Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 20, 2009

Argentina Como fazer pouco com muito

VEJA

Um tango para lá de desafinado

Cristina e Néstor Kirchner desperdiçaram a oportunidade 
de fazer a Argentina avançar – e poderão ser punidos
por isso nas eleições legislativas do dia 28


Diogo Schelp, de Buenos Aires

Leola Valle/EFE e Manoel Marques
A VERDADEIRA REALIZAÇÃO DOS KIRCHNER
À esquerda, Kirchner e Cristina no telão do encontro que definiu candidatos do justicialismo. À direita, a favela Villa 31 em expansão


VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
• 
Quadro: Duas décadas de desastres
Exclusivo on-line
• 
Mais sobre a Argentina na seção Conheça o país

Uma imagem, uma constatação, uma estatística e uma frase resumem o estado das coisas na Argentina. A imagem: pedreiros acrescentando mais um andar às lajes das favelas de Buenos Aires. Enquanto a atividade da construção civil em geral está em queda, as precáriasvillas portenhas não param de crescer – na falta de espaço, para cima. A constatação: a quantidade cada vez maior de galões de água expostos sobre carros estacionados, principalmente na periferia da capital argentina. Este é o sinal convencionado pelos proprietários para anunciar que seus veículos usados estão à venda. Mais automóveis enfeitados com galões, mais pessoas com necessidade urgente de dinheiro. A estatística: a mortalidade infantil na província de Buenos Aires subiu 8% em 2007. Tudo isso dá a ideia de que algo vai muito mal na Argentina. A população da capital que vive em moradias irregulares aumentou 30% nos últimos dois anos. Três em cada quatro argentinos dizem não ganhar o suficiente para cobrir os gastos diários. E, no mesmo ano em que o PIB da Argentina cresceu incríveis 8,7%, o mais básico dos indicadores sociais só piorou na principal província do país. Favelas em expansão, renda relativa em baixa e bebês morrendo – no mínimo, o governo deveria estar reconsiderando suas políticas econômicas e sociais. A presidente argentina diz que não é o caso. Formulada por Cristina Kirchner em um comício da campanha para as eleições legislativas do próximo domingo, eis a frase: "Encontramos o caminho e devemos segui-lo e aprofundá-lo".

Manoel Marques
Na carne do pequeno criador
Com a cordialidade respeitosa que o estereótipo relaciona ao homem do campo, José Bertoglio levanta a boina para cumprimentar o visitante. Em seguida, sua fisionomia se fecha para falar de política. O gaucho de 42 anos é um pequeno criador de gado de Chascomús, a 110 quilômetros de Buenos Aires. Na propriedade de 218 hectares herdada do pai, mantém 320 animais de corte. Desde que o governo restringiu a exportação de carne, José consegue um preço cada vez mais baixo por seus terneiros. Os custos só aumentam. "Quando reclamamos, os Kirchner dizem que os pecuaristas representam a velha oligarquia argentina. Eu tenho cara de oligarca?"

O futuro do modelo kirchnerista estará em jogo no dia 28, quando os eleitores vão renovar um terço dos senadores e metade dos deputados. Cristina defende o seu "caminho" para o país com base em uma ilusão – a de que a Argentina cresceu a uma média anual de 8% entre 2003 e 2008 graças às políticas iniciadas por seu marido e antecessor na Presidência, Néstor Kirchner. Na verdade, a Argentina cresceu apesar do casal K. e suas medidas econômicas. Em um país com 60% das exportações compostas de produtos agropecuários, o bom desempenho do PIB no período se deve aos altos preços da soja no mercado mundial. Os Kirchner só se mexeram para atrapalhar, impondo restrições às exportações agropecuárias, expulsando os investidores estrangeiros e adotando medidas heterodoxas de combate à inflação. Os efeitos nocivos dessas políticas demoraram a ficar evidentes porque, comparativamente, qualquer conjuntura parecia maravilhosa após o caos bancário e a crise recessiva de 1999 a 2002, quando o PIB argentino caiu 11% em um único ano. Néstor Kirchner e, depois dele, Cristina perderam a chance de, nos anos seguintes, aproveitar o crescimento econômico para consolidar as bases para a recuperação do país. A crescente percepção de pobreza citada anteriormente é apenas um dos sinais desse desperdício de oportunidade. Há outros. No ano que vem, pela primeira vez, o país poderá ter de importar carne e trigo. Esses produtos são emblemáticos da era de ouro argentina, no início do século XX, quando a república platina estava entre as dez nações mais ricas do mundo e rivalizava com os Estados Unidos no papel de líder econômico do futuro.


Manoel Marques
Sem saída para a pobreza
Juan Domingo Romero é líder comunitário na Villa 31, uma das mais antigas favelas de Buenos Aires, onde vive há quarenta anos. Ele é dono de uma barraca de camelô que vende bijuterias e outros presentes baratos. "As pessoas hoje só têm dinheiro para comida e outros produtos essenciais", diz Juan, cujas vendas pioraram muito no último ano. As dificuldades financeiras se refletem na sua visão política: "Cristina Kirchner só sabe fazer promessas, oferecer subsídios e programas assistencialistas. Seria mais eficiente se ela se preocupasse em promover empregos".

Quanto o casal presidencial – os argentinos já não se referem a Cristina e Néstor separadamente – tem de culpa na queda na produção de carne e trigo? Um pouco no caso do grão e muito no da carne. O pior inimigo do trigo foi a seca, que fez a produção deste ano cair para 40% das safras anteriores. Outro obstáculo é a pressão feita pelo governo para que uma parcela maior da produção agrícola seja colocada à venda no mercado interno, a fim de elevar a oferta e forçar os preços dos alimentos para baixo. Isso desestimula os investimentos no campo, já que, paralelamente, os custos para plantar aumentaram. Algo parecido aconteceu com a carne, cuja exportação obedece a restrições desde 2006. A regra vigente até hoje é que todos os frigoríficos dediquem no mínimo 65% de seu estoque ao mercado doméstico. Obrigados a praticar preços mais baixos, os criadores passaram a investir menos em seus rebanhos: prova disso é que diminuiu o nascimento de terneiros e mais fêmeas (potenciais mães) estão sendo enviadas ao matadouro. Nos próximos anos, será difícil os argentinos manterem seu consumo per capita de carne, o maior do mundo. "Nenhum país será capaz de nos vender carne ao preço que estamos acostumados a pagar, por isso teremos de modificar nossos hábitos alimentares", diz Mario Ravettino, presidente do Consórcio de Exportadores de Carnes Argentinas.


Manoel Marques
O passado assombra
Como muitos jovens de classe média, Natalia Yannino Ferrandosonhava em passar uma temporada no exterior após o término da faculdade. Quando isso finalmente aconteceu, em 2002, Natalia somou-se à massa de emigrantes cuja razão para sair da Argentina era a falta de opções, não o desejo de ter novas experiências. Seu pai era dono de um comércio de informática e, com a recessão, teve de vender até mel para sustentar a família. Na Espanha, Natalia casou-se e foi garçonete e balconista. Voltou à Argentina em 2006 e, desde então, segue a carreira para a qual estudou: ela faz cenografia para cinema. "Não tenho emprego fixo e, quando as ofertas de trabalho ficam escassas, logo me vem à mente a crise do início da década. O maior medo da minha geração é que aquilo se repita", diz Natalia, de 30 anos.

A partir de 2006, muitos pecuaristas trocaram o gado pela soja, atraídos pelo bom preço da commodity. Em março do ano passado, Cristina Kirchner tentou barrar essa tendência – e engordar os cofres do estado – através do aumento do imposto sobre a exportação de grãos. O confisco dos lucros da soja, a galinha dos ovos de ouro do PIB argentino, foi um tiro no pé. A classe média urbana recorreu a panelaços, os agricultores fizeram piquetes em estradas e, por fim, até o vice-presidente, Julio Cobos, cujo cargo na Argentina pressupõe desempatar votações no Senado, ajudou a derrubar a proposta de lei no Congresso. Essa foi a primeira grande derrota política de Cristina. A segunda poderá ocorrer no dia 28, com uma possível vitória da oposição. Eleita em 2007 após quatro anos de mandato de seu marido, Néstor, a presidente tem uma maioria frágil no Congresso. Com medo de um enfraquecimento ainda maior de sua bancada, recorreu a uma estratégia insólita na atual campanha eleitoral. Trata-se da invenção de uma nova figura política: os candidatos de fachada. Na Argentina, as eleições proporcionais são feitas com voto em lista fechada. O eleitor vota apenas na legenda. Os candidatos no topo da lista apresentada pelo partido são os que ocupam os cargos. Para atrair votos para o seu Partido Justicialista (PJ), um dos herdeiros do espólio peronista, o casal K. tratou de inscrever políticos bastante conhecidos da população. Encabeçando a lista está o próprio Kirchner. Depois vêm o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, e o chefe de gabinete da Presidência, Sergio Massa. Como ocupam cargos muito mais relevantes, é improvável que qualquer um deles assuma o mandato de deputado. O truque é este: passadas as eleições, os três devem deixar que outros do PJ ocupem suas vagas.

Manoel Marques
O preço da instabilidade
Laura Beatriz Loban é a primeira na linha de sucessão de uma empresa familiar de autopeças fundada há 52 anos. Depois de sair combalida da crise de 1999 a 2002, a fábrica, em San Martín, se recuperou e chegou a ter 46 empregados em 2007. A sensação de estabilidade econômica incentivou a família a comprar novas máquinas. Nunca foram utilizadas. Desde o início de 2008, a pressão do governo sobre o setor agropecuário derrubou o mercado de reposição de peças e, mais recentemente, a recessão mundial fez despencar pela metade a produção de carros novos para exportação. A empresa teve de demitir catorze funcionários. Diz Laura: "Desde pequena ouço falar de crise, já é algo quase natural para nós, argentinos. Mesmo com toda essa experiência, no entanto, é duro investir em produção no contexto de uma economia imprevisível".

Na qualidade de ex-presidente, Néstor Kirchner deveria estar fazendo palestras ou escrevendo suas memórias. Mas seu plano é voltar à Presidência em 2011, quando termina o mandato da esposa, inaugurando assim uma nova fórmula de se perpetuar no poder. Por isso se empenha na campanha legislativa. "Os Kirchner governam como se seu matrimônio e a Presidência formassem uma unidade familiar de negócios", diz a historiadora Ema Cibotti, uma eleitora de Néstor arrependida. Para ela, o casal resume o que há de pior no peronismo: seu manejo do poder é autoritário e personalista. Recentemente, por exemplo, o governo amea-çou censurar um programa humorístico da TV em que atores fazem imitações hilárias da presidente e seu marido. O humorista Martín Bossi interpreta uma Cristina Kirchner frívola e dada a pequenos surtos histéricos quando contrariada. A personagem carrega consigo uma maleta, em referência à bagagem apreendida pela alfândega argentina contendo 800 000 dólares em doações ilegais para a campanha presidencial de 2007.

Censurar humoristas e criar candidaturas-fantasma pode não ser o suficiente para evitar uma derrota do casal presidencial nas urnas. O governo de Cristina tem apenas 30% de aprovação, e o índice só tende a piorar conforme os efeitos da crise mundial começam a ser sentidos com mais força na Argentina. Estima-se que a economia do país termine o ano com uma retração de 2,6%. Também não ajudou a decisão de estatizar os fundos de previdência privada do país, afetando a aposentadoria de 4 milhões de trabalhadores, para cobrir um rombo fiscal de 10 bilhões de dólares. O casal K. está tão desesperado com a queda livre de sua popularidade que resolveu antecipar as eleições legislativas – originalmente seriam em outubro. Dessa forma, mesmo se perder, Cristina terá cinco meses em vez de um para aprovar projetos de seu interesse, antes que os novos congressistas assumam. Teme-se que esse período seja usado para adotar medidas à moda de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela. Ou seja, fazer mais estatizações e espalhar o pânico entre os empresários que não cumprirem a determinação de congelar os preços.

Manoel Marques
O assalto às aposentadorias
Cristina Kirchner meteu a mão no dinheiro do comerciante José Francisco Nemeth. Aos 52 anos, ele está a pouco mais de uma década de se aposentar e, obviamente, tinha planos para essa nova fase da vida. Isso até o governo estatizar os fundos de previdência privados, em outubro do ano passado. "Eu me sinto como se o governo tivesse colocado uma pistola na minha cabeça para me roubar", diz José. Ele calcula que, no sistema privado, iria se aposentar com o equivalente a 670 reais por mês. Com a previdência pública, vai receber pouco mais de 400 reais. Diz ele: "Isso não é aceitável em uma democracia".

A comparação com Hugo Chávez torna-se ainda mais pertinente pela proximidade dos Kirchner com o caudilho do Caribe. Dependente da disposição de Chávez de comprar títulos da dívida argentina, algo que nenhum outro país é insano o suficiente para fazer, Cristina foi acusada pelas associações patronais portenhas de não defender os interesses do país nas estatizações feitas pelo governo venezuelano, no mês passado. Duas das empresas nacionalizadas eram argentinas. A piada em Buenos Aires é que só falta Chávez querer confiscar Cristina Kirchner para si. Ao que Kirchner reagiria com a mesma passividade demonstrada pela Casa Rosada diante das estatizações de capital argentino feitas por Caracas. A exemplo do que ocorre na Venezuela, a inflação é o ponto fraco do governo argentino e, como já se disse, um dos principais motivos para o crescimento econômico registrado nos últimos anos não ter conseguido consolidar a redução da pobreza. A outra razão foi a incapacidade de atrair investimentos estrangeiros no setor produtivo. "Não acredito no risco de a Argentina voltar a cair em um caos econômico tão grande como o do desastre de 1999 a 2002", diz Fausto Spotorno, diretor do Centro de Estudos Econômicos (CEE), um instituto que elabora estatísticas independentes, como o índice de inflação. O temor de Spotorno é outro: "Se nada mudar na política econômica deste governo, poderemos ter três anos de estag-flação, a inflação com recessão". Pelos cálculos do CEE, a Argentina vai fechar 2009 com uma inflação de 15%. A estimativa oficial, manipulada segundo os interesses dos Kirchner, está em míseros 7,6%. Paradoxalmente, o governo concedeu há pouco um reajuste salarial de 15% aos servidores públicos.

De manhã, pouco antes de começarem o expediente, homens e mulheres ocupam as melhores mesas dos cafés do centro de Buenos Aires para tomar um expresso e ler o jornal. Muitos chegaram ali de ônibus, já que o trânsito é ruim e os estacionamentos, escassos. Jornal, café e ônibus compõem um hábito que é uma instituição econômica na Argentina. Em condições normais, a notícia, a bebida e o bilhete do transporte têm todos o mesmo preço. Hoje, a equação está desequilibrada. O jornal custa 2,5 pesos, o café, 5, e a passagem de ônibus, subsidiada, está em 90 centavos. É o efeito da política de controle de preços rígida sobre setores específicos, especialmente alimentos essenciais e serviços públicos. Essa maneira de controlar a inflação cria distorções na economia, espanta os investimentos e atrapalha a produção. Um exemplo é o preço do gás encanado, mantido baixo graças a uma combinação de chantagem contra os produtores e subsídio estatal. Por causa dessa política, só em novembro do ano passado ocorreram 44.000 cortes de energia na capital (30% da eletricidade do país é produzida com gás natural). As eleições do próximo dia 28 de junho, ganhando qualquer um dos opositores dos Kirchner, darão um pouco mais de alento ao país abençoado pela natureza, mas onde nunca tantos fizeram tão pouco com tanto.


Arquivo do blog