O GLOBO
Dificilmente sairá da reunião de hoje dos chefes de Estado dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), em Yekaterinburgo, na Rússia, qualquer indicação formal a respeito da mudança do papel do dólar como moeda de reserva internacional, mas o assunto está na mesa de discussão do grupo e foi tema de análise dos ministros que fizeram a reunião preliminar em Moscou.
Parece inevitável que a discussão permaneça entre as prioridades do grupo, pois, na definição do ministro Mangabeira Unger, representante brasileiro na reunião preparatória, “o gênio já saiu da garrafa”.
A tal ponto que, às vésperas da cúpula, houve um comunicado do Kremlin negando que esse tema fosse estar presente na reunião. O historiador Niall Ferguson, de Harvard, compara a situação de hoje do dólar com a crise da libra esterlina, cuja principal razão foram as grandes dívidas que a Inglaterra fez para financiar suas guerras pelo mundo, além da desaceleração do crescimento da economia nas décadas do pós-guerra.
Como uma das consequências da crise financeira é um aumento grande das dívidas do governo, os Estados Unidos podem ficar em situação similar a médio e longo prazos, o dólar pode perder a condição de moeda de reserva. Muito embora o processo da transição da hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos tenha levado décadas. Por um período de mais de 50 anos, houve a concorrência entre a libra e o dólar como moedas de reserva.
A discussão hoje surge mais devido à China, que tem enormes reservas de dólar e, temendo que seu patrimônio se desvalorize, já propôs trocar a moeda pelo Direito de Saque Especial, do FMI.
Mas o tema é mais amplo, e Mangabeira Unger lembra que na última reunião em Moscou houve interesse das autoridades russas de estudar o sistema que o Brasil está adotando nas transações comerciais com a Argentina e em breve com a China: os países organizam um sistema administrado pelos dois bancos centrais para toda noite fazer um balanço nas moedas dos respectivos países e em reais, sem passar pelo dólar.
As autoridades dos Brics desejam encontrar uma alternativa ao dólar, mas evitando cair em uma burocracia pesada, como a do Banco Central Europeu.
Uma nova autoridade monetária internacional é indesejável, para não substituir o que chamam de “a ditadura do dólar” pela ditadura de uma burocracia internacional.
As opções mais aceitas são uma cesta de moedas, de maneira que a dependência de qualquer uma delas fosse atenuada, ou uma “quase-moeda”, organizando um sistema o mais simples e mecânico possível, de maneira a reduzir os poderes discricionários das autoridades que o manejassem.
O principal objetivo da reunião hoje dos chefes de Estados dos Brics é dar um peso político ao grupo, nascido de um estudo teórico do banco de investimentos Goldman Sachs, para tornar suas presenças nos centros decisórios mundiais imprescindíveis no panorama pós-crise que está se desenhando.
O aumento do poder político dos Brics tem por base o poder econômico do grupo, embora os interesses dos países sejam muitas vezes divergentes.
Um bom exemplo disso aconteceu no ano passado, em mais uma tentativa de retomar a Rodada de Doha de livre comércio. Ficamos do lado oposto da China, e principalmente da Índia, aliados com os “países ricos”, na negociação da agricultura.
O G-20, uma criação da diplomacia brasileira para fortalecer os países emergentes nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), só tem coesão do ponto de vista político, mas na hora da negociação propriamente dita prevalecem os interesses objetivos de cada país.
O que impede a negociação na agricultura é o tamanho dos interesses de cada um: Índia e China querem proteger sua agricultura familiar, que não tem produtividade para competir, da mesma maneira que a União Europeia protege os seus agricultores.
O competidor comum, em grande parte das vezes, é o agronegócio brasileiro.
A valorização do poder econômico dos Brics leva a exageros, como o cometido pelo presidente russo, Dmitri Medvedev, relatado na coluna de sábado. No encontro que teve com os representantes dos quatro países que preparavam a cúpula, o presidente russo, de acordo com relato de Mangabeira Unger, exaltou o fato de que os Brics representavam 40% do PIB mundial.
O economista Tito Ryff, exsecretário da Fazenda do Rio e um estudioso do assunto, corrige a afirmação dizendo que o PIB dos Brics não alcança 40% do PIB mundial “de jeito nenhum”. Nem à taxa de câmbio nominal, nem no conceito da Paridade do Poder de Compra.
Se consultarmos os dados do FMI, do Banco Mundial ou o World FactBook da CIA (que usa as duas fontes anteriores), diz ele, veremos que os PIBs dos Brics têm as seguintes dimensões: na taxa de câmbio nominal, o total dos Brics é de US$ 8,856 trilhões, correspondente a cerca de 13% do PIB mundial.
Segundo o critério de Paridade do Poder de Compra, o total dos Brics vai a US$ 15,5 trilhões, pouco mais de 20% do PIB mundial.
Mesmo com o impacto da crise atual, que fez encolher os PIBs dos EUA e da Europa, e com o crescimento das economias da China e da Índia, embora em ritmo mais lento, Tito Ryff diz que “não haveria milagre estatístico” que pudesse fazer o PIB dos Brics alcançar 40% do PIB mundial.
Na verdade, há economistas que entendem que os países emergentes, e não apenas os Brics, já têm cerca de 40% da economia mundial, e há alguns que dizem que, pelo critério de Poder de Paridade de Compra, podem chegar à metade.
O fato é que o Banco Mundial estima que a parte do G7 no PIB mundial vai cair de 61% hoje para 43% em 2030, e o PIB de 10 economias emergentes (China, Índia, Brasil, Coreia, México, Rússia, Turquia, Indonésia, Arábia Saudita e África do Sul) poderá chegar 34% no mesmo período.