Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 01, 2009

Livros O historiador Simon Schama exalta a era Obama

"Obama é a retomada
da democracia"
Mark Blinch/Reuters
UM ATO DE VONTADE
Eleitores celebram a posse de Barack Obama: "O extraordinário é que a cor da pele foi secundária na sua eleição – contra ou a favor dela", diz o historiador inglês Simon Schama


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Trecho do livro

Catedrático de história e história da arte da Universidade Colúmbia, em Nova York, o inglês Simon Schama, de 64 anos, é um dos mais influentes historiadores da atualidade. É também passional, como se vê em O Futuro da América – Uma História (tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, Donaldson M. Garschagen e Rosaura Eichenberg; Companhia das Letras; 560 páginas; 54 reais). Nesse novo livro (que rendeu ainda uma série de TV, a terceira empreitada do gênero de Schama), ele se impõe a missão de desfazer percepções que considera equivocadas sobre os Estados Unidos – país em que passou boa parte da vida e que claramente admira, às vezes ao ponto da inflamação. Schama argumenta, por exemplo, que a cultura americana não é essencialmente guerreira, como se crê; diz que os americanos têm um profundo senso de sua história e desejo de se guiar por ela; e afirma que foi o descaso para com as vítimas do furacão Katrina que abriu os olhos do país para Bush. Acima de tudo, Schama acredita que a eleição de Barack Obama seja a retomada não apenas da democracia americana, como da moralidade. A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu à editora Isabela Boscov.


OS AMERICANOS E O PASSADO

É errada a impressão de que os americanos só olham para o futuro. Livros históricos frequentam suas listas de best-sellers, e mais de 19 milhões de espectadores viram a série documental A Guerra Civil. Mesmo nesse nível mais cru, portanto, há evidências maciças de que os americanos são obcecados por sua história. O sentido de história é crucial para as minorias, que o cultivam na lembrança das guerras de cunho racial e das lideranças do movimento pelos direitos civis. Ela faz parte, ainda, do tecido da vida americana: a Constituição é um documento vivo, e uma das atribuições mais relevantes da Suprema Corte é interpretar as intenções dos pais da nação nela dispostas. Um inglês, por exemplo, não acha que seu modo de vida é definido por Henrique VIII ou pela rainha Vitória da forma como um americano se sente definido pelos patriarcas da nação.

Robyn Beck/AFP
O MAIOR DOS ESCÂNDALOS
O descaso com o horror do Katrina fez a popularidade de Bush despencar


O EFEITO KATRINA

Em 2005, a negligência do governo federal para com a devastação causada pelo furacão Katrina em Nova Orleans – as imagens de cadáveres boiando na lama, de desabrigados sem assistência – fez a popularidade de Bush despencar do dia para a noite. Andei por lugares como o estado de Oklahoma, de forte maioria branca, cristã e republicana. Pessoas que nunca apoiariam um democrata estavam tão escandalizadas que mal podiam esperar pela eleição para votar contra o que Bush representava. A indagação que o Katrina provocou foi: para que serve o governo se não ao menos para vir em socorro dos necessitados? Quando a crise financeira estourou, em 2008, Obama se beneficiou desse estado de ânimo com a promessa de restaurar a competência, a energia, a integridade e a transparência. Os americanos querem pertencer a um país que funciona.


RELIGIÃO E POLÍTICA

A ultradireita cristã ajudou Bush a ganhar a eleição de 2004, mas perdeu a de 2008. Tentou reverter a lei que autoriza o aborto, e não conseguiu. Esse é um movimento cheio de tipos pitorescos, que aparecem na TV e fazem barulho, mas há exagero sobre sua influência. As campanhas para obrigar à oração nas escolas, incluir o criacionismo nos livros didáticos ou definir o casamento como uma união heterossexual em geral não tiveram sucesso. Iowa, um estado muito cristão, acaba de legalizar o casamento gay. É só por causa das megaigrejas e dos televangelistas que se tem essa percepção da igreja americana como uma criatura da direita. Obama é um cristão devoto, e foi eleito dentro das igrejas. Também o movimento pelos direitos civis nasceu dentro das igrejas. A igreja cristã foi a instituição progressista essencial em grande parte da vida americana.


PATRIOTISMO E GUERRA

Acredito que a cultura americana enxerga o cidadão que está dentro da farda e procura se certificar de que é justo enviá-lo à guerra. O 11 de Setembro criou uma situação peculiar, uma vez que milhares de civis foram massacrados no coração do território nacional. O país se uniu em torno da causa. Mas, assim que os americanos perceberam que algo cheirava mal na ligação feita entre o 11 de Setembro e a Guerra do Iraque, o apoio a ela desapareceu. Os americanos são extraordinariamente patrióticos, mas se identificam com a nação por meio dos ideais dela. É claro que em vários momentos os Estados Unidos se precipitaram em se lançar à guerra. Mas em quase toda a sua história a perspectiva de um conflito armado foi precedida de um debate feroz. O presidente Dwight Eisenhower despediu-se do cargo, em 1961, com um alerta sobre o crescimento do complexo bélico-industrial. "O potencial para o aumento desastroso do poder mal-empregado existe e persistirá", disse ele – como se vê na Guerra do Iraque.


O REDESPERTAR DA DEMOCRACIA

O reencontro da democracia americana com a moralidade se deu já no processo eleitoral. Obama foi eleito por um número imenso de americanos, e por membros das minorias – negros, latinos; e também por uma quantidade sem precedente de jovens. Dezenas de milhões de espectadores assistiram aos debates entre os candidatos, que não foram assim tão emocionantes. Os americanos retomaram sua democracia por um ato de vontade.


TENSÃO RACIAL

A eleição de Obama foi um momento de extrema importância na vida da população de descendência negra e representa a culminação do movimento pelos direitos civis. Mas o mais extraordinário é que a cor da pele de Obama foi um fator secundário em sua eleição – contra ou a favor dela. Seria ingênuo dizer que o problema racial americano está resolvido, mas deu-se um passo importante nessa direção. Seria improvável um candidato não branco eleger-se em qualquer país europeu, mas aconteceu nos Estados Unidos.


CRISE ECONÔMICA

Creio que a crise trará uma alteração maciça no equilíbrio de poder nos Estados Unidos. Não acredito que a luta de classes se instalará no país, mas é certo que a amargura dos mais pobres em relação aos mais ricos deve aumentar. O sentido de desmoralização, de choque diante da desigualdade e de temor do desemprego tem um grande peso, que ainda não é possível quantificar. O saldo final depende sempre de como se legisla. Ao término da II Guerra, milhões de pessoas ganharam acesso à instrução superior graças ao decreto que garantia essa chance aos ex-combatentes. Hoje, a ampliação da assistência à saúde proposta por Obama é uma das várias medidas que podem aliviar os efeitos da crise.


ISRAEL E PALESTINA

Parece-me indiscutível que os israelenses cessaram os recentes bombardeios contra os palestinos na Faixa de Gaza em razão da pressão americana. Antes mesmo da posse de Obama, a equipe de transição deixou claro a Israel que considerava sua reação monstruosamente desproporcional. Por outro lado, os americanos se solidarizam com Israel no sofrimento das suas regiões fronteiriças. É preciso repudiar uma reação imoral como essa a que Israel submeteu Gaza. Mas também não se pode esperar que eles fiquem sentados enquanto o Hamas lança milhares de projéteis todos os dias sobre alvos civis israelenses. O papel dos Estados Unidos é ajudar Israel a escolher entre ações que promovam a segurança nacional e as que vão agravar a situação. Creio, por exemplo, que o governo Obama ficará horrorizado se Israel cumprir a ameaça de bombardear as instalações nucleares iranianas. Obama é firme no apoio à integridade de Israel, mas tudo indica que não será tão indulgente com os israelenses quanto Bush e Bill Clinton o foram.


O PODER DA HISTÓRIA

O público tem um interesse muito mais vivo pela história, recente ou remota, do que se julga, embora vivamos numa era imediatista. Pessoalmente, tenho é paixão por manter o passado vivo. Não há nada mais gratificante do que quando pessoas de fora do mundo acadêmico – um taxista, o vendedor de uma loja – comentam comigo minhas séries de TV ou agradecem a oportunidade de conhecer temas até então alheios à sua experiência. Junto com muitas outras pessoas, acho que contribuo para que a história se aloje na nossa cultura comum e para que as pessoas se indaguem sobre as questões mais profundas da condição humana. Esse sempre foi, afinal, o papel de um historiador.


LIVROS

Trecho de O Futuro da América,
de Simon Schama

1. DIA DOS VETERANOS: 11 DE NOVEMBRO DE 2007

"Os Estados Unidos nunca foram uma cultura guerreira."

Só porque foi Dick Cheney quem disse essa frase, isso não faz dela automaticamente uma inverdade, mesmo em um Dia dos Veteranos no Cemitério Nacional de Arlington, um ano antes da eleição. Um vice-presidente impenitente batendo no peito em arroubos de patriotismo não era exatamente o que as pessoas, muito menos os próprios veteranos, queriam ouvir naquele momento. Corpos de jovens americanos não paravam de chegar à seção 60, no pé do morro gramado. Escavadeiras de cor mostarda permaneciam estacionadas em fila, com suas garras de metal erguidas, prontas para cavar. De vez em quando, a cada hora aproximadamente, podia-se ouvir o suave ruído de cascos de cavalo se aproximando nos altos e baixos do parque do cemitério, antecipando a visão das carretas de canhão com a arma invertida. Em quase todos os dias de semana, a cada hora, mais ou menos, esses pequenos desfiles tristonhos fazem as honras funerárias enquanto ônibus de turistas são desviados para rotas alternativas, em direção ao Túmulo do Soldado Desconhecido ou ao de John Fitzgerald Kennedy. Mas, se você caminhar pelos verdes vales de Arlington, você vai pegar jovens soldados da 3a Infantaria se aprontando para seu próximo dever, operando as empilhadeiras que içam os caixões para cima das carretas. Outros fumam silenciosamente um cigarrinho atrás dos plátanos, antes de vestir os cavalos e seguir para os cerimoniais. Longe, em Samarra e Helmand, Mosul e Kandahar, um número muito maior de corpos mutilados e eviscerados, não americanos, é preparado da melhor maneira possível, sem o benefício das bandeiras ou dos tambores. Só os lamentos soam iguais.

Mas em Arlington, no Dia dos Veteranos de 2007, no anfiteatro do memorial não se ouvia nenhuma choradeira, exceto a de crianças pequenas, debatendo- se contra o cativeiro do colo das mães. Cheney pronunciava as frases piedosas com estudada quietude, a voz caindo no final de cada sentença, como se evitar a fala histriônica fosse por si só um sintoma de que falava a verdade. Talvez a recomendação de Theodore Roosevelt de "falar com suavidade e carregar porrete grande" esteja emoldurada em cima de sua escrivaninha de vice- -presidente. Quando acontecia de um bebê soltar um daqueles gritos que pareciam rebimbar de uma coluna à outra, Cheney dava uma olhada para cima, conferia a nova linha no teleprompter, e prosseguia impassível para a próxima homilia, como um tanque passando por cima de um gato.

Estava quente naquele dia 11 de novembro, e o humor no anfiteatro era alegre. Os raios de sol refletindo sobre capas e casacos vermelho-cereja transformavam os fuzileiros veteranos num grupo de duendes animados. O som dos metais da grande orquestra era de um repertório clássico leve, e a procissão de cores dentro do anfiteatro era idêntica à de um desfile de qualquer escola secundária, exceto pelos muitos anos dos porta-estandartes. Jaquetas de motoqueiro com tachas pontiagudas, decoradas com insígnias do Vietnã - "Falcões do Inferno", "Sopro do Dragão" - envolviam os corpos pançudos de velhos soldados, mas por trás das bandanas de outrora o ar ameaçador de metaleiro e sua mágoa justificadamente ruidosa já haviam se perdido. Agora, eles eram apenas peças vivas no museu de uma guerra da Idade da Pedra, os feridos ambulantes da Sha-Na Na-ção.* Mais discursos tediosos se seguiam; mais Andrew Lloyd Webber se esganiçava; e o "serviço" voluntário que era homenageado se transformava rapidamente em uma granola social: "veteranos que prestavam assistência às comunidades", mais semelhantes à guarda costeira ou aos escoteiros; nada a ver com bombas e balas. Se o Iraque e o Afeganistão acabaram não sendo um piquenique, o Dia dos Veteranos em Arlington certamente se parecia com isso.

Mas os Estados Unidos têm dois dias específicos de memória militar: um, quando as folhas estão caindo, e outro quando elas se espalham em total esplendor primaveril. Criado depois da guerra civil, o Dia da Memória dos Mortos em Combate era originalmente conhecido como o Dia da Decoração, devido ao hábito espontâneo das viúvas de decorar os túmulos com coroas de flores brancas. Em 1868, o comandante do Grande Exército da República, general John Logan, decidiu institucionalizar o Dia da Memória - para os mortos tanto da União quanto da Confederação - e determinou que esse dia seria na terceira segunda-feira de maio. Na maior parte do país, o Dia da Memória é o marco inaugural do calor. Vendas de garagem estendem suas pechinchas em mesas na calçada. Os homens dão início ao seu ritual tribal de acender o carvão da grelha em seus primeiros churrascos ao ar livre. A carne vai para a chapa, latas de cerveja são abertas e espumam, aqui e ali pequenos tratores ceifam os gramados suburbanos. Mas, mesmo que as filas de espectadores nos desfiles sejam pequenas, a recordação faz parte da vida da cidade pequena americana. Em Sleepy Hollow, Nova York, onde uma estátua homenageia os "honestos milicianos" que capturaram o espião britânico Major André em 1780, cerca de uma dúzia de veteranos, alguns deles sobreviventes octogenários de Pearl Harbor e da Normandia, seguiam atrás da banda escolar de garotas, que marchavam com suas botas negras brilhantes, minissaias pregueadas pretas e jaquetas escarlates, estranhamente reminiscentes dos casacos-vermelhos britânicos que os "honestos milicianos" haviam vencido. A banda assassinou "Sloop John B" (uma escolha desconcertante) e "God bless America", e uma procissão sem fim de caminhões de bombeiro de cidades vizinhas seguia em fila, cada um com suas insígnias heráldicas (Gancho e Escada da Conquista 46), até o desfile chegar a um florido Parque "dos Patriotas" (assim chamado por causa da Guerra da Independência). Lá, entre cães e bebês e tias e esposas, os dignitários fizeram algo surpreendente: eles se conectaram com a história. O comandante da Legião Americana local, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, leu a íntegra da Ordem Número 11 do general Logan, de 1868, como se ela tivesse acabado de ser emitida, tropeçando um pouco sobre seus grandes voos de retórica lincolniana, clamando pela perpetuação do sentimento de ternura por aqueles homens "cujos peitos se fizeram barricadas entre nossos inimigos [ou seja, outros americanos] e nosso país". O tom lincolniano foi sustentado quando o prefeito de Tarrytown leu uma versão abreviada do Discurso de Gettysburg, embora o porquê de ele achar que precisava encurtar um discurso que tinha apenas quatrocentas palavras permaneça um mistério. Os mortos daquele imenso massacre e o presidente com sua cartola foram convocados de novembro de 1868 ao dia do churrasco ao ar livre de 2008, para se juntarem e se misturarem aos velhos soldados do Vietnã em seus chapéus de guarda. Mas isso foi apenas um floreado vazio? Era mais seguro e mais fácil invocar Gettysburg e Antietam* do que falar nos 25 soldados americanos mortos apenas no mês anterior no Iraque e no Afeganistão?

No cemitério de Sleepy Hollow os túmulos de cada geração de soldados estavam recebendo pequenas bandeiras americanas plantadas na terra ao lado deles. O mesmo acontecera no Cemitério Nacional de Arlington, onde cada um dos 260 mil ou mais túmulos recebia a decoração e um guarda postado nos campos no fim de semana do Dia da Memória, para garantir que nem a chuva nem o vento nem a maldade premeditada os perturbassem. Um desses túmulos tem mais significado para mim do que uma data de morte ou um nome aleatório. Kyu-Chay foi alguém cuja presença brilhante eu posso invocar com muito mais facilidade do que sua morte, que ocorreu em algum lugar nas montanhas cinzentas do Afeganistão. Seu pai e sua mãe são donos de uma tinturaria na pequena cidade onde moro, no interior do estado de Nova York, e, como é costume entre as famílias coreanas, os filhos - dois meninos - ficavam sempre próximos.Quando Kyu estava de licença do Forte Bragg, eu o via, ajudando no balcão, entregando camisas e ternos, vestido em seu uniforme: um cara grande e luminoso, com as mangas enroladas até a altura dos bíceps, no estilo do Exército, imergindo energicamente no fundo da loja, em meio às prateleiras, como se estivesse patrulhando. Isso era mais ou menos tudo o que sabia sobre Kyu até que um dia, no início de novembro de 2006, entrei na tinturaria e a encontrei lotada de flores brancas: no balcão, no chão, escoradas contra a parede, lírios, crisântemos, rosas, todas brancas, uma pálida mortalha estendida enquanto as máquinas pulsavam negligentemente atrás do balcão. No meio de um dos buquês, fora colocada uma fotografia de Kyu com sua boina, um largo sorriso em seu grande rosto honesto. Embaixo da foto, uma notícia dizia que o sargento fora morto enquanto liderava uma missão no Afeganistão. Seu pai, Sam, e sua mãe, ambos de olhos fundos e curvados de dor, ainda trabalhavam na loja, mais para não serem tragados pela loucura, pensei, do que para assegurar o ganha-pão. Eles são pessoas bastante formais, assim, eu não tinha certeza se era adequado demonstrar meus sentimentos; mas, quando o fiz, Sam inclinou-se para a frente, entregando-se ao abraço oferecido, encolhido em angústia silenciosa, os ombros trêmulos.

Kyu-Chay foi sepultado na seção 60 em Arlington, que no Dia dos Veteranos, em deferência à privacidade das famílias na dor, ficou fechada aos visitantes. Mais ou menos um mês depois - um ano após sua morte -, voltei para procurá-lo. Não havia lugar suficiente na lápide padrão para sua história, que era, à sua maneira, excepcional, especialmente para um sargento paraquedista, mas era também classicamente americana. Kyu-Chay nasceu em 1971 na antiga cidade de Daegu, Coreia do Sul, contemplada de cima pelo monte Palgongsan, mas cresceu consciente de que sua cidade e sua família escaparam por pouco de serem arrasadas pelas forças da Coreia do Norte e da China no perímetro Pusan, em 1950. Vinte e cinco anos depois, Sam e a esposa levavam consigo seu sentido de grato pertencimento até o vale do baixo Hudson. O irmão mais velho, Kyu (o mais novo tinha o mesmo nome), era intelectualmente superdotado e trabalhava arduamente. A faculdade e escola de direito estaduais abriram-se para ele. Mas então, em 2001, depois do Onze de Setembro, Kyu-Chay fez algo não muito previsível para um americano-asiático de primeira geração em ascensão, mas profundamente enraizado na relação de imigrante com sua nação adotiva: alistou-se no Exército. Com toda a sua inteligência, ele era o tipo de material para oficiais com que o Exército dos Estados Unidos sonha, mas Kyu-Chay tinha algo em particular que queria fazer: tornar- se um especialista na decifração de códigos, em uma instituição em que essa especialidade estava notoriamente em falta. Para preparar-se para sua missão no Iraque, ele se tornou um arabista fluente; e, antes de ser enviado ao Afeganistão, adicionou aos seus conhecimentos o pashto e o farsi. Ele era mais ou menos tudo o que se poderia querer de um sargento paraquedista: coragem física casada com inteligência vigorosa. Havia um propósito prático em seu aprendizado: a tradução de mensagens interceptadas faz a diferença entre a vida e a morte, e a evidente falta de arabistas na cia, no verão de 2001, provou- se letal. Kyu-Chay estava determinado a entender o inimigo aceitando o desafio de aprender sua língua, sua cultura e sua fé. Mas ele também quis aprender árabe para poder homenagear, com uma empatia estudada, aqueles que poderiam ser amigos e aliados. Talvez seu maior ato de tradução tenha sido pegar sua complexa história cultural e usá-la contra duas formas de alheamento: o hábito americano de acreditar que, se o inglês fosse gritado alto o suficiente em um bloqueio rodoviário ou em uma estação policial, as pessoas acabariam Entendendo a Mensagem, especialmente se aquele velho e confiável auxiliar de ensino, um rifle armado, fosse acrescentado à sessão instrutiva. Além disso, se sermões sobre democracia fossem proferidos em intervalos regulares, conforme crê a visão oficial, o resto do mundo algum dia se igualaria ao estilo de vida americano. No entanto, o conhecimento duramente conquistado por Kyu-Chay era dirigido igualmente contra o alheamento do absolutismo teocrático: uma cultura na qual a obrigação de aniquilar a dissidência é exaltada como o seu mais alto dever. Em uma trilha de montanha, ele perdeu a vida ao confrontar aquele absolutismo.


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