Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Míriam Leitão - O peso da inflação



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
5/12/2007

Há razões econômicas para a derrota de Hugo Chávez e nelas há lições para o Brasil também. A Venezuela cresce forte, numa taxa que este ano pode ser de 8%, mas a inflação sobe, o controle de preços paralisa investimentos, e o desabastecimento deixa a população sem acesso a vários produtos básicos. A inflação sempre aumenta o mau humor dos eleitores.

O crescimento, por mais desejável que seja, se vier com inflação e desabastecimento, não garante a boa vontade do eleitor com o governante. Bom lembrar isso porque a velha lição aprendida no Brasil tem sido esquecida pelos novos ideólogos do governo, que, no passado, demonstraram desprezo pelos méritos e métodos de controle da inflação. Esses novos ideólogos econômicos do governo Lula, de vez em quando, defendem "um pouco" mais de inflação. Acham que ela é saudável, bem-vinda, se for para "garantir" mais crescimento. O desenvolvimento só é sustentável se mantiver a economia estabilizada. Isso sabemos mais do que os venezuelanos, porque aqui a nossa velha inflação foi muito mais longe.

A inflação na Venezuela foi de 4,4% em novembro e, no ano, está em 18%. Isso reduz a capacidade de compra, principalmente dos mais pobres, que são a base política de Chávez. O que o governo, por um lado, dá com distribuição de dinheiro nas políticas sociais para os mais pobres, tira do outro quando os preços se elevam. Há outro fator mais perturbador ainda: o desabastecimento. Faltavam produtos nas prateleiras, inclusive nos mercados populares, onde o governo venezuelano oferece itens a preços mais baixos. Isso vem do remédio que Chávez tem usado para combater a inflação: o controle de preços. Inflação, desabastecimento e controle de preços tiraram o conforto econômico que o crescimento poderia ter dado. O conflito explícito de Chávez com os empresários, seus seguidos sinais de que as regras dos contratos só valerão até quando ele quiser estão fazendo com que a economia venezuelana desperdice o boom petrolífero. Vive-se dele no presente, mas sem maiores investimentos para o futuro. É por isso que um dos apelos dos líderes estudantis foi feito em direção aos empresários: que invistam para criar emprego. Um número alto de crescimento do PIB não adianta muito quando está baseado apenas no preço de uma commodity que disparou no mercado internacional.

Uma importante lição política foi explicada pelo vice-chanceler Vladimir Villages. Ele afirmou que, mesmo sob o risco de expurgo ou de ser chamado de traidor, diria o que pensa, porque ajuda mais quem diz a verdade ao presidente. Ele acha que Hugo Chávez subestimou a dissidência externa. O vice-chanceler disse que, particularmente, discorda de vários pontos da proposta de reforma, como um artigo que suspende a liberdade de informação e o devido processo legal em casos de exceção. Nós no Brasil aprendemos bem com o AI-5 o que pode dar esta suspensão de direitos.

Há outra lição para nós que todo o caso da Venezuela encerra. Hugo Chávez nasceu dos erros dos partidos tradicionais que, por décadas, controlaram a política venezuelana sem ter um projeto para incluir a enorme massa de pobres e extremamente pobres do país. Eles erraram durante anos ao oferecer à Venezuela o espetáculo da corrupção endêmica e do distanciamento entre representante e representado. Isso vai erodindo a confiança na democracia. Diante de um líder de forte carisma e vontade férrea, como Chávez, em vez de combatê-lo, eles se omitiram. Quando decidiram boicotar as eleições parlamentares, deram um enorme tiro no pé. Mesmo assim, muitos líderes políticos tradicionais estavam pregando a abstenção. Acertaram os que conclamaram ao voto, os que fizeram a campanha do "não", os que vigiaram urna a urna, como fizeram os estudantes. Que falta nos faz aqui um movimento estudantil independente, que não viva de subsídios públicos!

Hugo Chávez errou quando não avaliou que seus atos estavam incomodando gente demais: o poder excessivo assustou até os seus amigos íntimos; a inflação e o desabastecimento desanimaram os mais pobres; sua declaração de ficar até 2050 uniu aliados, inimigos e seguidores; o fechamento da RCTV pôs na rua quem andava desestimulado; suas propostas que admitiam confisco de propriedade assustaram até os pequenos proprietários que se encantavam com seu discurso nacionalista. Assustou gente demais e perdeu.

Que ele é trapalhão, autoritário, com projetos ditatoriais todos sabiam. O crescimento econômico, no entanto, poderia tê-lo ajudado, com os extraordinários preços do petróleo e o comércio com os Estados Unidos batendo em US$70 bilhões. Mas a inflação, velho inimigo perturbador da América Latina, corroeu o entusiasmo com o crescimento.

Importante reter de toda esta história: elites políticas que aceitam que a corrupção se torne endêmica estão minando a confiança do eleitor no sistema democrático, abrindo o caminho para um aventureiro carismático e mistificador. Manipulações das regras da democracia, rompendo princípios como a alternância do poder, não são aceitas nem num país onde o presidente é popular e tem excessivo controle sobre as instituições. Na economia, ficou mais uma vez registrado que, se a inflação não estiver rigorosamente controlada, o crescimento não se mantém por muito tempo, e o ambiente econômico fica desfavorável ao governante. Portanto alquimias econômicas que partem da idéia de permitir "alguma inflação" têm efeito bumerangue: acabam voltando-se contra o governante.

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