Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 06, 2009

O Senhor March, de Geraldine Brooks

DA VEJA

Um romance do bem

O Senhor March, da australiana Geraldine Brooks, expõe os
dramas humanos e a tensão racial da Guerra Civil americana. 
No final, são os bons sentimentos que triunfam


Moacyr Scliar

Hulton archive/Getty Images
FICÇÃO SOBRE A FICÇÃO
Geraldine Brooks escreveu a respeito do personagem ausente de Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (acima)


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Exclusivo on-line
• Trecho do livro

Um dos mais traumáticos episódios da história dos Estados Unidos, a Guerra Civil que opôs o Sul escravagista ao Norte abolicionista, entre 1861 e 1865, já foi abordada em inúmeros romances, livros de história, filmes. Compreensivelmente, é uma obsessão americana. Surpreende que uma australiana também tenha eleito o conflito para tema de uma obra de ficção, como fez a escritora Geraldine Brooks em O Senhor March(tradução de Marcos Malvezzi Leal; Ediouro; 304 páginas; 41,90 reais), vencedor do Prêmio Pulitzer de 2006. Mas Geraldine – que vive entre a Austrália e os Estados Unidos e goza de cidadania americana – abordou o episódio a partir de um interesse mais literário do que histórico. Seu livro faz ficção sobre a ficção, construindo um interessante romance paralelo ao enredo de Mulherzinhas, clássico da americana Louisa May Alcott (1832-1888) – que chegou a trabalhar como enfermeira na Guerra Civil.

Muitos americanos têm um vínculo emocional com a obra edificante e pacifista de Louisa. Com um forte fundo autobiográfico, Mulherzinhasacompanha a trajetória de quatro jovens irmãs. Foi publicado em dois volumes, e no primeiro o pai da família, o senhor March, está ausente: abolicionista fervoroso, é capelão do Exército da União durante a guerra. Geraldine Brooks – já conhecida no Brasil por As Memórias do Livro,que nos Estados Unidos foi publicado depois deO Senhor March – narra a história do ponto de vista do personagem que vai para a guerra. O senhor March passa por uma série de percalços e aventuras – sobrevive a um ferimento no campo de batalha, apaixona-se por uma escrava, convive com figuras famosas da cultura americana, como Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau –, até, no final, se reunir novamente às filhas que ama. Narrado em ritmo ágil, O Senhor Marché um romance histórico bem pesquisado, no qual se fazem presentes o drama humano e as tensões raciais da Guerra Civil. Passa ao largo de qualquer pieguice – mas, tal como em Mulherzinhas, neste livro os bons sentimentos triunfam. Um romance do bem.


LIVROS  

Trecho de O Senhor March
de Geraldine Brooks

Capítulo I
Virgínia é terreno duro

28 de outubro de 1861

Escrevo a ela nestes termos: Hoje à noite as nuvens realçavam o céu. O sol poente tingia de ouro e bronze todos os seus contornos, como se o firmamento fosse entremeado de preciosos #lamentos.

Faço uma pausa para esfregar os olhos doloridos, que não param de lacrimejar. A linha que tracei talvez esteja um pouco menos do que consideraria 6na, mas não importa: ela é gentil em suas crí- ticas. Minha mão levemente umedecida, onde percebo vestígios do líquido quase seco, treme de exaustão. Perdoe-me pela escrita sofrível. Com o exército em marcha, não encontramos espaço para refexão ou tempo para correspondências. (Espero que minha querida jovem autora encontre tempo em meio às suas muitas boas obras para utilizar minha saleta, e que seus amigáveis ratos não se ressintam de uma curta ausência do costumeiro ninho.) Entretanto, sentado aqui, sob o abrigo de uma árvore frondosa, enquanto homens acendem fogueiras para cozinhar e contam piadas, encontro alguma paz. Escrevo na mesa dobrável que você e as meninas tiveram o carinho de me dar, e, embora tenha derramado e perdido meu estoque de tinta, não se incomode em me enviar mais. Um dos homens me mostrou uma receita engenhosa para um bom substituto desse produto, feito das últimas amoras-pretas da temporada. Graças a ele, posso lhe enviar, neste momento, palavras "amorosas"!

Você se lembra daquelas contracapas coloridas nas obras de Spenser que eu lia para vocês nas aconchegantes noites de outono, como esta? Então, minha querida, você poderá ver o céu como o vi hoje à noite, pois as cores serpenteavam o firmamento com a mesma alegre profusão.

E o sangue que se misturava à correnteza já carregada do rio, ondulado pelas botas, também formava um desenho parecido com o daquelas bonitas contracapas. Ou melhor, não é muito diferente da tinta carmim que a mão impaciente de nossa peque- na artista derramou sobre o assoalho. Porém essas palavras, claro, não escrevo. Prometi a ela que escreveria algo todos os dias, mas cumpro tal obrigação quando minha mente não está conturbada. É como se ela estivesse aqui comigo por um momento; sua mão calma, delicadamente me tocando o ombro. Dou graças, contu- do, por ela não estar aqui, vendo o que eu vejo, sabendo o que vim a saber. E, mediante tal pensamento, justi6co minha censu- ra: jamais prometi que escreveria a verdade.

Componho algumas palavras costumeiras de desejo conju- gal, e prossigo com algumas con6ssões de ternura paterna: Penso sempre em cada uma de vocês, na sala, no escritório, em meus aposentos, no gramado; com livro ou com pena, de mãos dadas com minha querida irmã ou conversando a respeito de nosso pai, em algum lugar distante, tentando imaginar como vocês estão. Saibam que não consigo realmente deixá-las, pois, embora meu corpo esteja longe, minha mente as acompanha de perto e meu maior conforto está na afeição de vocês... Apelo, então, à premência de meus deveres, e termino com uma promessa de logo enviar mais notícias.

Meus deveres são, de fato, prementes. Por toda minha volta, os homens precisam de mim. Mas não fecho imediatamente a mesa dobrável. Deixo-a sobre os joelhos e continuo observando as nuvens, nodosas e enegrecidas agora, no céu quase sem luz. Não é de admi- rar que os homens simples imaginassem que seus deuses habitavam lugares altos - se os olhos de um homem baixam do céu para a linha do horizonte, correm o risco de avistar cenas desoladoras.

Rio abaixo, homens do grupo de sepultamento andam com água até a cintura para recolher os corpos presos em galhos caí- dos. Ao contrário do que escrevi, ninguém está contando piadas esta noite, e as fogueiras são poucas e mal abastecidas, e o ardor da fumaça me fere os olhos, que ainda estão lacrimejantes. Um urubu, pousado no galho de uma 6gueira, me olha 6xamente. Acompanham-nos o dia inteiro, esses pássaros. Achei-os majesto- sos, hoje de manhã, sob a luz perolizada do começo da aurora, imóveis como gárgulas, com as asas abertas, esperando o sol nas- cer. Não se mexeram durante toda a nossa longa travessia do rio Potomac até a primeira revista nesta ilha, que ocupa o centro do rio como uma enorme barca, dividindo a água em estreitas cor- rentezas. Completamente imóveis, os pássaros nos observavam enquanto caminhávamos até a margem distante e prosseguíamos em subida silenciosa pela escorregadia trilha de gado na face da encosta. Mais tarde, vi-os novamente. Estavam, en6m, voando, formando graciosos arcos acima do campo. Ao menos daquela al- tura nossa situação devia parecer óbvia: o inimigo no controle da colina à nossa frente alimentando uma fogueira que se apagava, enquanto na mata, à nossa esquerda, mais tropas se mobilizavam sorrateiramente para nos Qanquear. Como capelão, eu não tinha ordens; por isso, posicionei-me onde acreditava ser de maior utili- dade. Estava na retaguarda, rezando com os feridos, quando ouvi- mos o grito assustado: Deus do Céu, estão à nossa volta!

Chamei os carregadores para levar os homens feridos. Cor- rendo, um recruta gritou, informando-me que qualquer um que tentasse fazer isso seria atingido por um número de balas maior do que pudesse contar com os dedos. Silas Stone, com ferimen- tos leves, cambaleava com o joelho torcido; estendi-lhe o braço e, juntos, entramos na mata, unindo-nos ao caos da investida. Ten- távamos voltar ao ponto alto da trilha de gado - o único caminho que permitia uma descida direta ao rio - quando deparamos com outro urubu, tão perto que poderíamos tocá-lo. Estava pousado no peito de um homem caído, e virou a cabeça acentuadamente ante nossa intrusão. Do bico caía um pedaço de algum órgão interno, lustroso e marrom. Stone ergueu o riQe, mas estava tão exausto que as mãos tremiam violentamente. Lembrei-lhe, então, de que, se não encontrássemos o rio e o atravessássemos, nós também vira- ríamos comida de urubu.

Com di6culdade, saímos do mato denso e nos alojamos no alto de um promontório, a uma razoável distância da trilha. De lá podíamos ver um contingente de nossos homens, acuados pelo avanço do fogo inimigo, na beira da encosta. Hesitavam, mas, de repente, pareciam se mover todos ao mesmo tempo, como um estouro de animais selvagens. Havia homens rolando, saltando, cambaleando. O penhasco é íngreme: são 27 metros de escarpas espalhadas que se projetam para baixo, até o rio. Ouvíamos gritos, enquanto os homens, desprovidos da razão, saltavam por sobre as cabeças e as baionetas dos companheiros caídos. Vi a bota pesada de um soldado corpulento apertar com força descomunal a cabe- ça de um rapaz franzino, esmagando-lhe os ossos contra a rocha. Seria inútil agora tentarmos alcançar a trilha, pois quaisquer pon- tos seguros para nossos passos já estariam desgastados após a fre- nética descida dos homens. Rastejei até a beirada do promontório e me dependurei pelas mãos até me soltar e cair, com força, sobre uma elevação estreita, coberta de nozes. Deslizei sobre elas. Silas Stone saltou atrás de mim. Só quando chegamos à margem, com a água bem alta, ele me disse que não sabia nadar.

O inimigo atirava do alto do penhasco. Alguns de nossos ho- mens começavam a amarrar trapos brancos a pedaços de pau, e subiam de volta, prontos para se render. A maioria pulava no rio; muitos, em estado de pânico, esqueciam-se de se soltar das caixas de munição e outros equipamentos, cujo peso rapidamente os le- vava para o fundo. O único meio de transporte eram as barcaças que nos tinham trazido, do outro lado. Os homens se aglomeravam sobre elas como um enxame de abelhas em volta da colmeia, e, quando escorregavam, eram quatro ou cinco juntos. Os que nelas permaneciam se tornavam alvo fácil, e não duravam muito tempo.

Tirei as botas e mandei Stone fazer a mesma coisa; disse- -lhe que jogasse o mosquete no canal mais profundo, deixando-o, assim, longe do alcance de nossos inimigos. Em seguida, pulamos na água gelada e nos dirigimos para a ilha. Pensei que pudésse- mos andar na maior parte do caminho, pois, durante a travessia de madrugada, as varas não pareciam afundar tanto. Não contava, porém, com a força da correnteza nem com o frio.

- Levarei você até o outro lado - havia prometido a Stone. E o teria feito, se uma bala não o tivesse encontrado; e se ele não tivesse se agitado tanto, ou se seu casaco, no ponto onde o agarrei, não tivesse uma costura tão fraca. Podia ouvir o tecido se descos- turando progressivamente, apesar do ruído das águas e dos gritos. Sua mão direita me agarrava pela garganta - os dedos eram cheios de calos; de trabalhador manual - e esmagava os ossos frágeis, pe- quenos, da traqueia. Com a mão esquerda, ele me segurava pela cabeça. Abaixei-me, tentando, em vão, não deixar que se agarras- se a mim, sabendo que me puxaria para baixo também, em meio ao pânico. Ele conseguiu arrancar um tufo de meus cabelos, e en6ou o polegar em meu olho esquerdo. Afundei, e o peso de Stone me empurrava cada vez mais para baixo. Joguei a cabeça para trás e senti um ardor no couro cabeludo quando outro tufo de cabelos foi arrancado. Movi o joelho para cima, com força, batendo contra algo cuja consistência era gelatinosa. A mão de Stone se soltou de minha garganta, enquanto a unha partida de seu dedo do meio levava um pedaço de minha pele.

Irrompemos à superfície, cuspindo água marrom-averme- lhada. Ainda segurava Stone pelo casaco descosturado, e, se ao menos naquele momento ele não se agitasse tanto, poderia ter me agarrado a uma porção maior de tecido. Mas a correnteza era muito forte ali, e levou os últimos 6apos de linha. Os olhos de Stone mudaram quando ele percebeu. O pânico pareceu se esvair, e seu último olhar era vazio, desfocado, como o de um bebê recém-nascido. Ele parou de gritar. O derradeiro som seria um suspiro, se não tivesse saído mais parecido com uma espécie de gargarejo. A garganta havia se enchido de água. A correnteza o levou para longe de mim, puxando-o pelos pés. Ele voltou à superfície por um instante, os braços estendidos para mim. Nadei com toda força que pude, mas, quando me aproximei, uma onda, que quebrava contra a rocha funda, apanhou-o pelas pernas e em- purrou a parte inferior de seu corpo para baixo da água, de ma- neira que ele pareceu 6car em pé por um momento. A corrente o fez girar; e, dando uma volta completa, seus braços foram jogados para cima, como os de uma dançarina cigana. Os tiros, no alto da encosta, haviam provocado uma verdadeira chuva de folhagem; e agora Stone dançava na correnteza, em sincronia com as folhas banhadas de sol. Estava de frente para mim de novo quando a água o sugou. Um 6o escarlate traçava sua partida, alargando- -se como uma ferida aberta, enquanto a correnteza o levava para baixo e para longe. Ao me arrastar para a costa, ainda tinha um fragmento de tecido molhado no punho.

Estou com ele agora: um círculo áspero de tecido azul, com 15,5 centímetros. Talvez a soma total dos restos mortais de Silas Stone, torneiro e homem estudioso, 20 anos de idade. Cresceu às margens do rio Blackstone e, no entanto, nunca aprendeu a nadar. Decidi mandar o tecido à sua mãe. Era 6lho único.

Gostaria de saber onde ele jaz agora. Entalado debaixo de alguma rocha, com mil bocas pequenas sugando-lhe a carne es- ponjosa. Ou ainda boiando, subindo ou descendo com a corren- teza, chegando a águas mais calmas, mais abertas do rio. Vejo-os se acumulando: os afogados, os baleados. Suas mãos flutuando na superfície, tocando umas às outras pelas pontas dos dedos. Daqui a um ou dois dias ainda estarão à deriva, como uma flotilha funerária, passando pela cúpula branca inacabada que se ergue sobre os andaimes, numa colina lamacenta em Washington. Será que os cidadãos os reconhecerão, os bravos que tombaram em bata- lha, e tirarão o chapéu num gesto de respeito? Ou se afastarão, enojados ante a massa farta de podridão humana?


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