Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 27, 2008

FERREIRA GULLAR

Porque a vida é pouca

Para que desmentir certas histórias se a fantasia excita bem mais do que a verdade?

ERA SIDNEY Miller que costumava dizer: "Metade de minha vida eu vivo, a outra metade me contam", brincando com o fato de que, freqüentemente, tomava porres homéricos, durante os quais perdia inteiramente a noção do que se passava. Não é o meu caso, que, quando bebo, não vou além de uns três copos de cerveja por noite. Mas nem por isso evito que me contem, sobre minha vida, coisas de que não tenho notícia.
Verdade se diga que não possuo a melhor das memórias e que, muita vez, não sei se vivi aquilo ou sonhei ou li em algum livro. Mas, nesses casos, quem me conta a vida supostamente não vivida sou eu mesmo. Fora daí, tudo o mais ouço da boca dos outros. No começo, tratava de desfazer o equívoco, negando peremptoriamente a falsa versão. "Desculpa, amizade, mas isso nunca aconteceu comigo." Quando o interlocutor era apenas o portador do boato, tudo bem; mas às vezes ele se dizia partícipe do fato e insistia que era verdadeiro, que estava lá, que vira ou me ouvira afirmar isso ou aquilo.
Um desses casos teve como conseqüência minha demissão do jornal onde trabalhava. Chegara à Redação com um pacote de livros que deveria levar para São Paulo na manhã seguinte e, terminado o expediente, o pacote sumira. Pedi que o engraçadinho, que o havia escondido, parasse com a graça, mas ninguém se tocou. Então peguei uma cadeira e falei: "Se o pacote não aparecer, jogo esta cadeira para o alto". Como ninguém se moveu, fiz o que prometera e o pacote apareceu, sob gargalhadas. Ri também e me fui. Ao voltar da viagem estava demitido por ter "depredado a Redação do jornal". Anos mais tarde, ouvi de alguém uma nova versão: eu havia jogado para o alto uma máquina de escrever, e essa foi a versão que ficou, apesar de meus desmentidos.
Sei que isso não acontece apenas comigo, mas talvez comigo aconteça com demasiada freqüência. E devo, de algum modo, contribuir para isso, do contrário não se explica por que, com tanta gente que freqüentava o Zeppelin nos anos 60, resolveram meter-me, justo eu, numa história de escafandro. Escafandro no Zeppelin?! Pois é, dizem que o cara entrou vestido de escafandrista, foi até o balcão e pediu um maço de cigarros. E eu teria feito o seguinte comentário: "Eta gente esnobe. Olha só, está todo mundo fingindo que um escafandrista entrar num bar é a coisa mais natural do mundo!".
Muita gente já ouviu falar daquela história do "Poema Sujo", que o Vinicius de Moraes, depois de me ouvir dizê-lo, certa noite, na casa do Boal, em Buenos Aires, insistiu em fazer uma gravação para trazê-lo em minha voz para o Brasil. Pois bem, a gravação foi feita, ele a trouxe e a mostrou para muitos amigos em sua casa no Rio. Essa gravação desapareceu. Em 2006, quando o poema completou 30 anos, a editora José Olympio fez uma edição comemorativa e juntou ao livro uma nova gravação do poema em minha voz. Ao ser marcado o lançamento da nova edição, a editora mandou-me um release, no qual estava escrito que aquela era a gravação que Vinicius trouxera de Buenos Aires, em 1976. Liguei para a editora e apressei-me a desmentir aquela informação. Corrigiram o texto. Acha que adiantou? Perda de tempo. Outro dia, num programa de televisão, ouvi o apresentador dizer: "Esta é a edição comemorativa do "Poema Sujo", com a célebre gravação que o Vinicius de Moraes trouxe de Buenos Aires". E a amiga, a meu lado: "Gullar, isso é mentira. Não me diga que foi você quem inventou essa história".
Pobre de mim, faço o possível para restabelecer a verdade dos fatos e ainda passo por ser o inventor das mentiras! Das grossen sacanagem.
A última dessas invenções apareceu numa coluna de jornal aqui do Rio. Segundo a nota, ao fazer uma palestra sobre poesia, achei dentro do livro que levara comigo os manuscritos de três poemas inéditos, que se tinham extraviado. A platéia então pediu que eu os lesse e eu os li. Como se não bastasse, o colunista transcreveu um dos poemas, numa versão que era, de fato, apenas parecida com o original. Li aquilo, perplexo. De fato, ao fim da dita palestra, alguém pedira que eu lesse um poema meu inédito. Disse então que, por acaso, ao abrir aquele volume, encontrara três poemas de meu futuro livro, que imprimira para ler num evento, ocorrido há vários meses. Não falei de manuscritos nem que os havia perdido. Mandei a versão correta do poema para o colunista, mas não desmenti a história fantasiosa. Desmentir para que, se a fantasia é mais excitante do que a verdade? Se o faço, agora, é porque sei que não adiantará de nada.

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