O Globo
No filme "Feitiço do tempo", o personagem principal, de Bill Murray, recomeça o mesmo dia como se já não o tivesse vivido, com a vantagem de que os outros não se lembram do que ele disse na véspera. O presidente Lula deve pensar que tem esse benefício da amnésia alheia. O problema com Lula não é o que ele diz, mas combinar com o que ele disse ou fez no dia anterior.
Ele disse aos ministros que não se pode iniciar projetos novos, dois dias depois de ter lançado o PAC-2 com projetos para até o ano 2016. Ele fez piadas e brincadeiras pelas multas que recebeu da Justiça Eleitoral, por flagrantes de uso político da máquina. Dias depois, condenou o uso da máquina em propaganda, como se isso fosse atitudes de outros, jamais dele.
Desde que lançou o PAC-2 com uma enorme fanfarra, ele não perde oportunidade de alertar os novos e acidentais ministros que não lancem nenhum outro projeto, nenhum plano novo. "Nós não estamos em época de pensar em um novo programa, estamos na época de executar os programas que vêm andando", disse ele, 48 horas depois de ter lançado uma interminável lista de novos projetos, com quase todo o PAC-1 pendente. Dias depois, voltou a dizer que não se pode iniciar nada agora, faltando nove meses. Então por que lançou planos que não irá executar? Confirmado, portanto, o entendimento geral de que nada daquilo era para ser levado a sério, era apenas uma peça de marketing político.
Certas declarações que ele faz nos levam a pensar que das duas uma: ou é ele que se esquece do que disse ou fez na véspera, ou pensa que esse é um país de desmemoriados, que dá a ele a enorme vantagem de reescrever diariamente o enredo da sua história.
Infelizmente, talvez seja a segunda alternativa. Do contrário, como explicar o que Lula disse sobre a Emenda Ibsen? A versão do presidente na entrevista concedida à Rádio Tupi é a seguinte: "Fomos pegos de surpresa pela emenda." Uma versão feita de encomenda para agradar o estado castigado pelas chuvas dos últimos dias e ameaçado de perder receita: "De repente, aparece alguém e resolve fazer uma proposta tirando tudo do Rio de Janeiro, sem levar em conta que o Rio é uma região que já perdeu a capital. Isso explica um pouco a deterioração do Rio."
Para acreditar que o presidente foi "pego de surpresa" pela emenda, é preciso aceitar que ele não tem qualquer assessor, ministro das Relações Institucionais, chefe da Casa Civil, nem se interessa em saber como vota a sua base aliada. Há vários canais que ligam o Executivo ao que se passa no Congresso. Tinham que estar todos fechados para que o presidente não soubesse da emenda do deputado Ibsen Pinheiro.
Depois de ter feito campanha ostensiva por meses a fio para a ex-ministra Dilma Rousseff, ele agora condena o uso da máquina: "É preciso que a gente seja definitivamente republicano neste país", disse.
O presidente criticou as administrações passadas pelo que aconteceu no Rio, esquecido de que, um dia antes, sua candidata Dilma Rousseff veio ao Rio fazer campanha para o ex-governador Anthony Garotinho, que, com sua mulher, governou o estado por oito anos. Juntando-se aos três anos do seu incondicional aliado Sérgio Cabral, são 11 anos de governo. Mas para dizer isso, e culpar os outros, o presidente deve acreditar que ninguém se lembra que ele permitiu que seu governo distribuísse de forma politiqueira a verba para prevenção e reparação de acidentes como esse. Os números da manipulação da distribuição das verbas federais foram tão escandalosos, que o único benefício da dúvida que o presidente pode requerer é desmoralizante: é ele não saber o que seu próprio governo faz, ter sido também apanhado de surpresa por essa distribuição paroquial do dinheiro.
Seu raciocínio sobre a Emenda Ibsen tem outro defeito. Ela não é condenável porque um dia o Rio perdeu a capital. Isso foi há 50 anos, já deu para a cidade se recuperar do trauma. Não é isso que explica a "deterioração" do Rio, para usar a palavra do presidente. Governos federal e estadual têm errado na cidade e no estado, como o governo Lula e de seus aliados no Rio. Mesmo assim, há boas perspectivas pela frente. O Rio acaba de receber o grau de investimento e tem uma chance olímpica de enfrentar problemas sempre relegados. O que o Rio não pode é ser vítima de uma união interesseira entre os estados em torno de uma emenda oportunista e expropriadora. O que o estado quer é manter sua receita atual e não voltar 50 anos no tempo. O que o estado precisa é de um presidente atento e não de um que alega ter sido o último a saber que havia uma emenda tramitando no Congresso, a bordo de um projeto governamental com carimbo de urgência, que simplesmente desorganiza o futuro do estado.
Lula se comporta no fim do governo como se esse fosse seu primeiro dia de administração e ele não tivesse que prestar contas e sim cobrar malfeitos dos antecessores. Alguém precisa dizer ao presidente que os brasileiros sabem que ele está chegando ao final de oito anos de governo e que os moradores dessa terra não têm amnésia recorrente. Todos sabem o que ele fez ou disse ontem, na semana passada e nos últimos anos. No filme "Feitiço do tempo", Bill Murray tenta consertar num dia o erro que cometeu no dia anterior. Nem isso se pode dizer das contradições do presidente Lula.
Ele disse aos ministros que não se pode iniciar projetos novos, dois dias depois de ter lançado o PAC-2 com projetos para até o ano 2016. Ele fez piadas e brincadeiras pelas multas que recebeu da Justiça Eleitoral, por flagrantes de uso político da máquina. Dias depois, condenou o uso da máquina em propaganda, como se isso fosse atitudes de outros, jamais dele.
Desde que lançou o PAC-2 com uma enorme fanfarra, ele não perde oportunidade de alertar os novos e acidentais ministros que não lancem nenhum outro projeto, nenhum plano novo. "Nós não estamos em época de pensar em um novo programa, estamos na época de executar os programas que vêm andando", disse ele, 48 horas depois de ter lançado uma interminável lista de novos projetos, com quase todo o PAC-1 pendente. Dias depois, voltou a dizer que não se pode iniciar nada agora, faltando nove meses. Então por que lançou planos que não irá executar? Confirmado, portanto, o entendimento geral de que nada daquilo era para ser levado a sério, era apenas uma peça de marketing político.
Certas declarações que ele faz nos levam a pensar que das duas uma: ou é ele que se esquece do que disse ou fez na véspera, ou pensa que esse é um país de desmemoriados, que dá a ele a enorme vantagem de reescrever diariamente o enredo da sua história.
Infelizmente, talvez seja a segunda alternativa. Do contrário, como explicar o que Lula disse sobre a Emenda Ibsen? A versão do presidente na entrevista concedida à Rádio Tupi é a seguinte: "Fomos pegos de surpresa pela emenda." Uma versão feita de encomenda para agradar o estado castigado pelas chuvas dos últimos dias e ameaçado de perder receita: "De repente, aparece alguém e resolve fazer uma proposta tirando tudo do Rio de Janeiro, sem levar em conta que o Rio é uma região que já perdeu a capital. Isso explica um pouco a deterioração do Rio."
Para acreditar que o presidente foi "pego de surpresa" pela emenda, é preciso aceitar que ele não tem qualquer assessor, ministro das Relações Institucionais, chefe da Casa Civil, nem se interessa em saber como vota a sua base aliada. Há vários canais que ligam o Executivo ao que se passa no Congresso. Tinham que estar todos fechados para que o presidente não soubesse da emenda do deputado Ibsen Pinheiro.
Depois de ter feito campanha ostensiva por meses a fio para a ex-ministra Dilma Rousseff, ele agora condena o uso da máquina: "É preciso que a gente seja definitivamente republicano neste país", disse.
O presidente criticou as administrações passadas pelo que aconteceu no Rio, esquecido de que, um dia antes, sua candidata Dilma Rousseff veio ao Rio fazer campanha para o ex-governador Anthony Garotinho, que, com sua mulher, governou o estado por oito anos. Juntando-se aos três anos do seu incondicional aliado Sérgio Cabral, são 11 anos de governo. Mas para dizer isso, e culpar os outros, o presidente deve acreditar que ninguém se lembra que ele permitiu que seu governo distribuísse de forma politiqueira a verba para prevenção e reparação de acidentes como esse. Os números da manipulação da distribuição das verbas federais foram tão escandalosos, que o único benefício da dúvida que o presidente pode requerer é desmoralizante: é ele não saber o que seu próprio governo faz, ter sido também apanhado de surpresa por essa distribuição paroquial do dinheiro.
Seu raciocínio sobre a Emenda Ibsen tem outro defeito. Ela não é condenável porque um dia o Rio perdeu a capital. Isso foi há 50 anos, já deu para a cidade se recuperar do trauma. Não é isso que explica a "deterioração" do Rio, para usar a palavra do presidente. Governos federal e estadual têm errado na cidade e no estado, como o governo Lula e de seus aliados no Rio. Mesmo assim, há boas perspectivas pela frente. O Rio acaba de receber o grau de investimento e tem uma chance olímpica de enfrentar problemas sempre relegados. O que o Rio não pode é ser vítima de uma união interesseira entre os estados em torno de uma emenda oportunista e expropriadora. O que o estado quer é manter sua receita atual e não voltar 50 anos no tempo. O que o estado precisa é de um presidente atento e não de um que alega ter sido o último a saber que havia uma emenda tramitando no Congresso, a bordo de um projeto governamental com carimbo de urgência, que simplesmente desorganiza o futuro do estado.
Lula se comporta no fim do governo como se esse fosse seu primeiro dia de administração e ele não tivesse que prestar contas e sim cobrar malfeitos dos antecessores. Alguém precisa dizer ao presidente que os brasileiros sabem que ele está chegando ao final de oito anos de governo e que os moradores dessa terra não têm amnésia recorrente. Todos sabem o que ele fez ou disse ontem, na semana passada e nos últimos anos. No filme "Feitiço do tempo", Bill Murray tenta consertar num dia o erro que cometeu no dia anterior. Nem isso se pode dizer das contradições do presidente Lula.