O Estado de S. Paulo - 05/01/2012 |
Os milharais de Iowa já serviram de cenário para filmes de terror de terceira classe. Na sua mediocridade, nenhum se compara ao espetáculo proporcionado pelos pré-candidatos republicanos que disputaram as primárias de anteontem. A julgar por ele, os republicanos "transformaram-se num bando selvagem, louco, do qual emanam noções excêntricas e irresponsáveis que os colocam à margem da corrente principal da política americana", como escreveu Michael Medved, um analista conservador. De fato, em Iowa triunfou Nêmesis, a deusa da retaliação: a primária inicial da campanha republicana assinala o fracasso do movimento conservador abrigado sob a abóbada do Tea Party.
Medved referia-se especificamente a Ron Paul, um ponto fora da curva mesmo pelos padrões do Tea Party. Paul é um libertário, no curioso sentido que o termo adquiriu nos EUA. Isolacionista radical, pacifista extremado, o texano atraiu um cortejo de adeptos antissemitas, arautos das conhecidas teorias conspiratórias sobre o 11 de Setembro que fazem tanto sucesso entre esquerdistas e ultranacionalistas brasileiros. Contudo, efetivamente, ele articulou sua campanha em torno da proposta de abolição do banco central e da ideia de "anulação", um suposto direito dos Estados de rejeitar leis federais das quais discordam. A ideia condensa um desejo de retorno à época da Crise da Anulação de 1832, quando o presidente Andrew Jackson enfrentou um ensaio de insurreição tributária da Carolina do Sul.
Abstraindo o folclore sombrio, Paul não está tão distante dos demais pré-candidatos da direita republicana - isto é, todos eles, com a exceção parcial e qualificada de Mitt Romney. O programa utópico que os aproxima é o impulso de suprimir a História americana, restaurando uma mítica idade de ouro anterior à democracia de massas e reinventando o país de colonos protestantes (e brancos) submerso no oceano da modernidade. As diferenças incidem apenas sobre o lugar do passado selecionado por cada um como momento perfeito da operação restauradora.
Rick Perry, governador do Texas, fez soar as trombetas de uma guerra contra a imigração ilegal, prometendo empregar drones (aeronaves não tripuladas) e deslocar milhares de tropas para selar a fronteira com o México. Newt Gingrich, apertando com todos os dedos a tecla do nativismo, sugeriu transferir para comissões municipais a prerrogativa de decidir sobre o destino dos imigrantes, enquanto Michele Bachmann insistia no projeto de uma cerca impenetrável ao longo de toda a extensão da fronteira meridional. Rick Santorum, por sua vez, ergueu o estandarte da "Fé, Família e Liberdade", convertendo o palanque eleitoral em púlpito de uma pregação antissecularista expressa em linguagem fundamentalista. Abraham Lincoln e a Guerra Civil? Franklin Roosevelt e o New Deal? Lyndon Johnson e a Lei de Direitos Civis? O "bando selvagem" de pré-candidatos do Tea Party não alcançou um consenso, mas eles estão convencidos de que o declínio dos EUA começou em algum desses três episódios catastróficos da trajetória da nação construída pelos colonos originais.
Na mitologia grega, os epígonos são os filhos dos Sete Contra Tebas, que conquistaram e destruíram a cidade, vingando a morte de seus pais. Os pré-candidatos do Tea Party apresentam-se como epígonos de Ronald Reagan, mas não passam de discípulos falsos - e a cidade que depredam é a herança política de seu herói. Reagan era um conservador solar, avesso à melancolia raivosa dos nativistas e fanáticos religiosos. "Um governo não pode controlar a economia sem controlar as pessoas" - uma de suas linhas mais célebres sintetizava a insurreição conservadora contra a expansão das políticas sociais, mas não excluía o pragmatismo nem impedia compromissos bipartidários: sua reforma tributária de 1986, que contou com amplo apoio dos democratas, aumentou os impostos incidentes sobre as empresas. Em contraste, os epígonos insistem, como doutrinários incuráveis, numa receita suicida de equilíbrio orçamentário baseada exclusivamente em cortes de gastos públicos.
O sistema americano de primárias tende a inclinar os candidatos para as margens do espectro político, onde se situa a base militante dos partidos. À primária republicana de Iowa acorre, geralmente, menos de um sexto dos 645 mil eleitores registrados do partido e em 2008 a idade média dos participantes girava em torno de 60 anos. Os milharais formavam, em tese, o cenário ideal para o Tea Party impor uma fragorosa derrota ao moderado Romney - que, além de tudo, é um fiel da Igreja Mórmon. Desta vez, contudo, assistiu-se a uma inversão de papéis: os discursos extremistas do "bando selvagem" do Tea Party convenceram parcela significativa dos participantes de que tais personagens carecem de viabilidade na futura disputa presidencial. O insucesso dos radicais na primeira batalha praticamente define os rumos da campanha inteira. Romney, que prudentemente ficou acima da briga de facas, deve ser coroado desafiante de Barack Obama nas primárias da Flórida, em menos de um mês.
Os marqueteiros de Obama deliciaram-se com o espetáculo falimentar oferecido pelo Tea Party e, ansiosos, aguardam as imagem das inevitáveis reverências que Romney fará ao "bando selvagem". Todavia eles sabem que Iowa terá escassa influência sobre uma disputa presidencial em que Romney pode até mesmo triunfar por default. A relevância do que aconteceu em meio aos milharais não se traduz na escala das circunstâncias eleitorais, mas na da história política americana. A "revolução conservadora" deflagrada por Reagan percorreu um ciclo degenerativo completo, estiolando-se como uma virulenta utopia regressiva. Os epígonos nada têm a oferecer à nação - embora, mais do que nunca, sejam capazes de contaminar a sociedade americana com o vírus da intolerância e o sistema político do país com o da paralisia.
|
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
quinta-feira, janeiro 05, 2012
Os epígonos despedem-se em Iowa Demétrio Magnoli
Arquivo do blog
-
▼
2012
(2586)
-
▼
janeiro
(218)
- O iPad, os chineses e nós Pedro Doria
- Naufrágio do euro continua Gilles Lapouge
- Longe de uma solução Celso Ming
- É o câmbio, é o câmbio... - Denfim Netto
- O dono do voto Dora Kramer
- A última chance Merval Pereira
- Contágio português Miriam Leitão
- TCU, o mordomo da hora - Denise Rothenburg
- Conselho a Cabral Ricardo Noblat
- Questão de decoro Melchiades Filho
- O tango do crioulo doido Roberto Giannetti da Fon...
- A fraude na renúncia Demóstenes Torres
- Funai e meio ambiente Denis Lerrer Rosenfield
- Da janela vê-se Primrose Hill Ivan Lessa
- O sobrenatural sumiço da direita Eugênio Bucci
- Aperto na lei seca-Dora Kramer
- No mesmo barco Merval Pereira
- Alianças cruzadas - Gaudêncio Torquato
- Juventude, velhice Danuza Leão
- Nasce o poema Ferreira Gullar
- No mesmo passo - Míriam Leitão
- Bazucas em ação - Celso Ming
- Meta de crescimento - Amir Khair
- BC e Fed, a meta é crescer - ALBERTO TAMER
- Capitalismo sem rumo? - SUELY CALDAS
- Governo do trilhão - MIRIAM LEITÃO
- Energia cara demais - CELSO MING
- Manter o sonho - MERVAL PEREIRA
- Oposição sem rumo - MARCO ANTONIO VILLA
- Prazeres da "melhor idade" - RUY CASTRO
- Pleno emprego e juros - CELSO MING
- O que representa o Obelisco - JOÃO MELLÃO NETO
- Meta de juros - MIRIAM LEITÃO
- Alta ansiedade - DORA KRAMER
- Darth Vaders de toga - NELSON MOTTA
- Tão perto, tão longe - HÉLIO SCHWARTSMAN
- Por que alguns malfeitos tornam-se escândalos? - M...
- Merval Pereira - Em busca do caminho
- Tráfico e classe média Carlos Alberto Di Franco
- 2012: sem catástrofe, mas ainda dificil José Rober...
- Kassab e o espírito do tempo - VINICIUS TORRES FREIRE
- G-20 diz não à zona do euro - ALBERTO TAMER
- Saindo do faz de conta - SUELY CALDAS
- A tempestade pode não vir - CELSO MING
- A competitividade chinesa - MERVAL PEREIRA
- Que rei sou eu? - MÍRIAM LEITÃO
- Dura Lex - FERREIRA GULLAR
- Fora da curva - DORA KRAMER -
- Paris 2012 - DANUZA LEÃO
- As nossas coisas atípicas - GAUDÊNCIO TORQUATO
- "Olha a cabeleira do Zezé" - Carlos Brickmann,
- Travas no Mercosul - CELSO MING
- Justiça degradada - EDITORIAL FOLHA DE SP
- O verdadeiro problema - EDITORIAL O ESTADÃO
- A China inova - MERVAL PEREIRA
- Dúvidas do álcool - MIRIAM LEITÃO
- Transparência pública - HÉLIO SCHWARTSMAN
- Controle da magistratura - IVES GANDRA DA SILVA MA...
- Balé paulistano - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Carros de sobra - MIRIAM LEITÃO
- O STF e a maconha - MERVAL PEREIRA
- Enquanto Inês é viva - ELIANE CANTANHÊDE
- Os direitos humanos do dinheiro - VINICIUS TORRES ...
- Todos por um Dora Kramer
- Pior sem elas Celso Ming
- Sombras do passado Nelson Motta
- O crescimento necessário Rogério Furquim Werneck
- Em torno do verbo blindar Fernando Gabeira
- É preparar-se para o pior - CELSO MING
- Na descendente - MIRIAM LEITÃO
- O parto da montanha - DORA KRAMER
- Bom sinal - MERVAL PEREIRA
- Havel, cebolas e cenouras - DEMÉTRIO MAGNOLI
- Crise? Não ligue para ela... Alberto Tamer
- BNDES - mais recursos do Tesouro Roberto Macedo
- No meu tempo Zuenir Ventura
- Arrogância - ANTONIO DELFIM NETTO
- O vento bom - MIRIAM LEITÃO
- Sem oposição - MERVAL PEREIRA
- Corpo & alma - ROBERTO DaMATTA
- Especulações chinesas - VINICIUS TORRES FREIRE
- Efeito fio de cabelo Celso Ming
- Cabeça de juiz Dora Kramer
- PCHs - em coma induzido Adriano Pires e Abel Holtz
- Nova defesa para o cofre Rolf Kuntz
- ... E os oligarcas ainda mandam José Nêumanne
- De aço ou renda DORA KRAMER
- A charada do etanol - EDITORIAL O ESTADÃO
- O primeiro ano do governo Dilma - LUIZ CARLOS MEND...
- Abuso legal - DENIS LARRER ROSENFIELD
- Oposição por dentro - JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
- Povo bobo - RICARDO NOBLAT
- O Etanol e política - JOSÉ GOLDEMBERG
- Gregos e troianos - GEORGE VIDOR
- A China não é mais aquela Vinicius Torres Freire
- Sem futuro - SUELY CALDAS
- Os sem direitos - MIRIAM LEITÃO
- Reflexões sobre a USP - CELSO LAFER
- O aparelho dos Coelho antecedeu o do PT - ELIO GAS...
- Desemprego, o risco esquecido - ALBERTO TAMER
-
▼
janeiro
(218)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA