E, mesmo assim, feliz. Inchada, com pele sobrando e cega
de um olho, a americana Connie Culp celebra o transplante
facial que lhe devolveu a capacidade de respirar sem ajuda,
comer, sentir gosto e cheiro, e viver de novo
Bel Moherdaui
Fotos Reuters |
VIDA RECONSTRUÍDA Connie como era há dez anos; depois das trinta tentativas de recuperar o que um tiro de escopeta disparado pelo marido destruiu; e com o rosto transplantado (na linha pontilhada) |
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Connie Culp, dona de casa americana de 46 anos, tem a aparência estranha que se vê na foto maior e está muito feliz com ela. Os motivos podem ser conferidos na foto ao lado, que mostra como ficou mesmo depois de cicatrizadas as pavorosas lesões que sofreu em 2004, ao ter o rosto dilacerado por um tiro de escopeta disparado pelo marido, Thomas – que em seguida tentou se suicidar, sem grande convicção; perdeu um olho e cumpre sete anos de prisão. Em cinco anos, Connie passou por trinta cirurgias para retirar fragmentos da bala e de ossos estilhaçados. O tiro causou espantosos traumas externos e internos. Destruiu o nariz, o palato, as maçãs do rosto, o lábio superior, pálpebras inferiores e um olho. Connie perdeu também o nervo responsável pelos movimentos faciais, totalmente do lado esquerdo e parcialmente do direito. Nesse tempo em que, literalmente, não tinha rosto, evitou ao máximo sair à rua. Mas a última das operações, realizada em dezembro e mostrada ao mundo na semana passada, mudou sua vida: fez um transplante facial. O rosto recebido de uma doadora não identificada abrange 80% de sua nova cara, incluindo músculos, ossos, veias, nervos e pele, somando 500 centímetros quadrados de tecido e até dentes – o mais extenso transplante do gênero realizado até hoje. De seu restaram apenas as pálpebras superiores, testa, lábio inferior e queixo. "Peço a todos que não julguem quando virem alguém que tem uma deformação. Vocês não sabem o que aconteceu", disse, com dificuldade, Connie em sua apresentação à imprensa, realizada por sua exclusiva vontade. "Eu sou aquela que vocês vieram ver hoje", assumiu, com coragem, num claro sinal de que o rosto que todo mundo viu com estranheza é, para ela, um enorme passo adiante.
Para a equipe, a apresentação poderia ter sido um pouco mais tarde. "A cirurgia foi um sucesso extraordinário. Mas não consideramos já ter atingido o resultado final. Ainda há ajustes a fazer", disse a VEJA o cirurgião plástico Daniel Alam, diretor de cirurgia facial estética e reconstrutora do Instituto de Cabeça e Pescoço da Clínica Cleveland, um dos oito cirurgiões que participaram do procedimento. Por ajustes entenda-se a retirada da pele que sobra em volta do maxilar de Connie, um excesso proposital, para o caso de parte do tecido ser rejeitada e precisar ser removida, o que não aconteceu até agora. "O mais desafiador nessa cirurgia foi o enorme número de suturas. Em um transplante de coração, é preciso basicamente emendar alguns vasos sanguíneos e pronto. Aqui, suturei cinco vasos, outro cirurgião fez os nervos, outro cuidou dos ossos. Tivemos de costurar todos os músculos, o tecido gorduroso e a pele inteira de volta. Em separado, cada parte é relativamente simples. O difícil é fazer tudo junto", explica Alam. Ele mapeou e estudou todos os vasos sanguíneos disponíveis no rosto e no pescoço de Connie com muita antecedência. "Além das inúmeras cicatrizes, os vasos sanguíneos que usamos normalmente para essas cirurgias já haviam sido suturados nas muitas tentativas de reconstrução do rosto dela", conta ele. Pouco depois do transplante, a paciente recuperou habilidades básicas como respirar sem ajuda do tubo da traqueostomia – que ainda tem no pescoço, mas já não usa –, comer alimentos sólidos e usar um copo para tomar líquidos. Também recuperou o olfato e o paladar. Em janeiro, depois de anos, comeu pizza, frango e hambúrguer.
Até hoje, foram feitos sete transplantes de rosto no mundo. Muito antes que virassem fato, a ficção já havia explorado os dramas psíquicos que provocariam. A realidade se mostrou mais estranha ainda. A primeira paciente, a francesa Isabelle Dinoire, que teve o rosto dilacerado pelo cachorro, declarou recentemente: "O mais difícil foi aceitar que eu tinha o interior da boca de outra pessoa. Não era o meu, era macio demais. Foi muito difícil". O segundo paciente, um chinês mutilado por um ataque de urso, teve sérias complicações devido à rejeição e morreu dois anos depois. O terceiro, que sofria de uma doença genética, foi operado na França e está em recuperação. Os outros três pacientes, submetidos a cirurgia neste ano, ainda estão em avaliação. Connie já superou o período crítico de rejeição da pele pelo corpo, mas terá de tomar imunodepressores pelo resto da vida. Outra paciente da Clínica Cleveland é Charla Nash, atacada pelo chimpanzé de estimação de uma amiga em fevereiro deste ano. Charla perdeu as mãos, o nariz, várias outras partes do rosto e as pálpebras. Já saiu do coma e consegue se comunicar. Quando melhorar, diz o cirurgião Alam, provavelmente também se submeterá a um transplante facial.