O GLOBO - 07/01/12
O Brasil terá de pensar mais profundamente a política de imigração. O evento de agora é o dos haitianos que entram pelas portas de Brasileia, no Acre, e Tabatinga, no Amazonas. O governo vem atendendo à emergência do desembarque: 1.600 vistos já foram concedidos e mais dois mil estão em análise. Mas chegou a hora de avaliar de que forma lidar com novas ondas migratórias.
O Brasil é um país construído pela imigração desde sempre. Houve a vinda forçada, pelo tráfico e escravidão, que vitimou africanos por três séculos. Houve também o desembarque espontâneo de esperançosos alemães, italianos, japoneses, judeus, sírios, libaneses, turcos, pomeranos e tantos outros que se juntaram aos povos das primeiras nações e aos colonizadores portugueses. Isso, em resumo, somos nós. Temos orgulho dessa mistura, ainda que não devamos cometer a ingenuidade de negar as discriminações. Temos, sim, o racismo entre nós, mas podemos combater esse defeito. Em outros países há divisões irreconciliáveis.
Hoje, são haitianos e bolivianos que vêm à procura de uma vida melhor. O país está crescendo, está entre os primeiros do mundo, já se distanciou na América do Sul em tamanho econômico. É natural que desembarquem aqui trabalhadores deslocados em seus países.
Diante de quatro mil haitianos chegando nos últimos meses, o governo tratou de encontrar uma forma mais rápida de abrigá-los. Como O GLOBO mostrou, o canal da vinda está sendo construído pelos mesmos intermediários que levaram, mediante quantia em dinheiro, mexicanos e alguns brasileiros para os Estados Unidos. Chegaram e pediram refúgio. Como não estão perseguidos politicamente ou etnicamente em seu país, o Comitê Nacional de Refugiados encontrou a fórmula da "residência humanitária". Dessa maneira, o Ministério do Trabalho, através do Conselho Nacional de Imigração, já deu documentos a 1.600 estrangeiros. O governo acha que, ao todo, 4.000 vieram em 2011 e tem informações de que novas ondas estão desembarcando neste começo do ano.
Na emergência, o governo mobilizou vários órgãos. O Conselho de Refugiados aceitou os que chegaram, o Trabalho deu documentos, a Conab mandou 14 toneladas de alimentos, o Desenvolvimento Social se mobilizou. O Ministério da Justiça fala em aumentar forças de segurança, Acre e Amazonas se esforçam e pedem ajuda. Há casos de empresários, como este jornal mostrou ontem, que já utilizam de forma legal a nova mão de obra.
É preciso lembrar, recentemente, de casos de bolivianos encontrados por fiscais trabalhando em condições degradantes em plena São Paulo e alguns para empresas que fornecem para grandes grifes. O risco de que alguns imigrantes caiam em teias que aprisionam até brasileiros é grande. Na semana passada, o Ministério do Trabalho divulgou que aumentou para 251 o número de empresas da lista suja do trabalho escravo. Entraram na lista, por terem sido apanhadas aprisionando trabalhadores em condições análogas à da escravidão, 48 empresas. Brasileiros com pouco nível educacional e com baixa empregabilidade acabam capturados pelas redes que prometem garantias que não fornecem. Há na lista grandes usineiros, pecuaristas e até caso de uma empreiteira que participa do consórcio para a construção de Jirau, obra na qual estatais são sócias e que é financiada pelo governo. O Brasil tem seus velhos defeitos e por isso o risco de que novas ondas migratórias, por razões humanitárias, acabem alimentando esse trágico mercado é muito grande.
O país precisa pensar nisso de forma estrutural porque há chance de que continue a atrair novos imigrantes, principalmente se for mantido - como todos querem - esse momento de aumento de riqueza. Há inclusive interesse em mão de obra qualificada vir para o país. Recentemente, no programa de anistia a imigrantes sem documentos legais, criado pelo governo Lula, milhares de estrangeiros conseguiram seus documentos, não depois de muito penar para superar a conhecida burocracia brasileira.
Antes que a vinda de haitianos se transforme num grande problema social, antes que bolivianos pobres continuem a alimentar a cadeia do trabalho sem a devida proteção, antes que os atravessadores do trabalho escravo tenham mais oferta de brasileiros e estrangeiros para os seus crimes, o país precisa se organizar. A política de imigração não pode ser improvisada. O Brasil precisa saber o que quer e como administrar o interesse de nacionais de outros países virem para cá. Não pode apenas correr atrás do fato consumado criado pelos coiotes.
Hoje eles podem ser tratados com boa vontade, mas amanhã, diante de um cenário mais difícil para emprego ou após algum conflito, os recém-chegados podem ser tratados como invasores. Para evitar isso e preservar nosso patrimônio de pátria de povos múltiplos é que o governo precisa estudar melhor esse momento. O Brasil, nunca é demais dizer, tem virtudes e defeitos. Exalta a diversidade, mas discrimina. Convive com as diferenças, mas distribuiu desigualmente as oportunidades. O país se miscigenou, mas mantém desigualdades raciais. O governo não deve improvisar diante desse desafio. É a hora de liderar o processo.