O ex-ministro tem uma explicação para
a vitória de populistas na América Latina:
economista não entende nada de urna
Marcio Aith
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Poucos políticos ganharam tanto vigor depois de uma derrota eleitoral quanto o deputado Delfim Netto. Sua influência em Brasília só cresce desde que perdeu, em outubro passado, o que seria sua sexta eleição consecutiva para a Câmara dos Deputados. O motivo? Delfim caiu no gosto do presidente Lula, que o considera um amigo e quer nomeá-lo para um cargo no governo. Lula cita sua proximidade com o ex-superministro do regime militar como sinal de que caminha para a direita e que, portanto, amadurece. Já Delfim, que tem elogiado enfaticamente o esforço do governo para distribuir renda, enalteceu em artigo recente o legado teórico de Karl Marx, o que foi visto com desconfiança pelos seus adversários. Em entrevista a VEJA, Delfim diz que suas opiniões não sinalizam uma mudança de convicções, mas "um esforço para conciliar a aritmética econômica à realidade política". Ele também diz que os economistas se esquecem das urnas e, por isso, não entendem a vitória eleitoral de populistas na América Latina. "A eleição de Evo Morales na Bolívia é um caso típico. O Banco Mundial e o FMI publicaram dezenas de livros sobre as virtudes do equilíbrio boliviano. Mas esqueceram os índios."
Veja – O senhor escreveu um artigo defendendo o legado teórico de Karl Marx. Foi uma tentativa de agradar a seus novos amigos petistas?
Delfim – Claro que não. Só os incautos poderiam acreditar que o presidente algum dia cedeu aos flertes do marxismo. Lula já rejeitava o marxismo em seu discurso de posse no Sindicato dos Metalúrgicos, em 1975. Ele disse literalmente que "parte da humanidade havia sido esmagada pelo Estado, escravizada pela ideologia marxista, tolhida nos seus mais comezinhos ideais de liberdade, limitada em sua capacidade de pensar e se manifestar". Lula não precisa de guru nem de agrado, ele tem uma inteligência absolutamente privilegiada e uma intuição muito superior à da maioria dos intelectuais que conheço. De vez em quando ele me convida para um café e eu me sinto honrado. É isso.
Veja – Lula então é menos marxista que o senhor?
Delfim – Nem mais nem menos. O que escrevi é que, tendo ou não tendo lido a obra de Marx, somos todos marxistas, exatamente como somos neoliberais, cartesianos, espinosianos, kantianos, keynesianos, freudianos ou einsteinianos. Ou seja, poucos leram esses autores, mas todos fomos influenciados de uma forma ou de outra por suas obras. A herança de Marx não diz respeito à teoria econômica comunista ou a seu socialismo científico. Ambos produziram enormes desastres econômicos e sociais. Refiro-me ao legado antropológico, à idéia de que o homem se faz pelo trabalho. O velho Karl constatou, antes mesmo do surgimento do mercado, que a liberdade e a igualdade são incompatíveis. Que o homem livre naturalmente produz a desigualdade.
Veja – E que, portanto, é preciso sufocar a liberdade para combater a desigualdade...
Delfim – Essa não é uma conclusão explícita de Marx, mas de seus falsificadores. Ele era um libertário. Seu problema foi ter se esquecido de que não há liberdade quando os meios de produção são estatais. Porque o Estado só dá emprego e benefícios para quem quiser. Além disso, sua obra acabou transformando-se, pelas mãos de outros, numa espécie de religião oficial do império soviético. Em lugar de uma sociedade sem classes e livre, construíram um mundo de opressão e de obscurantismo, como só intelectuais são capazes de fazer. Esses não são detalhes, admito, mas Marx continua necessário, ainda que não seja suficiente.
Veja – Necessário em quê?
Delfim – Ao constatar a incompatibilidade entre a liberdade e a igualdade, Marx nos deu o caminho das pedras para instituir uma certa moralidade que falta ao mercado. Se a desigualdade é natural em um mundo livre, é justo que as pessoas comecem a competir tendo tido as mesmas oportunidades de educação e de saúde. É justo que todos comecem a corrida na linha de largada. Essa é uma constatação necessária.
Veja – Mas essa idéia não é exclusiva de Marx. Ele mesmo a creditou a Adam Smith.
Delfim – Mas os agentes de Adam Smith eram lordes ingleses quando lordes ingleses eram seres morais. Melhor comparar com Friedrich Hayek (um dos maiores pensadores liberais do século XX), que veio depois de Marx e acreditava que o mercado era um ser natural perfeito do qual não se pode exigir moralidade. Ele era um purista. Rejeitava o Estado, mas é justamente aqui que deveria entrar o papel do Estado – para equalizar as oportunidades. Por isso, surpreende que economistas sofisticadíssimos peçam apenas crescimento e briguem contra um governo inclinado a reduzir a desigualdade.
Veja – Mas o senhor mesmo declarou no passado que era preciso fazer o bolo crescer para só depois dividi-lo.
Delfim – Jamais poderia ter dito essa frase. O que eu disse, e até hoje reafirmo, é que não se pode distribuir o que não foi produzido. Isso foi deturpado por motivos político-eleitorais.
Veja – O governo Lula é criticado justamente por distribuir o que não foi produzido.
Delfim – O presidente é suficientemente inteligente para aproveitar a oportunidade que o Brasil lhe deu. Ele tem dito que não vai violar as condições de estabilidade fiscal e não fará nenhuma loucura. Só quer mobilizar a sociedade para que o país cresça mais. Quando Lula deu escala e foco a programas sociais, quis somente tornar as oportunidades de educação e saúde iguais para todos. Pela primeira vez o IBGE consegue captar uma queda na desigualdade de renda. Não é pouca coisa.
Veja – Em que medida o Programa de Aceleração do Crescimento assegura o crescimento?
Delfim – O plano não tem grandes novidades. A maior parte dos projetos de infra-estrutura nele previstos está parada desde 1997. O mérito do plano foi recuperar um projeto de desenvolvimento econômico e procurar acender o espírito animal dos empresários. O setor privado precisa de duas garantias para investir: a de que haverá crescimento e a de que não faltará energia. Se houver essas duas garantias, os investimentos virão. Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência de energia prevista num projeto gigantesco porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão. Com o plano, o presidente tenta abordar essa e outras questões. Mas existe uma lista enorme de emergências no setor público. Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo.
Veja – Cite algumas.
Delfim – Veja o caso da vinculação constitucional obrigatória. No Brasil ela existe para a saúde, para a educação, para tudo. Toda corporação, quando pode, cria uma. Suas conseqüências são desastrosas. Decide-se jogar uma determinada quantia numa área ainda que se saiba que o dinheiro está sendo jogado no lixo da ineficiência ou da corrupção. Com isso, o servidor não só perde o estímulo à produtividade como ganha um incentivo à roubalheira. Vê-se que os indicadores de saúde são piores no Brasil do que em países com níveis semelhantes de gastos e renda. A vinculação também explica, em parte, a sucessão de escândalos na área da saúde. Costumo dizer que ela é a avó da vagabundagem. Quando uma criança faz algo errado, sua mãe lhe dá uns tapinhas, tenta corrigi-la. A avó, não. Quanto maior é a arte da criança, mais beijinhos ela lhe dá. Outro problema sério é que a vinculação congela para a eternidade a prioridade de gastos do momento em que é criada. Os gastos não mudam com as circunstâncias, não dependem de nada. O mundo vai mudar, mas a prioridade de hoje vai vigir pelo resto da história. É um dos absurdos criados pelo espírito de vingança de 1988.
Veja – No que consiste esse espírito de vingança?
Delfim – O constituinte de 1988 partiu da hipótese de que tudo o que fora feito no regime autoritário estava errado. Então, decidiu fazer ao contrário. Produziu a "Constituição do menos um", em que tudo tinha de ser multiplicado por -1 só para inverter os sinais. Deu no que deu por um espírito de vingança com roupagem populista. Instituiu-se, por decreto, uma sociedade do bem-estar de nível sueco num país com nível de renda que era um décimo do europeu. Ainda que a Constituição tenha coisas brilhantes sob o ponto de vista dos direitos humanos e dos benefícios sociais, ela consiste em várias declarações de direitos sem nenhuma indicação de quem pagaria a conta. Naquele momento se colocaram as armadilhas das quais o Brasil não consegue escapar até hoje.
Veja – Ninguém reclamou?
Delfim – As duas únicas instituições que se recusaram a assiná-la foram o PT e o Roberto Campos. O PT dizia que ela não era suficientemente socialista. O Roberto Campos dizia que não era suficientemente capitalista. O doutor Ulysses, com aquela forma elegante de combinar as coisas, acabou convencendo os dois: "Assinem que não tem conseqüência". As conseqüências são as que estamos vivendo hoje.
Veja – Se o objetivo do governo Lula é recuperar a confiança dos investidores, por que cancelou o leilão de novas concessões em rodovias e postergou a reforma da Previdência?
Delfim – O governo não cancelou os leilões nem desistiu de fazer concessões ao setor privado. Essa idéia falsa foi criada por investidores que queriam introduzir volatilidade no mercado para ganhar dinheiro. Os leilões foram adiados para que as taxas de retorno dessas atividades se adaptem a uma nova realidade de juros mais baixos. Nada de mais.
Veja – Por que o senhor não criticou o governo por ter desistido de fazer a reforma da Previdência?
Delfim – É preciso fazer as coisas pelo ponto de menor resistência. E não dá para fazer todas as reformas ao mesmo tempo. Uma reforma previdenciária só teria efeito em quarenta anos. É mais coerente manter o equilíbrio fiscal, garantir uma redução monotônica da relação dívida-PIB e garantir a oferta de energia pela próxima década. As contas da Previdência têm problemas sérios, mas essa idéia de que se podem cortar direitos é um sonho. Não se corta no Brasil e em nenhum lugar do mundo. A não ser que o político se eleja para cortar. Na minha opinião, a mensagem que Lula recebeu do eleitorado foi a seguinte: eu quero crescimento com distribuição de renda. Esse é o mandato do Lula.
Veja – Mas o bom estadista não é aquele que diz a verdade aos eleitores, por mais difícil que ela seja?
Delfim – Desde que ele diga isso antes da eleição, não depois. E, se disser, tenho uma pequena suspeição de que não será eleito. O Nakano (o economista Yoshiaki Nakano, que assessorou Geraldo Alckmin na campanha eleitoral) foi o único sério em todo o processo eleitoral do ano passado. Ele pensou que estava na Irlanda, decidiu falar a verdade com relação aos cortes necessários de gastos e foi execrado, defenestrado. O que ele falou está correto sob o ponto de vista econômico, mas tem um pequeno problema político. Economistas em geral não entendem nada de urna.
Veja – Como assim?
Delfim – Suas fórmulas não fecham porque eles não levam as urnas em consideração. Eles pensam que o Evo Morales, o Chávez e o Ortega são acidentes. Acham que as pessoas votam em fascistóides mentirosos – e é isso o que Chávez é – só para ficar alegres por um período enquanto são enganadas. A Bolívia é um caso típico. Foi o exemplo mais brilhante de estabilização, feito por Jeffrey Sachs. O Banco Mundial e o FMI publicaram dezenas de livros sobre as virtudes do equilíbrio boliviano. Mas esqueceram os índios. Só perceberam quando as urnas foram abertas. Na urna, mesmo a mais brilhante ou rica personalidade vale tanto quanto o mais desvalido dos desempregados.
Veja – Na urna também cabem mentira, populismo e autoritarismo.
Delfim – É verdade, mas a urna só fala errado quando o economista e o político pensaram errado antes. Só depois que eles falharam em conciliar a aritmética econômica com a realidade política.
Veja – A corrupção no primeiro mandato de Lula superou suas expectativas?
Delfim – Os escândalos atrapalharam muito o governo. É claro que tudo isso é lamentável. Mas existe porcaria em todo governo. No caso do PT, aplica-se a fórmula criada na primeira metade do século passado pelo sociólogo alemão Robert Michels: "Sindicalismo mais política é igual a corrupção".
Veja – Isso se aplica ao presidente Lula?
Delfim – Lula já transcendeu o meio sindical há muito tempo. Ele foi um sindicalista competente que trouxe benefícios aos trabalhadores. Lula não é o Chávez.
Delfim – É claro. Ele vai sair no dia 31 de dezembro de 2010. Como um estadista.