaguem sobre as questões mais profundas da condição humana. Esse sempre foi, afinal, o papel de um historiador.