O câncer no palanque O governo tenta transformar um assunto grave e delicado,
Desde que anunciou o diagnóstico de linfoma, um câncer no sistema linfático, a ministra Dilma Rousseff não teve o direito que assiste a toda pessoa que se descobre paciente de uma doença grave: o recolhimento e o silêncio. Nada disso. Mal se soube da doença e ela passou a ser vista sob o único e exclusivo ângulo do animal político. O câncer é bom ou ruim para sua candidatura à sucessão de Lula? A doença fragiliza ou humaniza a candidata, tida como dama de ferro? As pesquisas vão apontar se o anúncio da doença foi positivo? Foram essas algumas das questões que fizeram submergir as mais comezinhas considerações humanas com a pessoa Dilma Rousseff. Compreende-se até certo ponto. O presidente vem trabalhando para conferir musculatura eleitoral a Dilma, que, aos 61 anos, nunca enfrentou as urnas. A assessora desconhecida deixou o ostracismo e se converteu em candidata viável. Há um ano, a "mãe do PAC" registrava 3% em uma pesquisa de intenção de voto do Datafolha. Hoje, está a 30 pontos do primeiro colocado, o governador paulista José Serra, do PSDB, mas já alcança 11%. O tratamento do linfoma, no entanto, pode reduzir a exposição pública de Dilma e congelar as articulações em torno de sua candidatura. Diante dessa ameaça, o governo partiu para uma exploração despudorada do câncer da ministra, a fim de manter o nome de Dilma na ribalta. A senha para o aproveitamento eleitoral da doença foi dada por Lula em um comício em Manaus, ao lado da ministra, realizado apenas dois dias depois da entrevista coletiva em que se anunciou a enfermidade. Disse o presidente: "Se você não rezava toda noite, agora trate de começar a rezar, porque esse povo vai precisar muito de você daqui pra frente". Seus subordinados seguiram em – aparente – ordem-unida. Com ainda menos sutileza, deixaram claro que gostariam de ver o câncer convertido em lucro nas urnas. "Pode fortalecer a identidade da ministra no projeto que se confunde com a superação das dificuldades do próprio país", disse o ministro da Educação, Fernando Haddad. "Tenho a impressão de que deve ter impactado muito favoravelmente na opinião pública do país", afirmou Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência e notório por ter comemorado com gestos de "top top" um laudo – que, para ele, teria efeito positivo para o governo perante a opinião pública – do acidente aéreo que matou 199 pessoas em São Paulo em 2007.
Na versão oficial, Lula só soube da doença na véspera da entrevista coletiva. Mas, de acordo com um ministro muito próximo do presidente, o problema de saúde de Dilma lhe chegou aos ouvidos cerca de um mês antes. A ministra contou ao presidente que havia feito um check-up e que precisaria se ausentar do trabalho por um ou dois dias para fazer novos exames, que incluíam a coleta de material para uma biópsia. Na volta de São Paulo, depois do procedimento cirúrgico no Hospital Sírio-Libanês, Dilma contou ao presidente que havia retirado um nódulo. Interlocutores de Lula entrevistados por VEJA relataram que ela não deixou claro que havia a suspeita de câncer, embora isso tenha ficado subentendido quando falou da biópsia. O assunto permaneceu restrito a Lula e Dilma até duas semanas atrás, quando surgiram boatos entre políticos e assessores do governo de que ela estaria doente. Dilma procurou então o ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, para falar sobre seu problema e pedir conselhos. A decisão foi não dar publicidade ao tema. O silêncio sobre o caso foi mantido até o dia 24, quando Dilma, Lula e Franklin ficaram a sós depois de uma reunião da coordenação de governo. Não havia mais como manter a notícia – agora com diagnóstico fechado da doença – em segredo. Pela primeira vez, discutiram-se abertamente as "vantagens" e as "desvantagens" de tratar o assunto abertamente. Diante da insistência de repórteres em perguntar os motivos da presença da ministra no Hospital Sírio-Libanês, o presidente passou a considerar inevitável uma posição oficial sobre o tema. Para ele, a disseminação de boatos sobre a saúde da ministra poderia atrapalhar sua recuperação, sua atuação no governo e minar sua candidatura. Franklin foi contra até o fim, argumentando que seria melhor contornar o assunto, tratando-o como algo de interesse privativo da ministra. Lula convenceu Dilma a dar a entrevista do dia 25. Como forma de evitar especulações sobre suas condições e a possível exploração negativa por parte da oposição, ficou resolvido que a exposição pública da candidata seria intensificada.
Foi assim que a doença de Dilma deixou as coxias do gabinete presidencial e subiu ao palanque. Na segunda-feira passada, Lula levou a ministra para uma agenda de mais de dez horas de compromissos políticos com jeito de comício em Manaus. Do alto do palanque, reforçou que Dilma é sua candidata e, num gesto humano, pediu para que rezassem por ela. Tudo previamente pensado. Se colocasse em dúvida a candidatura de Dilma, Lula abriria espaço para uma guerra fratricida no PT e nos partidos aliados. "Os petistas com ambições adormecidas voltariam a sonhar em ser presidente. Muita gente que não aceita a candidatura da ministra viu sua doença como uma janela de oportunidade", avalia um dirigente do PT. Além de neutralizar as tentações petistas, Lula acredita que Dilma pode se fortalecer politicamente com a doença. A estratégia é arriscada. Especialistas em campanha eleitoral ouvidos por VEJA afirmam que o eleitor é pragmático e leva em consideração o risco de votar em alguém com problemas de saúde mesmo admirando sua perseverança na luta contra a doença. "O cidadão se identifica com quem desce do patamar superior para mostrar humanidade. Ao mesmo tempo, tende a usar o voto como um escudo para o futuro. Por mais simpatia que tenha pelo candidato, deixa de votar nele se percebe que sua saúde pode comprometer o governo", diz o cientista político Gaudêncio Torquato, da Universidade de São Paulo. Para aferir a reação do eleitorado ao problema de Dilma, o marqueteiro de Lula, João Santana, começou uma pesquisa qualitativa. O objetivo é saber se a imagem da ministra guerreira é mais forte do que o fantasma da candidata em tratamento de câncer. O Ibope também vai a campo para conferir a viabilidade eleitoral de Dilma e de outros cinco petistas. "A minha avaliação é que qualquer nome que aparecer como candidato do PT com o apoio de Lula ficará na faixa dos 15%. Dilma pode ter um pouco mais", aposta Carlos Augusto Montenegro, presidente do Ibope.
A estratégia de blindar Dilma não está impedindo o ataque especulativo petista. Oficialmente, o partido divulgará uma resolução para reafirmar o apoio à candidatura de Dilma. "Não há plano B nem C. Só há o plano D, que se chama Dilma", pregou o secretário-geral do PT, José Eduardo Cardozo. Nos bastidores, porém, os possíveis herdeiros da candidatura agem com a discrição de um elefante e se engalfinham com a voracidade de um urubu. "Fernando Haddad passa metade do tempo plantando notas de que é o plano B de Lula. E a outra metade conversando com jornalistas e políticos sobre as notas", comenta um parlamentar petista. "Patrus Ananias diz que o reserva da mãe do PAC só pode ser o pai do Bolsa Família", afirma outro, sobre as intenções do ministro do Desenvolvimento Social. Tarso Genro, ministro da Justiça, colocou seu nome à disposição e o governador baiano Jaques Wagner prepara uma agenda de temas nacionais. Todos querem ter o nome mais conhecido para a eventualidade de Lula substituir sua candidata. O presidente e o PT jamais tratarão publicamente da eventual substituição de Dilma. "É burrice e desrespeito especular sobre o assunto", disse o presidente. Lula aposta realmente em Dilma, e a considera o nome mais forte para suceder a ele. "Lula fica radiante quando vê uma demonstração popular de apoio a Dilma, como aconteceu em Manaus. Acha isso uma prova de que seu plano de fazer dela sua candidata deu certo", afirma um ministro. Por isso, manterá a candidatura de Dilma até o limite. Só a substituirá se a doença realmente a impedir de disputar a eleição – possibilidade discutida em conversas muito reservadas. O presidente já orientou a ministra a reduzir sua carga de trabalho. A maior parte das funções foi dividida entre a secretária executiva, Erenice Guerra, e a subchefe de Avaliação e Monitoramento, Miriam Belchior. A agenda de Dilma se concentrará em eventos políticos e inaugurações do PAC. Se necessário, ela deixará o governo até o fim do ano. "Deixe esse trabalho com a gente", disse-lhe Lula.
Não ter um plano B seria uma imprudência que um político experiente como o presidente jamais cometeria. Seu preferido para substituir Dilma como candidato do PT é o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. VEJA obteve a informação com cinco interlocutores diretos do presidente. A consultoria Arko Advice aferiu que Palocci também conta com a simpatia de 26% dos deputados da base governista. Tarso, Patrus, Haddad e Jaques podem se movimentar à vontade, mas, se depender do presidente, nenhum deles será seu sucessor. O único impedimento, por enquanto, de uma eventual candidatura do ex-ministro da Fazenda é o processo que corre no Supremo Tribunal Federal sobre a quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, que trabalhava em uma mansão frequentada por lobistas ligados a Palocci. O ex-ministro tem experiência política, trânsito no Congresso e entre partidos aliados e é respeitado pelo empresariado graças à elogiável gestão que teve à frente do Ministério da Fazenda. Seu nome é pouco conhecido do eleitorado de classes mais baixas, mas nada que o presidente e seus programas sociais não consigam reverter. Se Lula tiver de trocar a candidatura de Dilma pela de Palocci até fevereiro, há tempo de sobra para ele se viabilizar. O prazo que o presidente dá para uma eventual mudança é ainda menor. Ele quer esperar o resultado da quimioterapia que Dilma fará nos próximos quatro meses para verificar se ela terá condição de manter a candidatura. Se houver uma indefinição ou se o tratamento precisar ser prorrogado, a hipótese da substituição ganhará força, pois a avaliação do governo é que é necessário iniciar o ano eleitoral com uma candidatura consolidada, e sem o fantasma de uma substituição de última hora a rondar o palanque. Só assim, talvez, Dilma terá direito a ser tratada como um ser humano. Com reportagem de Sandra Brasil |
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Fotos Jose Cruz/ABR; Dida Sampaio/AE; Renato Cobucci/AE; Valter Campanato/ABR; Ricardo Stuckert/PR; Antonio Cruz/ABR
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A QUÍMIO JÁ COMEÇOU
A ministra Dilma Rousseff submeteu-se à primeira
sessão de quimioterapia em 20 de abril, cinco dias
antes de ela anunciar ser portadora de um câncer
no sistema linfático. Ela fará mais cinco aplicações
Adriana Dias Lopes
Marlene Bergamo/Folha Imagem
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SILÊNCIO SOBRE O TRATAMENTO
Dilma em companhia da equipe médica, durante a entrevista em que comunicou a doença |
Quadro: O câncer da ministra
No sábado 25 de abril, ao anunciar publicamente sua doença, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, falou durante três minutos sobre a descoberta do tumor maligno na axila esquerda e a cirurgia para extirpá-lo. Garantiu que enfrentaria "com força" o tratamento quimioterápico previsto para começar em dez dias: "Meu ritmo de trabalho não vai diminuir". A químio já havia começado. Na segunda-feira 20, depois de ser medicada pela primeira vez com remédios quimioterápicos, a ministra ficou baqueada. Sentiu fortes enjoos e cansaço. O mal-estar permaneceu até o dia seguinte. Na quarta-feira, Dilma retomou e cumpriu à risca uma extensa agenda de viagens pelo Rio Grande do Sul. A ministra passou razoavelmente bem pela primeira químio, mas isso não é sinal de que reagirá da mesma forma nas próximas cinco sessões. Nenhum paciente passa incólume pelas reações adversas de um tratamento desse tipo. A maioria perde cabelo, é acometida por fadiga e crises de enjoo e sofre anemia. A intensidade e o momento em que tais sintomas podem ocorrer variam muito de paciente para paciente. Portanto, apesar do otimismo em relação ao modo como o organismo de Dilma reagiu aos efeitos da primeira sessão, é impossível prever como o seu corpo se comportará nos próximos quatro meses, quando as aplicações quimioterápicas terão chegado ao fim.
O câncer da ministra foi descoberto em 20 de março. Uma tomografia de check-up feita a pedido de seu médico pessoal, o cardiologista Roberto Kalil, diretor do centro de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, identificou a presença de um gânglio de tamanho anormal (2,5 centímetros) na axila esquerda de Dilma. Para determinar a causa do inchaço, a equipe médica optou por uma cirurgia de extirpação total do gânglio. No dia 28 de março, às 7 horas da manhã, a ministra voltou ao hospital paulista. Estava em jejum de doze horas e sem beber líquido havia seis. Por volta das 10 horas, ela foi transferida do 11º andar do hospital, onde ocupava dois quartos interligados, para o centro cirúrgico, no 1º. Para que ninguém a reconhecesse ao longo desse percurso, ela foi deitada de lado na maca, usando touca e máscara cirúrgica. Dilma chegou à sala de cirurgia dormindo e foi sedada. Realizada por uma equipe de dez profissionais, a operação durou quarenta minutos. Dilma acordou meia hora depois, tomou dois copos de água e duas caixinhas de suco de laranja sem açúcar. Às 11 da noite, recebeu alta: "Estou me sentindo muito bem. Posso voltar ao trabalho".
O diagnóstico da ministra só foi fechado definitivamente vinte dias depois, com a ratificação do hospital americano MD Anderson, no Texas, de que o tumor era um linfoma não-Hodgkin. Esse tipo de câncer tem cerca de três dezenas de variantes. O tumor da ministra foi descrito pelos médicos como assintomático do tipo B e ainda no estágio I A. Há uma grande vantagem terapêutica em surpreender esse tipo de tumor em fase inicial, pois trata-se de uma forma agressiva de câncer do sistema linfático em que os tumores não tratados podem dobrar de tamanho a cada quinze dias (veja o quadro). Nesse período, segundo um amigo dos tempos de luta armada, a ministra telefonou diariamente para os médicos em busca de notícias. Em 17 de abril, chegou o resultado dos patologistas americanos confirmando a análise da equipe brasileira. Na mesma data, à noite, Dilma foi informada sobre o diagnóstico. "O que tenho de fazer agora?", perguntou ao médico. Três dias depois, voltou pela terceira vez ao Hospital Sírio-Libanês. Agora, para iniciar a quimioterapia com o objetivo de eliminar possíveis focos microscópicos da doença que passam despercebidos aos exames de imagem.
A pedido da ministra, os médicos tentaram administrar os remédios por via intravenosa nos braços. É uma maneira mais rápida, mas muito dolorosa de injetar os quimioterápicos, em geral compostos de alta toxicidade, que queimam literalmente os vasos sanguíneos de menor calibre. Dilma não suportou a dor. Os médicos decidiram implantar por meio de uma rápida cirurgia um artefato de titânio e silicone que funciona como uma porta de entrada permanente para a injeção de remédios diretamente no coração, que se encarrega de distribuí-los pela corrente sanguínea. Esse sistema de acesso venoso implantável, chamado no jargão médico de "port-a-cath", é escolhido em 90% dos casos de quimioterapia prolongada, pois elimina a dor e preserva a integridade das veias do paciente. No caso da ministra, ele foi colocado logo abaixo da clavícula direita.
A quimioterapia aplicada em Dilma é composta de cinco medicamentos: rituximabe, ciclofosfamida, doxorrubicina, vincristina e prednisona. O primeiro, vendido sob o nome comercial de MabThera, pertence à classe dos remédios inteligentes, programados para atingir apenas as células cancerosas, preservando as sadias de sua ação. Os outros quatro têm como alvo as células que se multiplicam em ritmo acelerado – além das tumorais, as capilares e as da mucosa intestinal. Por causa de sua ação indiscriminada, são eles os responsáveis pelas reações adversas que a ministra já começou a enfrentar. Salvo a queda de cabelo e a anemia, os outros efeitos devem durar, no máximo, um dia. Apenas um dos quimioterápicos, a doxorrubicina, tem efeito cumulativo. Em doses elevadas, o remédio pode desencadear complicações cardíacas. A ministra, no entanto, receberá doses relativamente pequenas e não corre tal risco.
Apesar da ameaça inerente a qualquer tipo de câncer, Dilma teve sorte. Por evoluir sem dar sinais de sua existência, o tumor do qual ela é vítima só costuma ser identificado em estágios avançados. Além disso, na imensa maioria dos casos, os fatores de risco para o linfoma não-Hodgkin são desconhecidos. "Ou seja, na maioria das vezes, não há nenhum tipo de prevenção para esse tipo de câncer", diz o médico Sergio Simon, oncologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. A única possibilidade de o linfoma não-Hodgkin ser descoberto em fase inicial, como foi o de Dilma, é por meio de exames de imagem preventivos. Mesmo no caso da tomografia feita pela ministra, o nódulo poderia não ter sido localizado. Dilma foi fazer um check-up de coronárias. O exame, portanto, mostraria apenas a região do coração. A identificação só foi possível graças à conduta criteriosa de Kalil. Ele costuma pedir para ampliar o campo de análise nos exames de imagem da região do tórax de seus pacientes. Pelo tamanho, calcula-se que o linfoma de Dilma tenha surgido há cerca de seis meses. Apesar de agressivo, é o tipo de tumor que melhor responde à quimioterapia – pelo menos 90% dos pacientes são dados como curados em dois anos.