O Globo |
5/12/2007 |
O Senado cavou mais um pouco o fosso que o separa da opinião pública com a segunda absolvição do senador Renan Calheiros em poucos meses, com o agravante de que, desta vez, ele teve mais votos a seu favor do que da vez anterior. A repetição da absolvição em si já representava uma afronta ao sentimento generalizado na população, que na sua maioria se manifestou, em diversas pesquisas, a favor da cassação do senador alagoano nas duas vezes. O fato de ter recebido mais votos ontem é demonstração de que os senadores não se incomodam com a repercussão de seus atos, embora vários deles tenham advertido que a decisão que fosse tomada poderia ter conseqüências graves, a médio e longo prazo, para a instituição, e até mesmo para a democracia. Um exemplo de como os senadores atuam com duas caras, uma para a opinião pública, outra para a comunidade interna, é a repetição também da mentira coletiva. Nada menos que 43 senadores declararam em uma enquete da "Folha de S.Paulo" que votariam pela cassação de Renan, o que bastaria para cassá-lo. Na hora do painel eletrônico secreto, apareceram apenas 29 votos pela cassação. Essa afronta à opinião pública foi denunciada em vários discursos no plenário, mas de nada adiantaram as advertências e as cobranças. Tudo saiu como o combinado, inclusive com a renúncia de Renan à presidência do Senado no início da sessão. Desta vez, a oposição não pode nem atribuir somente ao PT a absolvição do alagoano. Renan havia desistido da renúncia, mas sua resistência a abrir mão do cargo incomodava mesmo seus aliados, que temiam que ele, como da primeira vez, não cumprisse o combinado e cismasse de reassumir o posto depois de absolvido. A sessão ter sido aberta, transmitida pela televisão, permitiu que o telespectador comum pudesse constatar a relação de compadrio entre os senadores, mesmo aqueles que anunciaram que votariam pela cassação de Renan Calheiros. O temido senador Pedro Simon, por exemplo, considerado um espelho da ética entre os políticos, declarou estranhamente que tinha "muito respeito" pelo ex-presidente do Senado. Ora, como é possível ter-se respeito por um político que, segundo o próprio Simon, quebrou o decoro parlamentar? Outro senador dos mais agressivos, o líder do PSDB, Arthur Virgilio, fez declarações de respeito e amizade a Renan da tribuna do Senado, embora tenha afirmado que votaria a favor de sua cassação. Contestando o argumento de alguns senadores, de que seria preciso provas mais contundentes para a condenação de Renan Calheiros, o relator do processo no Conselho de Ética, senador Jefferson Perez, alegou que no processo criminal esse critério é imprescindível, pois a condenação tira do acusado o seu bem mais precioso, que é a liberdade. Num julgamento político, alegou Jefferson, a conseqüência seria a perda dos direitos políticos e a inelegibilidade por determinado tempo, podendo o acusado continuar a sua vida normalmente, e por isso o conjunto de indícios era suficiente para caracterizar a quebra de decoro. O corporativismo que marca o Senado, que uma vez foi definido pelo ex-senador Darcy Ribeiro como "o céu na terra", com a vantagem de que para chegar lá não é preciso morrer, ficou explícito na defesa do senador Renan Calheiros, que a todo o momento lembrava que a cassação o tornaria inelegível até o ano de 2022, uma "condenação à morte cívica", como ressaltou em sua defesa. Houve um momento em que Renan quase chorou, e deixou entrever uma possível tragédia ao afirmar que lhe tirar a possibilidade de atuar na política pelos próximos 15 anos seria acabar com a razão de sua existência. Mesmo tendo renunciado ao cargo de presidente do Senado no início da sessão, Renan Calheiros foi tratado com toda a deferência pelos demais senadores, tendo sido permitido a ele ultrapassar em muito o tempo de defesa. O presidente interino, senador Tião Viana, deu demonstrações de autoritarismo antes mesmo de se iniciar a sessão, ao ameaçar os senadores que revelassem seu voto com um processo de quebra de decoro, pois o voto secreto estava mantido. Esse zelo excessivo pelas supostas regras da sessão, que na vez anterior já provocara até mesmo pancadaria entre os seguranças da Casa e alguns senadores e deputados oposicionistas, não se justificava, pois o sigilo do voto é determinado em benefício do parlamentar. Se este o revela, não comete nenhum ato antiético. Se houvesse algum senador disposto a radicalizar a discussão, a conduta do presidente interino é que deveria ser questionada por seus pares, já que atenta contra a inviolabilidade do parlamentar por suas opiniões, palavras e votos. Mas o que prevalece no Senado atual é o espírito de corpo, e os interesses particulares de cada um. Foi vergonhoso ver que, logo depois da renúncia de Renan, momentaneamente os senadores esqueceram-se do que estavam tratando para começar as tratativas sobre a sucessão da presidência do Senado. Essa demonstração pública de ganância pelo poder deve ter dado tranqüilidade a Renan Calheiros quanto a sua absolvição. E ao governo, quanto à aprovação da CPMF. O então vice-presidente da República, Pedro Aleixo, quando da decretação do AI-5, deixou para a História um comentário sobre a conseqüência daquele ato ditatorial: "O problema é o guarda da esquina", registrou ele, numa referência à falta de controles legais que impedissem os desmandos em todos os escalões do governo. Este é o caso da censura imposta pela Infraero ao anúncio do livro de Diogo Mainardi nos aeroportos do país. Mesmo que a decisão não tenha sido um ato do governo, mas de um funcionário do quinto escalão, como ele supõe, é sinal de que a sensação de impunidade já chegou ao guarda da esquina. |
Entrevista:O Estado inteligente
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