Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 09, 2009

Família O encolhimento do núcleo familiar

Éramos tantos e somos tão poucos

Os casais têm menos filhos, os filhos se dispersam,
os primos desaparecem, ninguém quer opinião de tia
– e as famílias enormes viram um retrato na parede


Juliana Linhares

Fotos Roberto Setton e Álbum de família
REUNIÃO A DUAS Aos domingos, Vera (retratada quando bebê, na época da família ampliada) ainda almoça com a mãe, Vilma, mas a filha, Thais, raramente aparece

Até vinte anos atrás, a empresária Vera Mattos, hoje com 53 anos, almoçava todos os domingos na casa de sua mãe, no bairro da Lapa, em São Paulo. Desses almoços faziam parte pelo menos outros vinte parentes. Todos chegavam de manhã e preparavam juntos a massa do espaguete e o frango assado. A comilança se estendia até a noite, quando as mulheres voltavam para a cozinha e assavam pizzas, que fechariam o encontro. Sua mãe e uma empregada ficavam até de madrugada arrumando a casa. Há uns dez anos, os pais de Vera sofreram um assalto traumatizante e se mudaram para um apartamento. O número de convidados para os almoços dominicais encolheu. Com o tempo, os sobrinhos de Vera e a sua filha única, a publicitária Thais, 24, desistiram da visita semanal à avó. Vera e seus dois irmãos se divorciaram. A família numerosa diminuiu dramaticamente. "Trago minha mãe para almoçar no meu restaurante no domingo e ficamos só nós duas", conta a empresária, com um tom de melancolia na voz. "Nem lembro quando foi a última vez em que a família se reuniu. Hoje em dia todo mundo tem muita autonomia desde cedo, não existe muita obrigação", diz Thais, que vê no fim da tradição um lado ruim e um lado bom. O ruim: "Quando eu era pequena e todo mundo se encontrava mais, eram sempre os mesmos assuntos, as mesmas implicâncias, mas isso faz parte da vida em família. Acho que se perde muito da união". O bom: "Todos os mais velhos se acham no direito de criticar os mais novos. É como se vários pais se unissem contra os filhos".

O encolhimento da família de Vera e Thais ocorre da mesma forma na maioria das casas brasileiras. Aquela família enorme, com dezenas de tios, primos e agregados, é um fenômeno em extinção. Os estudos sobre a mudança demográfica, com todas as suas consequências sociais, mostram que a principal causa desse enxugamento é a queda acentuada na taxa de fecundidade. "Nos anos 1970, havia 6,2 filhos para cada mulher. Hoje, essa taxa caiu para 1,8", compara Marcelo Neri, economista da Fundação Getulio Vargas. "O processo de queda, além de intenso, aconteceu em um tempo muito curto. Nos países europeus, esse decréscimo demorou cinquenta anos", diz a socióloga Ana Lúcia Sabóia, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As separações também são consideradas uma grande impulsionadora do encolhimento familiar. Segundo o IBGE, o número de divórcios no Brasil aumentou 52% nos últimos dez anos, sem contar as uniões e as desuniões não oficializadas. "O casamento até a morte era mais fácil no passado, quando se vivia até os 60 anos. Hoje, as pessoas vivem até os 90. É muito mais difícil ficar esse tempo todo junto", avalia Neri.

Paralelamente às explicações demográficas para a redução das famílias, existe também a fragmentação dos núcleos familiares – os laços com primos de graus distantes e tios de gerações imemorais perderam a força, quando não desapareceram. "A família grande era incômoda, dava palpites, interferia na educação dos filhos dos outros. A família nuclear, composta de pais e filhos, é mais individualista, quer criar as crianças do seu jeito e não depender da parentada para nada", diz Magdalena Ramos, terapeuta de casais e de família. Sem contar que não há espaço nem dinheiro para acomodar as festas de família à moda antiga. "As famílias brasileiras não têm a desenvoltura das europeias, que, quando convidadas para jantar na casa de alguém, levam um prato de comida para ajudar", afirma Lidia Aratangy, psicóloga e terapeuta de família. Estudos demográficos feitos recentemente levantam outras causas do enxugamento das famílias. Um deles, do IBGE, revela que nos anos 80 a taxa de urbanização no Brasil era de 65% e hoje é de 83,5%, o que indica que muitas famílias se cindiram, com parentes mudando-se do campo para os centros urbanos. Outro estudo, este realizado entre 1997 e 2007, mostra que, há doze anos, um nada em termos de transformações sociais, 56,5% das famílias tinham filhos morando em casa. Em 2007, esse número baixou para 49%. "Eu tenho quatro filhos. Um mora no Chile, outro na Alemanha, o terceiro em Piracicaba e o quarto em Campos do Jordão. O mundo ficou menor, mas nós, em compensação, nos vemos muito menos", descreve a psicóloga Ceneide Cerveny, de São Paulo.

Roberto Setton
NINHO VAZIO Carolina está saindo da casa dos pais, Armando e Maria, e já avisou: não pretende ter filhos

Maria e Armando Narumiya, ele engenheiro, 63 anos, ela dona de casa, 50, não só lamentam a falta de contato entre parentes como enfrentam, no momento, uma redução ainda maior do seu núcleo principal: os dois filhos, ambos solteiros, alugaram um apartamento e vão morar longe dos pais. Maria conta que na casa onde cresceu era normal juntar até cinquenta parentes numa simples reunião. "Hoje, além de não conseguir levar meus filhos para visitar os tios, ainda passo a vergonha de vê-los trancados no quarto quando alguém vem me ver", diz. Sua filha Carolina, 28 anos, publicitária, já anunciou que não tem a menor intenção de ter filhos. "Fiquei triste, porque meu sobrenome pode acabar na geração dela", diz o pai. Sobre a mudança iminente de casa, Carolina brinca: "Falei para a minha mãe não ficar triste, porque a gente volta para trazer a roupa suja para lavar" – este, em geral, o último vínculo filial a se partir.

Por mais que os pais achem doloroso, a saída dos filhos de casa é normal e desejável, e os "cangurus", como são chamados os trintões solteiros que não mudaram de endereço, continuam a ser exceção. "As casas antes comportavam três gerações: os avós, a filha deles com o marido e os netos. Hoje, ninguém mais quer morar com os pais. Além disso, quando os pais ficavam doentes, eles eram cuidados na casa dos filhos. Agora, são mandados para casas de repouso", diz Magdalena. A psicóloga Lidia aponta como desvantagem nesse encolhimento o fato de as crianças, principalmente, perderem a possibilidade de conhecer diferentes tipos de relacionamento. "Fazia bem para os pequenos perceber que os tios tinham uma forma distinta de tratar os filhos", avalia. Mas vê como vantagem os pais, ao se concentrar apenas nos poucos filhos que têm, poderem se dedicar muito mais a eles. "A verdade é que nas famílias com cinco, seis crianças, os pais não tinham tempo para conhecê-las direito", diz. E ainda tinham de aguentar os palpites de todo mundo.

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