Nenhum outro presidente americano chegou ao centésimo dia de governo com aprovação tão alta quanto Obama – 68%. Mas também como poucos ele acirrou a radicalização nos Estados Unidos
André Petry, de Nova York
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Duas guerras, uma crise econômica e, agora, a ameaça de uma pandemia de gripe. Tirando a pandemia, as encrencas enfrentadas por Barack Obama em seus primeiros 100 dias de governo são mais ou menos um fardo parecido com o que pesou antes sobre os ombros de muitos de seus antecessores na Presidência dos Estados Unidos. Para um povo que ama a metrificação dos fenômenos, as fofocas e os números redondos, os primeiros 100 dias de um novo ocupante da Casa Branca são sempre motivo de avaliação. No caso de Obama, motivo também de rapapés, demonstrações de servilismo da imprensa americana e de legítimas comemorações dos partidários. Obama ocupou o horário nobre e foi paparicado em mais uma entrevista coletiva na qual os repórteres disputaram para ver quem levantaria a melhor bola para o presidente chutar. Na entrevista, Obama disse que queria lançar "novas bases para o crescimento", apostando em educação e energia renovável, e pediu aos americanos, em um tom materno-cômico, que lavassem as mãos e cobrissem a boca ao tossir para prevenir a disseminação da gripe suína. Antes, Obama esteve em Arnold, cidade de 20 000 habitantes no Missouri, onde discursou num ginásio lotado e passou quase uma hora respondendo a perguntas bem menos previsíveis e oficiosas do que as dos repórteres. Saiu-se muito bem, diga-se.
Segundo uma pesquisa da semana passada, 72% dos americanos estão otimistas em relação aos próximos quatro anos e 68% aprovam o trabalho de Obama – na história recente, nenhum presidente chegou aos 100 dias com aprovação tão alta. Somando-se os números positivos com o desembaraço diante da massa, fica a impressão de que os EUA reencontraram a unidade. É uma percepção incompleta. O país nunca esteve tão dividido politicamente como agora, com exceção de três períodos históricos – a Guerra Civil (1861-1865), a virada para o século XX e o começo da gestão de Franklin Roosevelt, nos anos 30. Apesar da aprovação sem precedentes, Obama tem sido recordista em outro aspecto: nenhum presidente recente despertou amor e ódio na mesma intensidade (veja as tabelas abaixo). Ele tem apoio esmagador entre os democratas (88%), mas raquítico entre os republicanos (27%). Nem George W. Bush, cujo primeiro mandato foi ganho em uma eleição tão contestada que acabou na Suprema Corte, chegou aos 100 dias na Casa Branca com um cenário tão polarizado.
O racha acontece mesmo em torno de um presidente que tem se mostrado à altura dos melhores comunicadores que já passaram pela Casa Branca, como o republicano Ronald Reagan (1981-1989). Com competência e nenhum constrangimento, Obama usa todos os canais de comunicação à sua disposição, dos antigos aos mais modernos. Nestes três meses, gravou vídeo para a entrega do prêmio de música latina, no qual arriscou um buenas noches, e foi o primeiro presidente no exercício do cargo a dar entrevista para um talk-show noturno na TV. Fez videoconferência com astronautas numa estação espacial e deu entrevista pela internet no site da Casa Branca. Os internautas postaram 100 000 perguntas, e 3,6 milhões de votos foram apurados na escolha das melhores, às quais o presidente respondeu. (O negócio é tão bom que o Palácio do Planalto, fisgado pela experiência americana, está criando um blog para o presidente Lula falar com eleitores.)
Fotos Jeff Christensen/AP e Michael Wirtz/Landov |
A BELA E A FERA O veterano Bill O’Reilly e a novidade Rachel Maddow: histerias ideológicas no ar |
No bipartidarismo americano, as divisões estão cada vez mais claras e transbordaram para a sociedade em geral. Nas televisões a cabo, existe a emissora de direita (Fox) e a de esquerda (MSNBC). A bela apresentadora Rachel Maddow, 36 anos, lésbica assumida de língua cortante que nem tem aparelho de televisão em casa, é a mais recente caricatura esquerdista da MSNBC. Contratada no ano passado, ela apresenta seu programa usando tênis, que ficam ocultos sob a bancada, para "eu não esquecer quem sou". Na Fox, a burlesca voz da direita é a fera Bill O’Reilly, 59 anos, católico ardente que publica um livro por ano para bater na esquerda e escreveu uma autobiografia em que se diz especialmente equipado para lutar contra o mal. A explicação: "Nasci assim". Com a chegada do verão, já existem até acampamentos de direita e de esquerda. Na internet, direitistas criaram a Conservapédia, para contrapor-se à Wikipédia, tida como um antro de ateus, mentirosos e comunistas. Na Conservapédia, Obama é muçulmano. Em seu verbete, desfiam-se 21 argumentos para provar sua fé islâmica. Como se sabe, Obama é cristão.
A polarização americana não é, em si, uma novidade política. O que chama atenção, agora, é sua radicalização. Para a esquerda lunática, os atentados terroristas de setembro de 2001 foram orquestrados pela própria Casa Branca, e isso ainda é considerado "evidente". Para a direita histérica, a proteção do meio ambiente é um passo para a abolição da propriedade privada, razão pela qual sob a pele de um ecologista há sempre um socialista enrustido. Uma das explicações para essa radicalização está no fato de que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda, e os jovens republicanos e democratas são, ambos, mais extremados que seus antecessores. Outra explicação, que complementa a anterior, é que historicamente os dois polos divergem sobre assuntos econômicos (sobretudo gastos públicos) e direitos civis (principalmente o tratamento aos negros), mas, de uns anos para cá, começaram também a divergir sobre temas de conotação moral, como casamento gay, células-tronco, direitos iguais às mulheres, ensino religioso nas escolas. Não há nenhum sinal de que o fosso político começará a diminuir. Logo pode virar um novo complicador e criar mais um peso na carga de Obama.