O Estado de S.Paulo - 08/01/12
Pela incrível diferença de apenas 8 votos, num total de quase 140 mil, Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, venceu as primárias do Partido Republicano no Estado de Iowa, na noite da última terça-feira. Deu-se, assim, a largada para a corrida presidencial à Casa Branca, na raia do Partido Republicano. Na outra, o presidente Barack Obama espera a definição do seu adversário. Em novembro haverá eleições gerais para a Presidência e grande parte do Congresso e dos governos estaduais.
Nenhum dos principais aspirantes republicanos à Casa Branca parece ter compreendido que na nova ordem internacional não existe mais espaço para uma "atitude imperial" dos Estados Unidos. Nem mesmo o mais moderado, Mitt Romney, para não falar em Newt Gingrich, até Iowa considerado o mais difícil adversário do ex-governador de Massachusetts. As credenciais conservadoras do ex-líder da bancada republicana na Câmara datam do período em que moveu oposição sem trégua a Bill Clinton.
Em novembro Gingrich declarou que os Estados Unidos deveriam contemplar a possibilidade de atacar o Irã não apenas para deter o desenvolvimento do programa nuclear daquele país, mas também para promover a mudança do regime dos aiatolás. Pelo visto, nada aprendeu sobre os limites das intervenções militares dos Estados Unidos, mais uma vez demonstrados no Iraque e no Afeganistão. Como se não bastasse, afirmou que convidaria para o cargo de secretário de Estado (equivalente ao ministro das Relações Exteriores no Brasil) o ex-embaixador de George W. Bush na ONU John Bolton, uma espécie de "cão raivoso" do unilateralismo norte-americano.
A magra vitória de Romney em Iowa sugere que ele ainda vai suar a camisa para assegurar sua indicação (somados, os outros candidatos tiveram mais do que o triplo dos seus votos). Haverá de provar que não é um "falso", mas um "verdadeiro conservador", como se declaram os seus oponentes. Ou seja, precisará mostrar-se mais arrogante em política externa, mais "família" no campo dos valores e mais radicalmente anti-imposto e antiestatal na área econômica. Além de evitar que o tema religioso cresça sub-repticiamente: Romney é mórmon e a base do Partido Republicano, predominantemente evangélica, parte dela "fundamentalista".
O programa de Romney para a política externa não contém as temeridades ditas por Gingrich. Entre os princípios ali declarados está a preferência pela ação multilateral e pelo uso da força militar apenas depois de esgotados todos os meios diplomáticos pacíficos. A mensagem política do documento, porém, vai na direção oposta. Ela está estampada no próprio título dado ao programa: The New American Century.
O slogan remete a uma instituição de mesmo nome que formulou as principais teses do pensamento neoconservador entre o final dos anos 90 e a metade da primeira década deste século. O governo de George W. Bush bebeu muita água dessa fonte, principalmente em seu primeiro mandato, quando enfiou o país em duas guerras, desconsiderou solenemente instituições e acordos internacionais e estremeceu, com essas atitudes, as relações dos Estados Unidos com alguns dos seus principais aliados. Aliás, nada menos que 15 dos 22 assessores de política externa de Romney trabalharam no governo de Bush, o filho.
Se o principal candidato dos republicanos recorre novamente ao imaginário do "Novo Século Americano" é porque ele está vivo. Parte da sociedade americana recusa-se a aceitar o declínio relativo do poder norte-americano na ordem internacional. Hoje os Estados Unidos se defrontam não apenas com novos polos de poder no exterior, mas também com limitações financeiras internas que impedem o país de "pagar qualquer preço, carregar qualquer fardo" - como disse John F. Kennedy no auge do poder norte-americano - para fazer valer os seus interesses no mundo. Aliás, reduziu-se muito o prestígio da ideia de que esses interesses, porque amparados em valores universais, coincidiriam, em última instância, com os melhores interesses da "comunidade internacional". Um presidente que ignore essas limitações é um perigo para os Estados Unidos e para o mundo, principalmente se respaldado por uma maioria nas duas Casas do Congresso.
Republicanos realistas, como Henry Kissinger, sabem disso muito bem. Na introdução ao seu livro Diplomacy, o ex-secretário de Estado do presidente Richard Nixon escreve que os Estados Unidos vivem, pela primeira vez na História, dentro de uma ordem internacional da qual não se podem retirar e que tampouco podem dominar. O isolacionismo foi a atitude predominante dos Estados Unidos na primeira metade do século 20, com a exceção marcante da participação na 1.ª Guerra Mundial. A propósito, o isolacionismo radical é parte do programa de Ron Paul, o mais excêntrico dos aspirantes republicanos à Casa Branca. Já o domínio norte-americano, ao menos no mundo não comunista, foi a marca da segunda metade do século 20, que culminou com o colapso do socialismo real e da União Soviética. Kissinger previu que essa situação de incontrastável hegemonia norte-americana seria de curta duração. Para ele, os norte-americanos têm de incorporar a noção de equilíbrio de poderes à sua política externa, no pressuposto de que os diferenciais de poder entre os Estados Unidos e um conjunto de outras nações serão decrescentes no longo prazo. Em tempo: Kissinger escreveu isso em 1994.
Curiosamente, quem melhor entendeu esse diagnóstico não foram os republicanos, mas Barack Obama. Desde que assumiu a Presidência, o democrata outra coisa não fez, na política externa, senão tentar concertar os estragos do surto de prepotência unilateral do governo George W. Bush e ajustar a política externa americana à nova realidade do mundo. Por isso, o melhor que pode acontecer é o primeiro presidente negro dos Estados Unidos continuar a morar na Casa Branca nos próximos quatro anos.