O Globo |
15/4/2008 |
Nada gruda nos ladrões-teflon "Roubar é sexy, meu amigo" - me disse o ladrão assumido, deitado numa bóia roxa, flutuando na piscina, com um coquetel amarelo e rosa na mão. - "Roubar dá tesão! Tem algo de orgasmo. Quando eu embolso uma bolada, o fluxo de libido é inesquecível. Roubar é uma aventura louca, um filme de ação, roubar é um vício secreto; mesmo o roubo pequeno dá prazer - entrar numa loja e estarrar um livro ou uma jóia, com o coração disparado do pavor de ser pego, e depois a alegria de sair na rua, sem ninguém ver, dá um baratão, meu amigo... No ladrão de galinha e nas grandes roubalheiras há o mesmo prazer doce da adrenalina. Há muitos tipos de ladrões" - continuou o meu entrevistado, inteligente, articulado, sem uma mácula de culpa no rosto de Botox -, "mas o desejo geral é "dar um tapa numa nota" e resolver a vida para sempre, se bem que a vida não se resolve nunca", refletiu, filosófico, bicando o coquetel amarelo-rosa. "A fantasia comum é sair da vida social e de seus contratempos, ir para uma praia infinita e nunca mais parar de beber água-de-coco. Mas isso é coisa de amadores. Profissas como eu querem roubar sempre. Depois do primeiro milhão de dólares, o negócio é mais pelo prazer. Já peguei muita mala preta debaixo de banco de praça. A libido que rola na hora de ver as "verdinhas" é melhor que morfina, palpar os dólares arrumadinhos pela concessão pública de um canal de esgoto ou de um golpe no INSS é uma volúpia inesquecível. Uma vez, peguei uma pasta com cem mil dólares. Fui tomar um cafezinho e tive o capricho de deixar a pasta em cima do balcão, ao lado do açucareiro, onde se acotovelavam operários com copinhos de cachaça, e eu pensava: "Nessa pasta aí está a salvação deles, e eles nem imaginam..." Hoje, trabalho muito na política. Estar em Brasília é uma proteção. Antigamente, o sujeito roubava e fugia para o mato. Hoje, não. Foge para o Congresso, para dentro da Lei. A minha turma de ali-babás tasca cerca de 70 bilhões de reais por ano no país todo; é o cálculo estatístico. A concorrência é grande... E somos intocáveis... - somos os ladrões-teflon, pois nada gruda em nós. Eu sou muito olhado com ódio e uma ponta de admiração nas churrascarias e shoppings. "Olha lá o ladrão!"..., o executivo diz, traçando uma picanha. Mas sei que o outro responde: "É ladrão, mas é espada, dá nó em pingo d"água!...". E nem ligo, porque me sei invejado pelas aventuras que me atribuem. As mulheres imaginam os colares que ganhariam se fossem minhas piranhas louras, como as putinhas dos filmes de gângsteres dos anos 40. E ainda se viram para o maridão otário e lhe atiram na cara: "Você não é honesto, não; você é burro!!" Eu confesso um certo orgulho kitsch por meu sucesso na corrupa e no cafajestismo. Há uma beleza dionisíaca nisso. Depois que eu enriquei, fiz como todos: passei a entender de vinho... - nada como um Chateau Margaux 2000 - , comprei uma lancha de cinco milhões de dólares, gado holandês e, claro, tenho duas amantes "cachorras", de cabelo pintado e correntinha no tornozelo. No roubo da coisa pública, tenho culpa zero (aliás, em tudo). Todos roubam - eu me justifico - e, então, eu tiro o meu. Antes eu do que eles... Eu me vingo da humilhação da pobreza na infância: mãe lavadeira, sapato furado. Eu tenho justa causa, sim. E sou pessimista - não há o que fazer... sempre foi assim. O ser humano é nocivo por natureza... Por isso, taco a mão no dinheiro público... Sinto até um toque de patriotismo. Deixar dinheiro lá para eles pagarem o FMI? Nunca... Sou meio de esquerda... E tenho minhas taras também. Quem não tem suas taras? Eu por exemplo, confesso, adoro ver os olhos covardes do empresário pagando-me propina pelo empréstimo conseguido no banco estatal ou para o perdão de uma dívida. O empresário tenta fingir naturalidade, mas o ódio acende-lhe os olhos. Adoro ver-lhe a raiva travada na boca, o sapo engolido, fingindo-se simpático, adoro ver-lhe as mãos trêmulas, adoro até o desprezo impotente que ele tem por mim. Gosto de me sentir conspurcado pelo nojo do outro. Eu me babo de prazer quando vejo a cara do juiz comprado ostentando alguma severidade, enquanto exara uma liminar comprada, e que se exaspera quando vê a piscadela cúmplice que eu lhe atiro na hora da sentença. Sinto-me superior aos otários que me compram, não me ofendo, ao contrário, olho-os do alto! E vou mais longe. Superei a dor patológica de uma perversão mal assumida. Vou lhe contar o que não conto nem para o espelho. Outro dia, cheguei em casa, depois de ganhar uma grana negra tirada das verbas de remédio para criancinhas com câncer e, quando entrei em meu lar, doce lar, meus filhos felizes viam desenho animado na TV. Sabe que senti zero de culpa? Tive orgulho. Minha gelada indiferença me pareceu prova de macheza, uma novíssima forma contemporânea de integridade. É isso aí, meu ingênuo jornalista, pode botar tudo aí... eu sou inatingível... o Código Penal todo foi escrito para me proteger. Por que não passa na Câmara a reforma da Lei de Execuções Penais? Porque não deixamos... ah, ah... Este país foi feito assim: na vala, entre o público e o privado. Há uma grandeza na apropriação indébita, florescem ricas plantas na lama das roubalheiras. A bosta não produz flores magníficas? Pois é... o Brasil foi construído com esse fertilizante. Sempre foi assim e sempre será. Roubo é cultura, meu amigo... Um forte abraço..." |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, abril 15, 2008
Arnaldo Jabor - "Roubar é humano!..."
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