A história dos professores campeões em
faltas chama atenção para uma lei benevolente
– e prejudicial ao ensino
Camila Pereira
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Nenhum fator numa escola é tão essencial ao bom ensino quanto um professor preparado para o desempenho de sua função – e isso já foi vastamente medido por pesquisas em sala de aula. Esses estudos se referem a duas qualidades fundamentais de um professor. A primeira delas diz respeito ao nível de conhecimento da matéria, um velho problema brasileiro. A outra é a sua capacidade de despertar interesse nos estudantes, estabelecer com eles uma relação de confiança e, enfim, fazer-se respeitado. Nesse caso, os professores brasileiros também patinam, antes de tudo por um motivo básico: muitos deles cultivam o estranho hábito de não aparecer para dar aula. Embora esse seja um dos maiores males da escola pública no Brasil, o absenteísmo dos professores é um fenômeno pobre de estatísticas. Os primeiros números consolidados sobre o assunto são do governo estadual de São Paulo. Como se trata, de longe, da maior rede de escolas públicas do país, os dados ajudam a dar uma idéia da realidade nacional. Em 2007, os professores faltaram ao trabalho, em média, 32 dias – 15% do ano letivo. São vários os casos de alunos que mal recordam a fisionomia de seus supostos mestres. Alguns professores praticamente não pisaram na escola. É o que revela um ranking com os campeões em ausências do estado, o primeiro do gênero feito com dados oficiais.
A lista, com dez nomes, baseou-se nas faltas médicas, motivo número 1 para o absenteísmo no Brasil. De acordo com o levantamento, esses professores apresentaram, em média, 54 atestados médicos neste ano, além de outras justificativas para mais dezenas de faltas.
Sua história chama atenção para um fato perturbador: ao faltar tanto, nenhum deles sofreu algum dano na carreira, perdeu o sono preocupado com uma eventual demissão, tampouco teve prejuízos financeiros. Isso porque todos agiram rigorosamente dentro da lei. No caso das faltas médicas, os servidores públicos estaduais, incluindo os professores, podem apresentar um novo atestado dia sim, dia não. Com isso, eles têm direito a 105 ausências devidamente perdoadas. Se fizerem uso das demais faltas garantidas pelo Estado, também a salvo de descontos no salário, os professores só precisam comparecer 27 vezes à escola. Isso num ano letivo de 210 dias. Diz a especialista Denise Vaillant, doutora em educação: "A lei brasileira é condescendente com os professores, e eles evidentemente abusam dela". O caso de quatro professores campeões em faltas do estado ilustra bem isso. Veja a seguir.
"Cansei de ser professor"
Gabas é professor e advogado: assíduo no escritório, para lá de ausente na escola |
Pergunte a qualquer funcionário do edifício Catanduva Center Comercial a opinião sobre o advogado José Roberto Gabas, 54 anos, e ele invariavelmente será descrito como um sujeito sério e assíduo no trabalho. Faça a mesma pergunta na Escola Estadual Doutor Nestor S. Bittencourt, de Catanduva, interior de São Paulo, e a resposta será algo bem diferente disso. Gabas é mais lembrado por lá como o professor de educação física que quase nunca aparece para dar aula. Alguns de seus alunos mal recordam sua fisionomia. "Praticamente não vimos o professor o ano inteiro. Ficamos com uma substituta", diz Amanda Carobeno, estudante de 14 anos. Neste ano, ele faltou 108 vezes, em 72 delas alegando algum problema de saúde. Segundo os atestados médicos, Gabas sofre de transtorno bipolar, uma doença psiquiátrica causadora de variações de humor.
Outro fato chama atenção nos relatórios recentes da escola. Suas faltas são de uma regularidade cartesiana – quase sempre às segundas, quartas e sextas. Como a lei perdoa ausências por razões médicas apenas em dias intercalados, Gabas não é descontado no salário. Ele diz: "Só essas poucas aulas já me exigem um esforço sobre-humano". A doença, no entanto, não tem sido impedimento para o exercício da advocacia. Em 2007, Gabas compareceu a audiências e consta como advogado em 23 processos registrados no Tribunal de Justiça do Estado. "Assino uma petição ou outra. Os horários do escritório não são tão rígidos quanto os de uma sala de aula." Em relação à carreira de 31 anos como professor do estado, ele já se viu motivado. Foi de dez anos para cá que Gabas se tornou o rei das faltas e licenças. Hoje só pensa na aposentadoria, prevista para 2008. "Sou um pobre coitado. Tenho péssimas condições de trabalho e ainda ganho mal. Cansei de dar aula."
Dois empregos,nenhuma aula
"Meu marido não está em casa. Ele trabalha!" Assim Vilma, a mulher do matemático Miguel Arcangel Moreno, 52 anos, respondeu à pergunta sobre o seu paradeiro. Só deixou de mencionar um fato. Naquele dia 30 de novembro, uma sexta-feira, Moreno deveria dar cinco aulas de matemática aos alunos da Escola Estadual Giuseppe Pisoni, em Rio Grande da Serra, na Grande São Paulo. Mas lá ele não apareceu. O trabalho a que se referia Vilma era na empresa Solvay, uma multinacional do setor químico, onde, aí sim, Moreno é visto todos os dias. A assiduidade num emprego contrasta com a ausência no outro. Os fatos: neste ano, Moreno não deu uma aula sequer. Em 59 vezes, justificou sua ausência com uma variedade de atestados médicos. No tal dia em que trabalhava normalmente na Solvay, ele estava oficialmente em licença médica na escola. Depois de onze anos como professor do estado, durante os quais suas ausências foram se intensificando ano a ano, Moreno conta que pediu para ser remanejado para uma das funções administrativas do colégio, um processo ainda em curso. Para tal, precisa comprovar ter alguma doença que o impeça de lecionar. Quanto a isso, ele é evasivo: "Não sou médico, portanto não posso falar nada sobre o assunto. Algum impedimento certamente eu tive para não ir à escola". Moreno não dá nenhum sinal de sentir falta da sala de aula. Ao contrário. Ele se queixa do salário e da violência: "Quero uma função administrativa justamente para fugir do contato com os alunos. O professor que vai dar aula hoje é um herói".
Falta com dia e hora marcados
Roberto Setton |
O professor Denílson Pino (de costas): "O estado me dá liberdade para faltar" |
Neste ano, o professor de filosofia Denílson Pino, 31 anos, deixou de dar 47 dias de aula aos alunos da escola Dr. Antonio Pereira Lima, na cidade de São Paulo. Todas essas vezes, ele apresentou um atestado médico para justificar sua ausência. Na realidade, Pino não sofre de nenhum problema de saúde. Quem precisa ir semanalmente ao médico é seu pai. E Pino falta à escola para acompanhá-lo. Ele não está infringindo a lei, segundo a qual faltas médicas em casos de doença na família também são permitidas. Sua história, no entanto, é uma boa ilustração de como a lei pode ser benevolente com os professores – e nem tanto com os alunos. Pino admite abertamente fazer uso máximo dela a seu favor. "Poderia pedir uma licença médica e dar à escola a possibilidade de colocar um professor no meu lugar, mas seria descontado – e isso eu não quero." Também poderia compartilhar os cuidados em relação ao pai com a irmã, mas aí entra uma segunda questão. Ela trabalha numa empresa privada. "Isso certamente a atrapalharia. Já o estado me dá liberdade para faltar." Pino também assume escolher a dedo os dias de ausência, em geral as terças-feiras. É mais conveniente assim porque, justamente nas terças, deveria dar aulas de manhã e só retornar à sala de aula quatro horas depois. O intervalo lhe consumiria tempo demais. Ele diz: "O estado não me paga para isso".
Reunião, só no sindicato
Joel Silva/Folha Imagem |
Fátima Fernandes: sindicalista e ex-candidata à prefeitura, teve 57 faltas médicas |
A professora de português Fátima da Silva Fernandes, 53 anos, ocupa um cargo de destaque na hierarquia sindical. Ela pertence à diretoria da Apeoesp, o maior sindicato de professores do país. Para quem tem uma função como essa, a rotina de reuniões e congressos é intensa. Fátima ainda acumula suas atribuições sindicais com as aulas na escola Eugênia Vilhena de Morais, de Ribeirão Preto. Pelo contrato, ela deveria dar 29 aulas semanais. Mas a realidade é outra. Neste ano, Fátima compareceu à escola apenas sete vezes. Além de eventuais licenças médicas, foram 57 as faltas justificadas por problemas de saúde. Os atestados apresentados por ela se referem a depressão. Ainda assim, a professora teve fôlego para sua agenda sindical: de acordo com dados da escola, ausentou-se seis vezes para comparecer a reuniões como diretora do sindicato, justamente no horário das aulas. Normalmente, os professores substitutos ficam de sobreaviso, no caso de o titular faltar. Diante do caso de Fátima, a situação inverteu-se. Por segurança, a professora eventual passou a ir à escola todos os dias. A sindicalista é professora efetiva do estado há vinte anos. Tem um histórico de faltas médicas, mas isso não parece abalar sua disposição para atividades políticas. Em 2004, ano em que tirou dezenove dias de licença médica, Fátima saiu candidata à prefeitura de Ribeirão Preto pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Com 2.430 votos, perdeu a eleição.
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