Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, junho 14, 2009
JOÃO UBALDO RIBEIRO O nadaviol
-Alô, é Zecamunista! Já tem uma semana que eu tento falar com você e não consigo.
— É mesmo? Muito estranho isso, eu não tenho saído de casa e todo mundo aqui sabe que eu atendo você a qualquer hora.
— Bem, eu não liguei. Eu disse que tinha tentado falar, não que liguei, preste atenção. O empregado que liga o telefone pra mim faltou e só agora está aqui. Tá me ouvindo bem? — Estou, claro, por que não estaria? — É que esse empregado é novo, ainda não sabe segurar o telefone pra mim direito. Não, assim não, assim eu tenho que me erguer na rede! — O quê? — Não é com você, não, é com Ponciano aqui. Ponciano, desse jeito eu mesmo vou ter que segurar o telefone e aí não vou ter resistência pra conversar. Não, assim não, assim eu não posso continuar deitado na rede pra repousar. Aí, bote o fone aqui assim, agora tudo bem.
— Ponciano é o cara que liga o telefone? — Liga e segura. Ligar, ele liga bem, mas ainda tem muito o que aprender em matéria de segurar o fone pra mim.
— Por que você não usa o vivavoz? — Eu não sei que botão apertar.
Tem que ler o manual, é muito pesado, deixei pra o fim semana. O próximo, sem falta. Com calma eu leio o manual, não é nenhuma sangria desatada, até parece que você não conhece a radioatividade aqui da ilha. Eu estou atacado de radioatividade, atacado brabo.
— É por isso que você está me telefonando? Mas eu sei muito bem da radioatividade. Você está me ligando pra dizer que a radioatividade pegou você de jeito? — Não, não, no recado que eu mandei deixar, eu deixei bem claro.
É um problema nacional.
— Ninguém me deu esse recado.
— É que Ponciano... Ponciano, você não deu meu recado direito, não? Ah, sim, ah tudo bem. Ele está dizendo que não chegou a dar o recado todo, ficou meio sem forças. Coitado, a radioatividade pegou ele também. Eu trouxe ele de Sergipe, na esperança de que o sergipano fosse resistente à radioatividade, mas, pelo visto, nem sergipano segura esta, é de lascar. Pode ir, Ponciano, deixe que eu mesmo seguro o telefone.
Alô, você ainda está aí? Um minutinho, eu vou me despedir de Ponciano, é folga dele, ele vai pra festa.
— Que festa, já estão comemorando o São João aí na ilha? — Não, é a festa do FMI. O povo aqui ficou enlouquecido com a notícia de que o Brasil agora está emprestando dinheiro pra o FMI, foi um delírio nas ruas, até os pernetas estão jogando as muletas pra cima, é uma comemoração geral, você precisa ver. A turma do Bolsa Família fez uma marchinha de carnaval que diz "êi, você aí, me dê um dinheiro aí, está sobrando até pro Fê-MêI". Vá lá, Ponciano, ele precisa se distrair.
Não tinha vaga na escola pra ele, o rapaz fica muito sem ter o que fazer.
— Mas o que é que você quer dizer com esse negócio de problema nacional, a radioatividade é problema nacional? — É, é. Os sintomas são claros. Vai ter reforma política? Vai, vai, vão ser criados mecanismos pra os mesmos continuarem a se locupletar do mesmo jeito. Vai haver reforma administrativa? Vai, vai, vai haver um jeito de mostrar que um ascensorista do Senado tem qualificações pra ganhar mais que um médico, professor ou oficial das Forças Armadas. Vai ter reforma tributária? Vai, vai, continuando os ricos a repassar e os pobres e remediados a pagar. A educação foi consertada? Não, não foi, nem está com cara de que vai ser. A saúde vai bem? Não, a não ser que o sujeito tenha gripe suína e apareça no "Fantástico". Tem reforma agrária? Tem, tem, a paz reina no campo e o MST nem tem mais razão de ser. A segurança de cada um está garantida? Está, está, contanto que não se saia de casa e as portas sejam blindadas. E ninguém reclama, sinal claro de contaminação pela radioatividade, protestar é muito puxado. Mas eu mudei de ideia, não quero mais alertar ninguém.
— Você acha que virá a cura da radioatividade? — Não, não, acho que não adianta mais, agora é relaxar e gozar mesmo, grande conselho. E meu aviso já não tem muito sentido, agora é tarde, agora o problema chegou pra ficar.
Descobri que não há a mínima possibilidade de um protesto eficaz, seria muito injusto.
— Como assim, injusto? Se as coisas estão erradas, o protesto não pode ser injusto, é perfeitamente legítimo.
— Não, não. Como se não bastasse a radioatividade, tem o problema do abastecimento de água, principalmente em Brasília. O abastecimento de água está todo comprometido com uma substância que despejaram nele. Despejaram nadaviol concentrado — Nadaviol? Eu conhecia um remédio antigo, chamado Vanadiol, baseado no metal vanádio.
— Não, esse é o material da cara deles.
Eu estou falando de um composto especial que causa um tipo de cegueira muito comum por lá, daí eles viverem dizendo "não vi nada, não sabia de nada".
Enfim o Brasil foi salvo.
— Você acha mesmo? — Foi, sim. Se não foi, ninguém sabe, ninguém viu e o presidente estava viajando.
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