O Estado de S.Paulo - 08/01/12
Apolítica, costuma lembrar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é a arte de criar condições para tornar possível o necessário. Para outros, como a escritora chilena radicada em Cuba Marta Harnecker, é a arte de construir forças capazes de modificar a realidade, tornando possível um amanhã que hoje parece impossível. Entre esses dois pensamentos e o pragmatismo que faz parte de nossa cultura política, deve ser recebida a recente manifestação de próceres do PMDB e do DEM, hoje jogando no tabuleiro dos contrários, a respeito de eventual fusão dos dois entes partidários.
Essa possibilidade, que gera surpresa na esfera política pela condição ímpar dos contendores - de um lado, o principal parceiro do PT na aliança governista e, de outro, o aliado incondicional do PSDB na frente federal da oposição -, seria efetivada antes das eleições de 2014, alicerçando-se na hipótese de parceria bem-sucedida no pleito municipal de outubro deste ano. Feitas as contas das planilhas, peemedebistas e democratas analisariam o seu desempenho municipal para tomar uma decisão que, seguramente, alteraria profundamente as regras do jogo ora vigentes.
O que motiva a cúpula dos dois partidos? A vontade comum de abrir um novo capítulo na política, na crença de que o atual sistema se encontra engessado ou, em termos claros, aprisionado aos tabuleiros do PT e do PSDB, que há praticamente duas décadas compõem a dualidade mandonista da Nação.
Se ninguém furar o bloqueio o modelo continuará intocável. O fato é que o Brasil vai bem na economia e mal na política. Os avanços econômicos decorrem de políticas adequadas e corajosas e das riquezas do nosso imenso território. O atraso político deriva da manutenção de um sistema institucional defasado, em que sobressaem um Parlamento apequenado ante o Executivo, um presidencialismo de cunho imperial e um Judiciário com propensão legislativa. Se o PIB econômico se move pelo piloto automático, o PIB político é puxado por muitos pilotos que não sabem para onde seguir. Não é de surpreender que a política gire em círculos. Portanto, na política está o maior desafio nacional. Dela dependem a modernização das estruturas, os padrões da administração pública, os costumes e métodos. Por onde e como começar um processo de mudança? A resposta aponta invariavelmente para a reforma político-eleitoral, abrangendo sistemas de voto, normas partidárias e estatutos como cláusula de barreira, financiamento de campanhas, formação de coligações, etc. E por que tal escopo não é implantado? Ora, por falta de vontade política. A iniciante interlocução entre PMDB e DEM visa a criar as condições para tornar possível o necessário, ou seja, aperfeiçoar a forma governativa. A manutenção do status quo interessa, sobretudo, ao PT e ao PSDB.
Esses dois partidos se têm revezado desde 1994 no comando do País. Ambos usaram (e usam) as bengalas de outras legendas para ganhar apoio no Parlamento e, assim, garantir a governabilidade. Com ofertas no balcão de recompensas - ministérios, autarquias, um quadro com 20 mil postos na administração federal - as duas forças conseguiram registrar boas marcas em seus períodos. Aduz-se, portanto, que interessa a ambas manter a modelagem que lhes proporciona seguir ocupando o Palácio do Planalto - ao PT vale tudo para expandir o domínio e o PSDB se esforça para voltar a ser o figurante principal. A polarização está em seu DNA. Para encobrir essa posição e atenuar a desconfiança de parceiros dos dois contendores se passou a falar em presidencialismo de coalizão. A expressão, inicialmente chancelada por Sérgio Abranches, tem sido empregada desde os tempos de FHC para designar uma administração compartilhada. Ou seja, serve ao propósito de transferir aos aliados o sentimento de pertinência, de corresponsabilidade governativa.
Ao dar guarida ao conceito, o PMDB, com a estrutura partidária mais capilar, assumiu a defesa da administração colegiada. Os programas dos ministérios estariam sob a responsabilidade dos partidos, que deveriam ser cobrados por seu desempenho. Mas se tornou evidente que a coalizão jamais ultrapassou o limite da retórica, nunca se concretizou. O tucanato não repartiu com ninguém as glórias do Plano Real - lembre-se que o partido tem sido acusado de isolamento. No caso do PT, fica evidente que o partido se apropriou de todos os méritos da era Lula, puxando também para si este ensaio do ciclo Dilma. Ademais, o PT opera como religião: pratica liturgia exclusivista e se distancia de outros, fazendo ouvidos moucos ao tal presidencialismo de coalizão. Dessa forma, o conceito perde substância, servindo apenas como enfeite. A alternativa aventada por PMDB e DEM, então, objetivaria adicionar novos eixos à roda política, sair do corredor polonês em que se encontra o quadro partidário. A fusão das siglas formaria o maior aglomerado político do País, servindo como aríete para quebrar a polarização entre petistas e tucanos.
Para conferir credibilidade ao processo a nova agremiação haveria de produzir alentado projeto para a Nação, abrigando ideários, programas e um compromisso: a implantação efetiva do presidencialismo de coalizão. Essa proposta teria o condão de atrair levas de parceiros, agregando condições para fazer avançar o sistema político. Não significaria, como se pode imaginar, uma opção pela oposição. A nova agremiação poderia continuar a integrar a estrutura governista, mas imporia a mitigação do sistema presidencialista e a entronização da administração compartilhada. Apesar de não conter todas as características do parlamentarismo, o presidencialismo de coalizão dele se aproximaria pela responsabilidade dos partidos na formulação e execução das políticas.
O pleito deste ano se prestaria, assim, a ser a base de lançamento de uma reforma político-eleitoral mais substantiva. Operação complexa, mas não impossível.