Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 26, 2008

J. R. Guzzo

O arco da fome

"É um detalhe sem nenhuma importância, em toda essa prosa, o fato de que metade da cana do Brasil se transforma em açúcar, ou que, com todo o crescimento da indústria de biocombustíveis, a produção brasileira de alimentos está aumentando, em vez de diminuir. Neste ano a colheita de grãos vai chegar a 140 milhões de toneladas, um novo recorde"

Quando coisas que nunca aconteceram antes começam a acontecer algum dia, é compreensível que também comece, logo em seguida, todo tipo de conversa estranha. É o caso, no momento, das novas realidades criadas pela explosão nos preços internacionais dos alimentos e das matérias-primas. Tanto uns como outras, em toda a história da economia moderna, sempre tiveram um papel muito bem determinado: deviam ter os preços mais convenientes para os países ricos, algo que se obtém pela combinação de subsídios, quando eles próprios estão entre os grandes produtores, e controle sobre as cotações do mercado mundial, quando estão entre os grandes consumidores. A países como o Brasil, até agora estava reservada a função de produzir e vender barato matérias-primas como minérios, por exemplo; era admitida a produção de alimentos, de preferência café, açúcar e mais uma ou outra coisa que só dá no trópico, mas com preços feitos pelos compradores. Soja, milho, carne, frango? Não estavam previstos. Álcool? Menos ainda. Aumento nos preços internacionais, disso tudo e também dos minérios? Aí, então, nem pensar. Mas é o que está acontecendo. A vida muda, e muita gente boa não gosta.

Não gosta, em primeiro lugar, porque não há graça nenhuma em abrir mão, mesmo de forma limitada, dos confortos de uma situação em que a maior parte dos benefícios é das nações produtoras de bens industriais e a maior parte dos ônus é das que lhes fornecem matérias-primas. Muito se riu do ex-governador Leonel Brizola quando ele falava nas "perdas internacionais"; pode ter atirado no que viu e acertado no que não viu, mas o fato é que acertou em coisa grossa, como se constata agora. O que parece estar havendo, em relação ao mercado de produtos primários, é uma mudança estrutural, como gostam de dizer os economistas. Os preços estão subindo não porque entraram de repente num ciclo de alta, que surge, cresce e vai embora, mas sim porque se alterou a natureza da demanda. Ela passou a obedecer a uma lógica de aumento, por causa da entrada em cena de um mercado comprador como o mundo jamais tinha visto antes – a China, basicamente, e todas as economias que vêm na sua esteira. As comodidades passaram a ser menos cômodas para os compradores; as relações de troca passaram a ser menos desiguais.

Nesse processo não são apenas os preços que mudam; muda, também, o controle sobre a sua formação. Eis aí mais um fator para entender a atual irritação do Primeiro Mundo. O Brasil vai deixando de ser apenas um price taker, ou um aceitador de preços, como se diz, e começa a ser também um price maker, ou fazedor de preços. Nenhum exemplo dessa situação é tão claro quanto a presente cotação do minério de ferro: os preços, hoje, estão em nível recorde por ação direta da companhia Vale – poder, que como se viu na semana passada, ainda não é suficiente para evitar queda nos lucros da empresa. Essa nova influência do capital controlado a partir do Brasil não ocorre somente na negociação física, como fruto da demanda, mas também na área financeira. Os exportadores brasileiros já não dependem mais exclusivamente da Bolsa de Chicago para escorar os preços; têm opções novas, como a Bolsa de Mercadorias e Futuros.

Contra isso tudo se formou um arco que vai da ponta direita, com o presidente do Banco Mundial, o americano Robert Zoellick, à ponta esquerda, com o ex-deputado suíço Jean Ziegler, passando por socialistas que se converteram, como o diretor-geral do FMI, o francês Dominique Strauss-Khan. Herr Ziegler andava sumido; da última vez que se ouviu falar dele, desempenhava o papel de caça-banqueiros. Ressurgiu agora, como relator especial da ONU, para informar que a produção de biocombustíveis é um "crime contra a humanidade". Contam com todo o apoio da mídia do mundo desenvolvido e, no Brasil, dos inimigos do agronegócio, com destaque especial para o MST, que agora também é inimigo da Vale, e para a banda do governo que trabalha contra tudo o que dá certo na agricultura brasileira. Dão exemplos dramáticos. Mr. Zoellick mostra em público um pacote de arroz que o etanol está tirando da boca de um ser humano; com o biocombustível necessário para encher o tanque de um único utilitário, garante-se, seria possível alimentar um pobre africano durante um ano inteiro. É o etanol, ainda, que provoca o aumento nos preços da tortilla, no México, ou da farinha, no Paquistão. É um detalhe sem nenhuma importância, em toda essa prosa, o fato de que metade da cana do Brasil se transforma em açúcar, ou que, com todo o crescimento da indústria de biocombustíveis, a produção brasileira de alimentos está aumentando, em vez de diminuir. Neste ano a colheita de grãos vai chegar a 140 milhões de toneladas, um novo recorde; as exportações de carne, com embargo europeu e tudo, aumentaram 15% em março, em relação ao ano passado. Também não interessa o fato de que a cultura da cana não tem nada a ver com queimadas na Amazônia.

O governo brasileiro, até agora, tem se mostrado firme diante da gritaria. É essencial que persevere, porque o Brasil está certo – e, se for possível, que defenda a razão, aqui dentro, com a mesma valentia que tem mostrado lá fora.

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