REGULAR É COM O BRASIL
Obama lança projeto de reforma para aperfeiçoar o
sistema financeiro – e sugere medidas que já funcionam
no mercado brasileiro há mais de uma década
Luís Guilherme Barrucho
Fotos Pablo Martinez Monsivais/AP e Bettmann/Corbis/Latinstock |
TEMPOS DIFÍCEIS Obama apresenta seu projeto (à esq.) e Roosevelt assina a reforma financeira de 1933: necessidade política de dar uma resposta à crise |
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A cada dois meses, os presidentes dos principais bancos centrais do planeta se reúnem em Basileia, na Suíça, para discutir as perspectivas das finanças globais. No mais recente desses encontros, o presidente do Banco Central brasileiro, Henrique Meirelles, foi convidado a presidir uma mesa de debates em que apresentou o bem-sucedido modelo brasileiro de fiscalização e controle dos derivativos financeiros. No jantar que, como de costume, encerra o encontro, o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, pediu a Meirelles que fosse o último a entrar no salão. O presidente do BC brasileiro foi recebido de pé por seus colegas, que o saudaram com taças de espumante nas mãos. Trichet puxou o brinde: "Mérito ao vencedor!".
Os méritos do aperfeiçoamento da regulação e da fiscalização dos mercados brasileiros, um trabalho de quase duas décadas, ficaram plenamente claros agora, sob o crivo da mais dramática crise financeira internacional em oitenta anos. A robustez do sistema brasileiro tornou-se evidente também ao se analisar o projeto de reforma financeira anunciado na semana passada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Muitas das medidas apresentadas são práticas correntes no Brasil há anos (veja o quadro). Por exemplo, apenas agora o Federal Reserve (o banco central americano) terá como uma de suas missões fiscalizar todas as empresas financeiras, como as seguradoras e os fundos de investimento, e não apenas bancos. No Brasil, isso já ocorre desde 2001, em uma missão dividida entre o BC e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Um ponto importante também é a chamada alavancagem financeira, ou seja, a quantidade de empréstimos que um banco pode fazer ("alavancar") em relação ao valor de seu capital próprio. Nos Estados Unidos, os bancos de investimento, atores centrais na crise recente, não tinham limite nenhum de alavancagem. Já no Brasil, toda e qualquer instituição financeira precisa obedecer ao limite imposto pelo BC, que é de oito – isto é, o banco só pode emprestar o equivalente a oito vezes o seu capital. A norma brasileira é ainda mais restritiva que a recomendação dos acordos da Basileia, que é de doze – e apenas agora será seguida por todos os bancos americanos.
O Brasil, obviamente, só chegou aonde se encontra hoje, em termos de regulação dos mercados financeiros, por ter sabido tirar lições das crises passadas. Precisou também trabalhar duro para reconquistar credibilidade. "O objetivo de todas as reformas feitas pelo país foi dar segurança e confiabilidade aos investidores, principalmente após a moratória dos anos 80", afirma o analista Luis Miguel Santacreu, da consultoria Austin Rating. O setor privado, e não apenas o governo, também soube se aperfeiçoar. A bolsa cumpre papel decisivo nesse contexto. Todas as operações financeiras realizadas pelos bancos e corretoras têm de ser registradas e todos os clientes são identificados, algo que não era obrigatório nos Estados Unidos, dando espaço a fraudes. "Seria muito difícil que os golpes praticados pelo operador americano Bernard Madoff tivessem êxito aqui", diz o diretor executivo da BM&FBovespa, Paulo Oliveira.
Assim como o Brasil no passado, os Estados Unidos procuram agora recuperar a confiança dos investidores e encontrar fórmulas para evitar novas crises. É aí que entra o documento de 88 páginas "A New Foundation" (Uma Nova Fundação), apresentado por Obama na semana passada. A ideia é aumentar a fiscalização de todas as operações executadas no mercado financeiro, muitas delas criadas há pouco tempo e que ficavam fora do radar dos reguladores. Pelo projeto, os bancos precisarão aumentar suas provisões de capital, guardando mais dinheiro para fazer frente aos períodos de vacas magras e ao aumento da inadimplência. Os famigerados derivativos, originalmente criados para atuar como apólices de seguro e dirimir riscos, serão escrutinados com mais rigor. Recentemente, esses contratos financeiros transformaram-se numa montanha de papel intangível, que serviu apenas para encobrir a fragilidade dos alicerces sobre os quais se erigiu a bolha.
Não é a primeira vez que o país lança mão de um arcabouço regulatório. Algo semelhante já havia ocorrido na década de 30, depois da quebra da bolsa de 29, quando o então presidente Franklin Delano Roosevelt adotou o New Deal, um programa de reformas econômicas e sociais que ampliou a intervenção do estado na economia. Mas muitas das regras foram caindo em desuso ao longo do tempo ou ficaram antiquadas – até porque prendiam a economia em uma camisa de força. Em prol da inovação financeira, o movimento de liberalização acentuou-se a partir da década de 80, durante o governo de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, na Inglaterra. É parte desse legado que agora se revisa. Mas, ainda que aperfeiçoar o sistema seja meritório e necessário, não se pode subestimar a criatividade dos especuladores financeiros – e isso vale para um eventual mercado americano pós-reformas e para o regulado Brasil de hoje. Recentemente, empresas brasileiras perderam estimados 25 bilhões de dólares com derivativos cambiais tóxicos, a despeito de toda a fiscalização das autoridades locais. É uma amostra de que, por mais que se aperfeiçoe um sistema financeiro, os riscos sempre existirão.
Unidos pelas diferenças
O acrônimo Bric (um trocadilho com brick, tijolo em inglês) foi cunhado em 2001 pelo economista Jim O'Neill, do banco Goldman Sachs. O'Neill, em um relatório, dizia que os ricos viam se esgotar suas perspectivas de crescimento acelerado e que o mundo necessitava de uma base mais sólida, que viria de novos "tijolos", os Brics. De fato, dados o tamanho dos Brics e o avanço de seu PIB, eles sobrepujariam o G-7, o grupo das sete nações mais desenvolvidas do planeta. A ultrapassagem, segundo O'Neill, ocorreria mais precisamente em 2027. O problema é que, além do fato de serem quatro nações continentais, donas de 15% do PIB e de 40% da população do globo, eles possuem muito pouco em comum – num contraste evidente com o G-7, cujos integrantes carregam enorme similaridade na cultura e no estágio de desenvolvimento. Por isso, não surpreende que o badalado "primeiro encontro dos Brics" tenha resultado tão somente em intenções vagas sobre assuntos como o desejo de uma maior representatividade nas decisões dos organismos multilaterais (a ONU e o FMI, por exemplo) ou a necessidade de reforma das finanças mundiais. "Bric foi uma marca inventada por um banco. É impossível chamá-lo de bloco, porque isso pressupõe coesão entre os países, além de certa uniformidade de interesses", afirma o embaixador Luiz Felipe Lampreia. Na avaliação do ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, a reunião teve o mérito de mostrar aos países ricos que está em curso o redesenho da economia global. "O que une os Brics é o desejo de querer entrar no círculo preferencial de poder. Juntos, eles multiplicam sua influência", diz. Mas ele reconhece que a ausência de uma plataforma afinada fragiliza a representatividade deles: "Se não há uma diretriz, as propostas desaparecem tão logo a reunião termina". De concreto, decidiu-se apenas que o próximo encontro dos Brics será no Brasil, no ano que vem. |