A preocupação das empresas envolvidas na Operação Lava Jato de que os políticos - ou pelo menos ou peixes grandes da área - saiam ilesos do caso Petrobrás está evidente na linha de defesa adotada pelos advogados: a alegação de que foram coagidas a participar de um esquema de superfaturamento de contratos, cujo objetivo era fazer caixa para financiar um projeto de poder.
De maneira mais tortuosa, mas nem por isso menos assertiva, o governo sinaliza que já entendeu que está sendo arrastado para o centro da linha de tiro e ensaia a reação. De forma diplomática, a presidente Dilma Rousseff separa pessoas físicas de jurídicas ao dizer que empresas não podem responder pela (má) conduta de funcionários.
Em outra dimensão, porém, o ex-secretário-geral da Presidência Gilberto Carvalho fala aos companheiros do PT sobre a existência de um "complô" de empreiteiras para corromper políticos ligados ao governo e funcionários da Petrobrás no intuito de levá-los todos às "barras dos tribunais".
Pois é. Os dois lados já se deram por entendidos. Um tenta demonstrar que foi vítima do outro e vice-versa. Na realidade, a narrativa não inclui sujeitos passivos. Todos os personagens são ativos, pois atuaram conforme seus interesses. Políticos e empresários aliaram fome e vontade de comer. Não há inocentes na história.
Para efeito de defesa pretendem agora se distanciar, lutar em campos opostos. Do ponto de vista da Justiça, porém, pode ser tarde. Houve um momento em que essa aliança poderia ter sido desfeita. Hoje não há sinal de que juízes de primeira e última instância olhem com tolerância para negócios com indícios de ilícitos no Estado.
Limão. Não há resultado ótimo para o governo nas eleições das presidências da Câmara e do Senado no próximo domingo. Reeleito o senador Renan Calheiros, o Planalto não terá na presidência o fiel aliado dos anos anteriores.
Sem expectativa renovada de poder e com passivo de insatisfações acumuladas, a presidente Dilma Rousseff conhecerá a face do político que não tem "compromisso com o erro" quando lhe convém. Calheiros é aliado de suas conveniências.
Na Câmara, se ganhar Eduardo Cunha (PMDB), o governo não terá um interlocutor submisso, mas nem por isso adverso. Tudo vai depender da atitude do Palácio do Planalto.
Se ele for eleito e o governo souber fazer política direito, o panorama ficará melhor quanto mais Cunha receber sinais favoráveis à composição. Agora, se ele perder com o governo colocando toda a artilharia contra, a consequência será pior.
Derrotado para a presidência da Câmara, Eduardo Cunha será reconduzido à liderança do PMDB com a "faca nos dentes" e o comando de, no mínimo, 66 deputados.
Sem contar aqueles que ele influencia fora do PMDB, que devem ser mais ou menos uma centena.
Contas. Os governistas estão muito furiosos com os oposicionistas. É verdade que para isso precisam reconhecer que, se a eleição para a presidência da Câmara fosse hoje, Eduardo Cunha estaria eleito.
Segundo eles, o resultado está na mão da oposição. Para onde forem os votos do PSDB e do DEM, mas principalmente dos tucanos, irá a definição da decisão em primeiro ou segundo turno.
Oficialmente, os governistas dizem que Arlindo Chinaglia (PT) se fortaleceu. Nos bastidores, reconhecem que a derrota para Cunha é certa se a oposição não mudar de opinião.
No livro "A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais", Mikhail Bakhtin observa que, a partir do Renascimento e do Iluminismo, a gargalhada espontânea e rude das formas festivas populares — próximas da carne, dos processos fisiológicos e da terra — começa e ser transformada e reprimida. O riso contido diz adeus ao seu estilo escandaloso e "grotesco", ligado à imagem de um corpo imperfeito, aberto, mutável e sujeito à decomposição. Surge um Equador cósmico entre o que fica acima (mãos, cabeça e juízo) e o que está vergonhosamente abaixo da cintura: o traseiro, os órgãos genitais e excretores, e os seus orifícios e funções. O grotesco tem nessa divisão sua origem, pois o interior do corpo e as suas passagens remetem ao obscuro das grutas. A mesa se divorcia da cama...
Na estética do Renascimento, que modelou a arte iluminista e "moderna", o corpo perde os orifícios, abandona seus produtos mais humildes: suas protuberâncias e sua capacidade de confundir-se concretamente (como no parto e no amor carnal) com outro corpo. Ele se individualiza. Para Bakhtin, as grosserias e obscenidades seriam "sobrevivências petrificadas e puramente negativas dessa concepção aberta do corpo". A podridão, os órgãos sexuais e a nudez desabrida caracterizavam as festividades populares, as quais baniam o pecado e o tabu, assim como a separação entre o humano e outros mundos.
A partir do século 18, surge um universo fundado na racionalidade que separa a gargalhada (que vem da garganta) do riso superficial educado. O gargalhar é lapidado e "toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo".
Agora temos o risinho mascarado superior, inaugurado por Voltaire e citado pelos estudiosos entendidos em França que comentaram o recente atentado de Paris. Essa seria a tradição do "Charlie Hebdo" quando, de fato, o terrorismo tem a volúpia dos mártires e — é óbvio — de alguns artistas imbuídos de profetismo, reproduzindo um grotesco rabelaisiano cuja onipotência encara a morte como uma diversão, e não como algo a ser suportado.
O riso irônico dos filósofos franceses separa a luta politica das opções religiosas. Naquela, matava-se com método (usando a guilhotina — uma maquina de matar moderna — igualitária e mecânica); no caso da religião, contudo, tudo se justifica em nome de Deus e do Profeta. A liberdade de dizer o que se quer é deste mundo; matar quem blasfema contra o nosso sagrado é uma guerra e uma vingança porque fala deste mundo e do outro.
A modernidade domesticou o riso que, supomos, pode ser dirigido contra ou a favor de alguma coisa ou alguém. "Certamente, continua Bakhtin, o riso subsiste mas ele se atenua e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo". Eu humildemente diria que, se o riso for além da ironia, ele readquire sua antiga volúpia utópica (e carnavalesca) que regenera e pode levar à morte. Morte física ou morte pela transformadora aceitação do gargalhar.
A essa altura, Bakhtin adverte:
"Haverá no mundo meio mais poderoso para opor-se às adversidades da vida e do destino? O inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta máscara satírica e a própria desgraça recua diante de mim, se me atrevo a ridicularizá-la! E, que diabo, esta Terra, com seu satélite sentimental, a Lua, não merece mais do que burla."
O poder atura tudo, menos a gargalhada reveladora de que até os valores tidos como eternos passam, num mundo que todo dia se acaba um pouco. Em outras palavras, podemos morrer de rir!
O Papa Francisco disse: se xingam minha mãe, eu tenho o direito de dar um soco no ofensor. Alguém me lembrou que, no cristianismo, a grande novidade era voltar a outra face. O direito de ofender é um bem inestimável no liberalismo; o não se sentir ofendido e receber o tapa (ou os tiros) aceitando e amando o ofensor fica para o lado religioso de quem é ofendido. O terrorismo recusa o que chamamos de "ética". Na guerra, que como disse Rousseau no "Contrato Social", só pode ser realizada entre estados nacionais, e não entre indivíduos, há uma declaração. No amor idem. Mas no estupro, na carta anônima, no assalto covarde e no assassinato em nome de Deus, o que perturba é a frieza inesperada que suspende as rotinas e asa mediações que nos tornam civilizados. Como negociar com o terror, cuja força vem exatamente da recusa ao dialogo?
A liberdade não é somente um principio abstrato. Suas manifestações criminosas e lesivas não são fáceis de classificar. Numa guerra, um "comando" elimina um chefe de Estado e todos ganham medalhas de honra. Não se trata de um assassinato, mas de defender a pátria. Num contexto de martírio religioso, no qual a motivação é ganhar a santidade e o paraíso num mundo globalizado, terrivelmente entrelaçado por uma dialética de simultaneidades e de intoleráveis diferenciações, a motivação é ainda mais potente. A menos que se equilibre fé e esperança — esse remédio antiterrorista.
Uma querida amiga conta que postou um pedido de clemência para Marco Archer e foi soterrada com uma avalanche de comentários negativos. Respondi que isso, de certa forma, é pedagógico. Remar contra a maré, com as próprias convicções. Mas não fiquei surpreendido. De Vargas para cá muita coisa mudou na sociedade brasileira, sobretudo nos últimos anos: aumento da violência, multiplicação de crimes bárbaros e dramáticos programas policiais nas rádios e TVs.
O"New York Times" registrou uma das consequências: a eleição de uma forte bancada composta de policiais e militares com a perspectiva de tornar a repressão mais severa. É a chamada Bancada da Bala. Conheço alguns deles. Mesmo respeitando seus argumentos, jamais deixei de condenar a pena de morte, sobretudo essa morte singular de Marco Archer.
Foi através de Carolina Archer que o caso me chegou às mãos. Ela sempre foi a mãe corajosa que se dedicava a salvar o filho, viajando com recursos modestos, lutando contra o desespero. Uma vez, ela chegou a abordar o chanceler Celso Amorim, num restaurante do Rio, pedindo ajuda na solução do caso. Carolina queria que a ajudasse a pressionar o Itamaraty. Fiz o que pude, mas a verdade é que o Itamaraty sempre me pareceu correto na sua tarefa de assistir um brasileiro naquela situação e distância.
Uma vez, Marco, sabendo de mim através da mãe, ligou de uma prisão de Bali. Disse que aquilo era muito confuso, e os presos pareciam uma legião estrangeira. Entre eles, e isso tornava mais confusa a atmosfera, estavam os terroristas islâmicos que explodiram uma bomba em Bali, matando 202 pessoas. Sua situação piorou quando foi transferido de Jacarta para uma ilha a 400 km de distância. Isso tornava a assistência muito cara para o Itamaraty, que trabalha com recursos limitados.
No parlamento fiz alguns discursos pedindo clemência para Marco. Sua única utilidade, talvez, foi consolar Carolina. Discursos não são ouvidos nem em plenário, quanto mais na Indonésia. Num encontro internacional de parlamentares em Turim, reuni-me com três deputados indonésios. Falei sobre Marcos. O outro brasileiro no corredor da morte ainda não tinha sido preso. Senti, pela reação deles, que não havia o mínimo espaço para contar com o parlamento indonésio. Foram gentis, mas claros o bastante para descartar um perdão. O caminho era muito estreito. Carolina morreu antes do filho. Morreu sem perder a esperança de salvá-lo. O que, de certa forma, para quem a conheceu correndo de um lado para o outro, é um consolo. Nesses anos, a violência crescente no Brasil e a ousadia dos traficantes de drogas tornaram a retaguarda escorregadia e incerta.
Na Indonésia, o horizonte se fechou com a eleição de Joko Widodo. Sua promessa de campanha: fuzilar os traficantes condenados à morte. Governos são assim, fazem promessas generosas em campanha e não as cumprem. Fazem promessas terríveis em campanha e as realizam prontamente.
A verdade é que o primeiro brasileiro condenado à morte no exterior foi executado. Alguns brasileiros e o próprio governo perderam a batalha. Eu perdi junto com ele, nos damos melhor na derrota. Considero, no entanto, uma bobagem falar em retaliação à Indonésia. E se fosse nos EUA e na China, campeões estatísticos em execuções no mundo?
Marco foi fuzilado em Nusakambangan. Numa entrevista ao repórter Renan Antunes de Oliveira, na prisão de Tangerang, confessou que sempre viveu do tráfico de drogas. Jamais se declarou inocente. Esperava pena de prisão, como a dos terroristas de Bali. Eles explodiram uma bomba no café Petit para que os turistas saíssem assustados e caíssem na explosão da bomba maior.
O episódio é um convite para olharmos a gravidade da nossa situação interna. Os deputados que buscam punições mais severas, ou mesmo a pena de morte, partem de um cotidiano cada vez mais assustador. Na mesma semana em que Marco foi fuzilado, duas crianças no Rio foram atingidas por balas perdidas; e um surfista na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, morto a tiros por um policial militar após uma simples discussão. Os fatos vão se desdobrando, e a sensação de medo e revolta fortalece a tese da pena de morte. Só uma política de segurança e carcerária baseada na inteligência, na tecnologia e na forte aprovação na sociedade pode, progressivamente, se apresentar como resposta. Não a vejo no horizonte.
Os Estados Unidos têm alguns desses requisitos. Ainda assim, a pena de morte foi abolida em apenas 15 estados. Recentemente um homem chamado James Wood foi condenado à morte no Arizona. Agonizou duas horas após receber a injeção letal. O governo anuncia mudanças químicas na próxima. Saem midazolam e hidromorfona, entram pentobarbital e sodium pentothal.
Com um tiro no peito, em Nusakambangan, ou pentobarbital no Arizona, a pena de morte é condenável. Mas devo reconhecer: torna-se cada vez mais espinhoso defender essa tese num Brasil violento, em crise econômica e dominada por um universo político em decomposição.
Loretta Elizabeth Lynch Hargrove vai chefiar a Procuradoria-Geral de Justiça dos Estados Unidos nos próximos dois anos. Ela foi escolhida por Barack Obama para substituir Eric Holder, que renunciou em novembro.
Formada em Harvard, Lynch tem reputação de durona construída em dois mandatos (2000 e 2010) no comando da procuradoria federal do Distrito Leste de Nova York. No intervalo, integrou o conselho de administração do banco central regional (FED) de Nova York. É descrita como personagem tão discreta quanto incisiva em alguns dos principais casos julgados na cidade na última década e meia. Processou bancos por fraudes (Citi por US$ 7 bilhões e HSBC por US$ 1,9 bilhão), congressistas, policiais, mafiosos como Vincent Asaro (inspirou "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese). E, principalmente, terroristas.
Lynch conduziu investigações sobre redes terroristas que atuaram nas Américas até a década passada. Suas digitais permeiam trechos do processo argentino contra agentes do governo do Irã pelo ataque à Associação Mutual Israelita da Argentina (Amia), em 1994, no qual morreram 85 pessoas. Era amiga do procurador argentino Alberto Nisman, morto no último domingo.
Foi com o auxílio de Lynch que Nisman coletou evidências sobre a extensão da teia de radicais montada na região pelo clérigo Moshen Rabbani, adido cultural iraniano em Buenos Aires. Segundo a Justiça argentina, Rabbani organizou dois atentados no espaço de 28 meses: em 1992, contra a Embaixada de Israel e, em 1994, contra a Amia.
O clérigo chegou à América do Sul em 1983. Financiou reformas de mesquitas no Brasil (São Paulo e Curitiba), na Colômbia, na Guiana, no Paraguai e na Argentina.
Em 2008, Nisman recorreu aos EUA para mapear a rede de Rabbani. Foi encaminhado a Lynch em Nova York. Ela conduzia um processo contra Abdul Kadir (nascido Aubrey Michael Seaforth, na Guiana), acusado de planejar um ataque ao Aeroporto Kennedy (NY). Pretendia explodir dutos e tanques de combustível subterrâneos.
Preso em 2007, em Trinidad e Tobago, a bordo de um avião venezuelano em rota para Teerã, Kadir foi condenado à prisão perpétua, em 2010. Lynch comprovou sua subordinação a Rabbani, em Buenos Aires.
Lynch possibilitou a Nisman acesso a dados relevantes para seu relatório de 600 páginas sobre a extensão da rede operada por Rabbani na América do Sul, inclusive na região da Tríplice Fronteira, e seus laços com diplomatas em Santiago, Montevidéu e Brasília — ele enviou uma cópia ao governo brasileiro no ano passado. Entre as evidências que obteve estavam detalhes sobre a reunião governamental de 14 de agosto de 1993 em Mashhad, a segunda maior cidade do Irã, onde se teria decidido o ataque à Amia. Rabbani esteve lá, assim como Ahmad Reza Asghari — mais tarde reconhecido como Mohsen Randjbaran, agente do serviço de segurança (Vevak). O clérigo e o agente da Vevak abandonaram Buenos Aires um dia antes do atentado contra a Amia.
Quando assumir a Procuradoria-Geral, Lynch terá de decidir se vai ou não lidar com dois casos não resolvidos: o atentado à Amia e a misteriosa morte do aliado Nisman, quatro dias depois de denunciar a presidente Cristina Kirchner por crime contra a Humanidade — a negociação de um acordo com Teerã para impunidade dos terroristas. Ambos estão repletos de conexões com alguns dos processos sobre delitos transnacionais que ela conduziu em Nova York nos últimos 15 anos.
Não faz muito tempo, assisti na televisão a um debate de que participavam alguns analistas políticos e cujo tema era o rumo ideológico que o Brasil seguirá neste ano de 2015, que mal começa.
Como sempre, aprendi muito com suas considerações analíticas, que não deixaram dúvida quanto às dificuldades que o país enfrentará daqui em diante, tanto no plano político como no econômico.
A verdade é que, conforme observaram, a própria constituição dos ministérios no novo governo da presidente Dilma deixa evidente a encrenca em que se encontra, ora nomeando ministro que representa o contrário de sua visão de economia, ora escolhendo outro, para o Esporte, que nada entende do assunto e o confessa.
Há quem tema que este segundo mandato de Dilma Rousseff seja um desastre.
Espero que não chegue a tanto, pois quem paga o pato somos todos nós.
A outra parte daquele debate envolveu a questão ideológica, implicando a revelação do que ocorre nas escolas de ensino médio e nas universidades: a atuação de professores, na maioria de esquerda, fazem a cabeça dos alunos, induzindo-os à leitura de livros marxistas, apontados por eles como a única visão correta da realidade contemporânea.
Alguns alunos chegariam a afirmar que as aulas são, com frequência, trabalho de formação ideológica anticapitalista e antidemocrática.
São informações plausíveis, uma vez que em meus contatos com o meio universitário pude verificar, com surpresa, o quanto o marxismo que saiu de moda continua respirando em parte do ambiente acadêmico.
Disse, certa vez, a uma estudante universitária que não tinha cabimento insistir na crença marxista, quando a União Soviética e todos os países da Europa Oriental, sem exceção, trocaram o comunismo pelo capitalismo. Ao que ela me respondeu:
"Mas nenhum desses países era verdadeiramente comunista. O comunismo ainda está por vir". Mal acreditei no que ouvia.
Qual a razão de semelhante resposta? Simplesmente, a necessidade de crer numa utopia que prometia mudar a sociedade, torná-la mais justa e solidária. Com o fim do socialismo real, só resta aos que nele acreditavam desistir dessa utopia ou apegar-se a ela, custe o que custar, ainda que contra a realidade dos fatos.
Mas esses são os que realmente sonham com uma sociedade fraterna e justa, e mal podem viver sem acreditar nela. Há, porém, outro tipo de revolucionário que, em face da inviabilidade da utopia, tomou outro rumo, que nada tem de idealista.
Trata-se do populista, dito de esquerda ou, como o chamo, o neopopulista. É aí que está o perigo, e não nos marxistas idealistas, que sonham de fato com uma sociedade justa, embora inviável nos termos em que a concebem.
Não é isso o que pensam os neopopulistas, que de idealistas não têm nada, como se vê na Venezuela do chavismo, no Equador de Correa, na Argentina de Cristina Kirchner e, até certo ponto, no petismo que se mantém no poder no Brasil há 12 anos e vai para mais quatro.
Os marxistas, os comunistas de fato, nunca tiveram possibilidade de chegar ao poder no Brasil. Logo, a pregação dos professores, induzindo os estudantes ao marxismo, é perda de tempo, uma vez que, mesmo quando o comunismo era a segunda potência política e militar do mundo, não chegou ao poder no Brasil. Não seria agora que iria consegui-lo. O que esses professores dizem aos seus alunos, a realidade se encarregará de desmentir.
Já os neopopulistas, que nada têm de idealistas, ao mesmo tempo que posam de anticapitalistas, usam o dinheiro público para financiar programas
assistencialistas que beneficiam as camadas mais pobres da população.
Essas e outras medidas semelhantes garantem-lhes os votos de uma ampla parte do eleitorado e, graças a isso, mantêm-se no poder.
Mas, como dizia um professor meu na escola do partido, em Moscou, em economia não há milagre e, por isso, de onde se tira e não se bota, vai faltar dinheiro.
Por isso, Dilma foi obrigada a entregar o ministério da Fazenda a um economista que pensa o contrário dela. Ele vai tentar repor, nos cofres do Estado, o dinheiro que ela gastou a fundo perdido.
‘O chá de cogumelo da juventude fez efeito retardado’, ironiza Vasconcelos
POR MARIA LIMA
24/01/2015 6:00 / ATUALIZADO 24/01/2015 7:48
O marqueteiro João Santana e a presidente Dilma Roussef antes debate da TV Globo - ERBS JR. / Erbs Jr./Frame Photo/AE/02-10-2014
BRASÍLIA
- O publicitário e marqueteiro Paulo Vasconcelos, que atuou nas últimas
campanhas do tucano Aécio Neves (MG), respondeu ontem aos ataques do
marqueteiro João Santana, que em depoimento ao jornalista Luiz Maklouf
para o livro “João Santana: um marqueteiro no poder”, disse que ele
fizera “uso amador da mediocridade” na campanha do candidato do PSDB.
Surpreso com as críticas publicadas no livro, Vasconcelos usou o humor
para contra-atacar:
— O João deu uma surtada! O chá de cogumelo da
juventude fez efeito retardado. Deve ser o calor. A eleição acabou e a
disputa foi entre profissionais, entre CNPJs, não entre pessoas. Como
ele pode dizer que nossa campanha foi medíocre? Na nossa atividade de
marqueteiro, para o bem e para o mal, a eficiência se mede pelos
números, pelo quantitativo. Nesse caso específico, quem mais ganhou
votos no segundo turno foi o Aécio. Em apenas duas semanas, com
ferramentas e tempos iguais, ganhamos 16 milhões de votos, e ele, com
Dilma, ganhou 11 milhões de votos. Metáfora futebolística
No
perfil biográfico que foi lançado ontem, o publicitário de Dilma nega
que tenha feito uma campanha agressiva, recorrendo a baixarias. Ao longo
da disputa, Santana levou à TV propagandas que diziam que a proposta de
Marina Silva, candidata pelo PSB, de independência do Banco Central
deixava em risco a comida das famílias e outras que massificavam o
discurso de que quem conhecia Aécio Neves não votava nele, em referência
à derrota do tucano no primeiro turno em Minas Gerais — que se
repetiria no segundo turno.
No livro, o marqueteiro de Dilma
Rousseff diz que Paulo Vasconcelos era um “marqueteiro de segunda
divisão, que está caindo para a terceira”. Usando a mesma metáfora da
disputa de futebol, o marqueteiro de Aécio disse que conseguiu levar seu
candidato para a final do campeonato e quase ganha o jogo.
—
Antes do segundo turno, nós éramos um time da série B jogando no campo
adversário, com um terço do tempo e com a torcida contra. Conseguimos
levar esse time da segunda divisão para a final do campeonato e perdemos
nos pênaltis — respondeu.
Na entrevista a Maklouf, João Santana
também ironiza a tática da campanha tucana de não recorrer ao mesmo
nível de agressão usado pela campanha petista. Revelou que sua
estratégia para bater o adversário de Dilma no segundo turno foi a
adoção da ação negativa “em ondas superconcentradas”, com a escolha de
temas para superbombardeio, com o objetivo de desestabilizar Aécio. E
criticou a tática da reação da campanha adversária: “Aécio quis se fazer
de vítima e de superior. Chegou a lançar um slogan ridículo e inócuo: a
cada ataque, uma proposta”.
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—
A única coisa que o marqueteiro não pode fazer é reescrever a História.
Eu não quero levar para a minha biografia uma deselegância de responder
ao João no mesmo tom. Os números estão aí. Dizer que fizemos uma
campanha medíocre é chamar a maioria dos gaúchos e os 70% dos paulistas
que votaram em Aécio de medíocres. Isso é um desrespeito com o eleitor —
rebateu Paulo Vasconcelos. Acusações de nepotismo
Um
dos ataques feitos por Dilma a Aécio, foi a acusação de que ele teria
praticado nepotismo no seu governo em Minas Gerais, empregando “uma
irmã, um tio, três primos e três primas”. Em um dos debates, Aécio
rebateu dizendo que a irmã Andrea Neves o auxiliava de forma voluntária,
sem receber salário e contra-atacou lembrando que o irmão de Dilma,
Igor Rousseff, havia sido nomeado pelo então prefeito de Belo Horizonte e
amigo Fernando Pimentel para um cargo na administração municipal e não
teria trabalhado.
Passada a eleição, o PSDB pediu que o Ministério
Público investigasse a denúncia de João Santana e obteve uma certidão
atestando que não houve nepotismo nos governos de Aécio Neves em Minas
Gerais. O partido divulgou ontem o documento afirmando que não teria
sido “identificada situação (de nepotismo) envolvendo familiares do
então governador Aécio Neves”.
Para Armínio Fraga, ministro pouco pode fazer sozinho e 'vai até um certo ponto'
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo
Num estilo mais direto e crítico do que de costume, o ex-vilão da campanha presidencial, Armínio Fraga, disse ao Estado que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, "largou bem, mas é uma ilha de competência em um mar de mediocridade, com honrosas exceções". Segundo Armínio, que foi presidente do Banco Central no governo FHC e seria o homem da economia num eventual governo de Aécio Neves, "o governo é carregado de incompetência, de ideologia e de corrupção".
Depois de virar o vilão da história durante a campanha, como o sr. se sente agora?
Estou me desintoxicando da campanha. Eu não sou vilão e me irritava o baixo nível do debate e aquela verdadeira produção de mentiras e de cenas, tudo muito teatral. Eu dizia uma coisa, eles deturpavam ou tiravam do contexto. Dizia outra, eles deturpavam de novo. Então, foi tudo muito frustrante. E eu não sou desse mundo.
Que mundo?
De campanha, de debate político, de confronto parlamentar. Sou uma pessoa engajada, que pensa o Brasil, que pensa política pública, mas não faço política diretamente.
O que o sr. conclui com a experiência?
Estamos vivendo uma enorme crise de valores e isso é gravíssimo. Nós temos exemplo para todo lado, é mensalão, é petrolão, mentiras na campanha, como se tudo isso fosse muito natural. Não é.
E a economia?
Há um ciclo, desde que o presidente Lula mudou de linha na área econômica no segundo mandato, com características populistas que incluem esse tipo de discurso distorcido e muito difícil de se contradizer. Muita gente acredita que um regime populista não se derrota; ele mesmo quebra, se destrói. Então, o que o Aécio tentou na campanha, e nós todos junto com ele, foi derrotar um regime populista que tem tentáculos enormes que atingem um número imenso de pessoas.
Baixo crescimento, inflação alta, juros altos, nada disso foi capaz de derrotar Dilma. Por quê?
No que se refere ao ciclo econômico, as coisas às vezes demoram a acontecer. As implicações de uma desaceleração drástica do crescimento, como ocorreu no primeiro mandato dela, ainda não se fizeram sentir. Estão a caminho. E quem vai sentir mais são os mais pobres. São sempre eles, sempre, sempre, sempre.
Pode-se dizer que a grande falha da era petista é a perda de competitividade?
Não gosto dessa palavra, competitividade. Ela tira o foco da palavra mais importante, que é produtividade. Como você chega a ser competitivo? Produzindo. Então, falta uma educação de qualidade, empresas acopladas aos melhores padrões globais, trazer para cá o que presta. O Brasil não precisa focar apenas em inovar. Em algumas áreas pode apenas imitar. E nem isso nós estamos conseguindo.
O Levy não está indo bem?
O Levy largou bem, mas é uma ilha de competência num mar de mediocridade no governo Dilma, com honrosas exceções, como os ministros Izabella Teixeira (Meio Ambiente), Kátia Abreu (Agricultura) e Alexandre Tombini (Banco Central). Sozinho, o Levy vai até um ponto. Pode evitar ou postergar um rebaixamento do crédito do País e até acalmar um pouco as expectativas, mas o lado qualitativo que nós imaginávamos vai continuar muito prejudicado. O Brasil tem uma renda per capita que é menos de 20% da americana. Então, há um espaço enorme para crescer. O Brasil deveria crescer e pode crescer, e rápido, mas tem de arrumar as coisas de uma maneira muito ampla.
Fundamental agora é arrumar as contas?
É bom arrumar as contas, mas não é só arrumar as contas. O Levy já anunciou medidas para tapar metade do buraco que ele definiu como meta para o primeiro ano. Não quero entrar em detalhes, mas umas são melhores, outras são muito polêmicas, como essas das pensões. São questões tão fora da curva global que nem deveria haver discussão, mas eram proibidas, vetadas, nessa campanha completamente maluca que nós tivemos.
As medidas anunciadas até agora não são suficientes?
Ele está focando mais do lado da receita do que do gasto. Em parte porque integra um governo que tem essa cabeça, que deixou essa herança aí. Num governo carregado de ideologia, de corrupção e de incompetência, não há nada para cortar? É lógico que tem muita gordura para cortar e, se houvesse um corte de 10% em todas as instâncias, a população nem ia notar. Eu até reordenaria: incompetência em primeiro lugar e depois ideologia e corrupção. Por mais gigantesca que seja a corrupção, acho que os outros dois têm até peso maior, aliás, bem maior.
É mesmo? Por quê?
O impacto econômico que se tem quando o país cresce zero, em vez de quatro, é inimaginável, incalculável, gigantesco. Muito maior do que esses 3% que, aparentemente, são cobrados aí de tudo.
O que mais é preciso fazer?
Tem de mexer em tudo, tem de abrir e dizer: "Tudo está valendo". Isso é que faz falta. Como o Levy vai trabalhar, se tudo o que está aí foi feito pelo próprio governo e com a própria presidente à qual ele se reporta? Então, ele trabalha numa saia-justa danada.
Se o Aécio Neves tivesse sido eleito, ele estaria fazendo tudo isso que a Dilma liberou o Levy para fazer?
Não sei bem o que é "tudo isso". Sinceramente, acho pouco.
O Aécio aumentaria as tarifas? Foi isso que disparou as manifestações de junho de 2013.
Num sistema no qual haja princípios, um certo realismo tarifário é essencial. É legítimo discutir para onde a conta vai, se vai para o consumidor, se vai para o contribuinte, mas para algum lugar ela vai. Do bolso de alguém sai. São decisões difíceis, mas é preciso o mercado funcionar para não haver racionamento.
E as dificuldade políticas para fazer exatamente as mesmas coisas ou mais? CUT, MST e UNE calam com a Dilma, mas não calariam com vocês. Seria um caos?
Talvez. Mas, de outro lado, nós teríamos um jato de ânimo, de energia na economia que colocaria as pessoas em dúvida quanto a ir para a rua fazer manifestação. Tem tanta coisa errada que um grupo de pessoas trabalhando com um bom objetivo, com visão clara do que precisa ser feito, chegando cedo e saindo tarde todo dia poderia fazer muito, muito mesmo.
Os críticos petistas das medidas de Dilma e do Levy dizem que a política econômica que eles estão fazendo é do PSDB, que pune trabalhadores, consumidores, contribuintes e poupa os ricos. Concorda?
O nosso modelo é muito, mas muito mesmo, mais progressista do que esse que está aí. Lugar de empresário é na fábrica, não é em Brasília. Isso é altamente regressivo. Um sistema muito ruim, no qual empresas doam centenas de milhões de reais para as campanhas. Como pode isso? Não é possível que dentro do PT e entre simpatizantes do PT não haja um monte de gente que não veja isso, que não enxergue a loucura que é tudo isso.
As pessoas vão ter de acordar.
O silêncio dessa base petista não é sobretudo estranho nos bancos oficiais e na Petrobrás? Acho que eles viveram o efeito do sapo na panela. Sabe como é? O sapo está lá na panela, no início a água é geladinha, depois vai esquentando devagar, ele não percebe, até que ferve e ele morre.
A água está fervendo?
Já ferveu. Muita gente da Petrobrás, do Banco do Brasil, da Caixa nos procurou para falar das frustrações deles. As origens do PSDB são de centro, de centro-esquerda. O Estado tem um papel importante para combater a pobreza, para promover a igualdade de oportunidades. Isso não é conservador. Conservador é ficar dando dinheiro para empresário.
E o risco sistêmico do escândalo da Petrobrás e das empreiteiras, sobretudo no setor financeiro?
Tira o financeiro, porque o risco é sobre toda a economia brasileira. O trabalho da PC, do MP e da Justiça é saudável, mas que isso gera uma certa paralisia durante um tempo, isso gera. É o preço a pagar. Certamente vale a pena.
Recessão este ano?
É, recessão. Na verdade, já tem recessão. O País cresceu menos de 1% no ano passado, deveria estar crescendo 4%. Vai dizer que não é recessão? Na China, quando cai de 8% para 7%, é recessão.
E os empregos?
É isso. Infelizmente, o desemprego vai aumentar. Primeiro, vem a insegurança, depois vem a falta de criação de postos de trabalho, e enfim vem demissão mesmo. Tudo dentro do quadro de recessão.
O sr. trabalhou anos fora. Qual o efeito de tudo isso sobre a imagem externa do Brasil?
É péssimo. Aquela euforia exagerada de 2010 passou totalmente. A percepção, então, é ruim e vem piorando. É e a percepção de um país que vem perdendo relevância. É triste.
Este ano de 2015 não está trazendo surpresas na economia. Para começar, era óbvio que o governo da presidente Dilma Rousseff descumpriria frontalmente seus compromissos de campanha eleitoral, o que, convenham, não surpreende quem estuda minimamente esse assunto. Creio até que as taxas de traição programática do primeiro governo Lula foram maiores que as do segundo governo Dilma - até aqui, ao menos.
Memória informa e também é política. Lembro-me de um Jornal Nacional no segundo turno das eleições de 2002: o Banco Central (BC) elevara os juros e Lula foi chamado a opinar. Não deixou por menos: "Isso é coisa de governo que serve aos bancos, governo de banqueiros!". O candidato da situação - eu mesmo! -, em posição obviamente desconfortável, também falou, poupando o BC de críticas e atribuindo a medida às incertezas do processo eleitoral. Desdobramento: o petista venceu, nomeou um banqueiro para a presidência do BC, manteve antigos diretores por um bom tempo, nomeou depois outros piores, pôs os juros nas nuvens, ganhou aplausos de toda a comunidade financeira nacional e mundial e foi chamado de realista pela imprensa. Uma indagação aos navegantes: vale a pena aplaudir estelionatos eleitorais?
Reeleita, Dilma tem de reparar seus erros. É o caso da correção de preços administrados - derivados de petróleo e energia elétrica -, reprimidos anteriormente por interesses eleitorais. A taxa de câmbio nominal deve crescer, a menos que o governo mantenha os subsídios fiscais. Aliás, esse será um grande teste para a política econômica Levy-Barbosa: vai dar sequência à manipulação do câmbio para segurar a inflação mediante operações de venda futura de dólar (swaps), que custam caríssimo ao BC e ao Tesouro e ficam fora do Orçamento federal? Apenas no segundo semestre de 2014 (até novembro), o prejuízo nessa conta alcançou R$ 20,5 bilhões - o mesmo valor do pacote tributário ora anunciado.
Parafraseando o marqueteiro João Santana num ataque mentiroso às pretensões tucanas, o governo Dilma semeou inflação e elevou os juros. Com o aumento de 0,5 ponto ontem, a taxa subiu 1,25 ponto em três meses, o que custa a bagatela de R$ 19 bilhões/ano ao Tesouro - perto de 30% da meta de superávit primário anunciada pelo Ministério da Fazenda. O governo ainda aumentou a alíquota do IOF sobre o crédito ao consumo e elevou juros de financiamento habitacional.
Câmbio, petróleo e energia empurrarão a inflação para cima, noves fora dois fatores atenuantes, que talvez facilitem a acomodação de preços relativos: o enfraquecimento da atividade econômica e a queda dos preços internacionais de commodities.
A fim de conter a deterioração das expectativas sobre a economia brasileira, na iminência de ser rebaixada pelas agências de classificação de risco, a dupla Levy e Barbosa tem investido - até agora de forma bem-sucedida - na imagem da responsabilidade fiscal, abalada pelos números sofríveis e seguidas tentativas de maquiagem feitas até o ano passado. As ambições são moderadas: a meta de superávit primário de 1,2% do PIB para 2015 corresponde ao segundo menor porcentual desde 2000, sendo superior apenas ao de 2014, que foi zero. Como lembrou Francisco Lopes, o ajuste fiscal proposto não deve ser suficiente para estabilizar a trajetória da dívida pública líquida, que poderá saltar de 36% para 40% entre 2014 e 2019.
Neste espaço, desde 2011 procurei mostrar como o governo Dilma era inábil para administrar a difícil herança recebida de seu antecessor, de quem, aliás, ela fora estreita colaboradora. Na década passada o petismo desperdiçou uma das maiores oportunidades econômicas que o Brasil contemporâneo já teve: a notável bonança externa decorrente do crescimento exponencial dos preços de nossas exportações de matérias-primas e a disponibilidade de dinheiro externo abundante e barato.
Em vez de aproveitar essa situação para fortalecer nossa economia, o governo promoveu verdadeira farra voltada para o consumo, graças à sobrevalorização cambial mais estúpida de todas quantas houve. Depois da quebra do Lehman Brothers o BC demorou cinco meses para reduzir os juros, que já eram os mais elevados do mundo, enquanto o restante dos países derrubava rapidamente os seus. Em seguida atuou, para manter o diferencial entre o Brasil e o exterior, atraindo capitais à procura de ganhos extraordinários em curto prazo e apreciando ainda mais o real.
Assim, em vez de fomentar a competitividade da economia, investindo em infraestrutura, reduzindo o custo Brasil e incentivando as exportações de manufaturados, o petismo fez o contrário: barateou as importações e encareceu o preço externo de nossas exportações industriais. O golpe na indústria doméstica foi fatal: até hoje seu nível de produção é inferior ao de 2008; o emprego, 10% menor; a balança comercial de manufaturados, mais ou menos equilibrada em 2002, desabou para um déficit de US$ 70 bilhões em 2010 e mais de US$ 110 bilhões em 2014. Evidentemente, houve um colapso nos investimentos industriais, puxando a economia para baixo, além de elevar o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos à inquietante vizinhança dos 4% do PIB.
Depois do quadriênio perdido, a economia entrou paralisada em 2015 e o Brasil deve assistir ao longo deste ano à marcha da estagflação galopante, com três fatores agravantes: a seca, que amplia as incertezas sobre a oferta de energia, já prejudicada pelos erros nessa área, e o escândalo do petrolão; o terceiro elemento serve de pano de fundo: não há rumo para o médio e o longo prazos. Inexiste até debate a respeito. A maior ambição do petismo, hoje, é a de um milagre: sobreviver até 2018 e tentar (re)eleger Lula. O modelo petista é um cadáver adiado que procria, como escreveu Fernando Pessoa (Dom Sebastião, Rei de Portugal). A oposição pode ir mais longe: além da vigilância, da crítica e da mobilização, tem de forçar o debate de ideias, fazer propostas, apresentar soluções. Eis uma bela e eficaz ação contra quem não tem mais nada a dizer.
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*José Serra é ex-prefeito e ex-governador de São Paulo
Em outros tempos, classificaria o choramingo de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre a alteração da política econômica como dor de cotovelo. Já hoje estou convencido de que se trata precisamente disso.
Depois de capitanear há pouco um manifesto a favor da presidente e da política então vigente, afirma não considerar a mudança "uma traição, e sim submissão".
A presidente teria capitulado "diante das pressões de mercado, assim como os líderes europeus". Parece menos grave do que "traição", mas o efeito final é o mesmo: ao menos por ora o governo não parece (ainda bem!) disposto a seguir suas recomendações.
Mansidão à parte, é claro que houve capitulação. Não, é bom que se diga, diante do "mercado", essa entidade incorpórea que leva a culpa quando os "keynesianos de quermesse" se sentem traídos.
O que levou à rendição foi o desempenho pífio da política econômica que vigorou no primeiro mandato, pela qual Belluzzo, como interlocutor privilegiado da presidente, foi um dos responsáveis.
A "nova matriz macroeconômica" pôs em prática exatamente as prescrições de economistas como ele, que em nenhum momento discordou do que foi adotado. Do lado fiscal, o gasto federal cresceu como nunca, atingindo no ano passado um aumento de R$ 193 bilhões relativamente ao observado em 2010, já deduzida a inflação. Disso, menos de R$ 20 bilhões corresponderam a investimento adicional, mesmo colocando no bolo a partir de 2013 os gastos ligados ao Minha Casa, Minha Vida, o que superestima a ampliação do gasto de capital.
Os bancos públicos também emprestaram como se não houvesse amanhã. Apenas no BNDES o volume de crédito saltou de 9,4% para 12,1% do PIB em quatro anos (R$ 170 bilhões em dinheiro de hoje), praticamente todo financiado pelo aumento da dívida do Tesouro, cujos repasses para o banco atingiram R$ 160 bilhões no período.
Seguindo as recomendações da "nova matriz", a moeda sofreu desvalorização.
Além das intervenções regulatórias (limites às vendas de dólar, IOF sobre ingressos etc.), o Banco Central comprou cerca de US$ 63 bilhões em 2011 e 2012, trazendo o dólar de R$ 1,60/R$ 1,70 para R$ 2,10/R$2,20 entre 2011 e meados de 2013. No mesmo intervalo, as demais moedas latino-americanas se apreciaram relativamente ao dólar, sugerindo que se tratou de política deliberada, e não de um movimento global, como o observado nos últimos meses.
Já o BC, mesmo em face de inflação acima da meta e crescente, insistiu em reduzir os juros de 2011 a 2012. Só a ameaça de a inflação superar o limite máximo de 6,5% é que fez o Copom correr, tardia e relutantemente, atrás do prejuízo.
Por fim, com as dificuldades de conter a inflação, houve recurso a controles diretos de preços, dos combustíveis à energia, passando pelas tarifas de ônibus urbanos, intervenção tosca que desarticulou, entre outros, os setores sucroalcooleiro e energético, para não mencionar o desastre nas finanças da Petrobras, que se tornou a empre- sa de petróleo mais endividada do mundo.
Os resultados estão aí: crescimento de 1,5% ao ano, inflação superior a 6% ao ano, deficit externos crescentes e uma dívida pú- blica que saltou de 53% para 63% do PIB (aumento de R$ 1,2 trilhão). Em português castiço: deu com burros n'água...
A política agora adotada vem para corrigir as bobagens cometi- das em nome da "nova matriz", alegremente apoiada por Belluzzo. Já dizia Guimarães Rosa: "Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão".
Na ausência do ajuste fiscal, não há como permitir o encarecimento do dólar sem efeitos ainda mais perversos sobre a inflação (enquanto na Europa, ele parece ignorar, o problema é a deflação) nem como reverter a tendência de aumento da dívida pública.
Há de custar caro? Há, mas o custo de pôr em casa em ordem, é bom deixar claro, é responsabilidade daqueles que a desarrumaram e Belluzzo fez parte, com gosto, desse time, não por acaso a caminho da Segundona.
Os cubanos têm um carnê de racionamento que lhes dá direito a comprar uma cesta básica em pesos
E assim foi: fui num pé, voltei no outro. Durante uma semana, vi muita coisa, bati muita perna, conversei com muitos cubanos. Me hospedei num hotel de luxo e me hospedei na casa do amigo da amiga de um amigo; comi em restaurantes estatais, todos muito ruins, e comi em excelentes paladares, os pequenos restaurantes dos novos empreendedores, geralmente montados nas suas próprias casas. Fui a supermercados, fui a vendinhas e fui a umas poucas lojas. Tomei sorvete na famosa sorveteria Coppelia, mas desisti de pedir um daiquiri no não menos famoso restaurante La Floridita porque seria um desperdício, já que não bebo álcool. À minha volta, no balcão e nas mesas do salão vermelho, dezenas de turistas contemplavam, encantados, as taças com rodelas de limão espetadas, numa cena totalmente anos 1950; do lado de fora, uma frota de carros antigos os esperava, para completar com perfeição a viagem no tempo.
Fiz um diário de viagem, que postava para a família e para os amigos. Escrevia antes de dormir, no celular, e no dia seguinte, no final da tarde, me conectava do Hotel Parque Central, que cobra a fortuna de US$ 9 por hora pela mercadoria exclusivíssima. Internet em Cuba é luxo até para estrangeiros.
"Primeiríssimas impressões: Havana é maravilhosa, mas não é", escrevi. "É linda e pitoresca para quem vem turistar e tem passagem de volta para outro lugar, mas viver aqui é uma luta. Tudo é difícil, com exceção do que é impossível. Internet, por exemplo. Não há cibercafés nem lan houses (que vi às pencas até no Tibete, há alguns anos). Pode-se acessar, mal, de alguns poucos hotéis, a um custo exorbitante, totalmente fora do alcance dos cubanos. Os restaurantes são bonitos e têm de tudo — mas, novamente, estão fora do alcance dos nativos."
É preciso explicar que há duas moedas em Cuba. Os CUCs, pesos convertidos, e os pesos cubanos. Os pesos são a moeda habitual dos cubanos; os CUCs são a moeda forte utilizada pelos turistas. Um CUC, que vale um pouco mais do que US$ 1, custa 25 pesos. Apenas o básico do básico pode ser comprado em pesos; o resto se paga com CUCs. Itens como sabonetes ou pasta de dentes, disponíveis para quem paga em CUCs, vivem em falta nas lojas que vendem em pesos. O problema é que apenas os cubanos que trabalham para turistas ou têm parentes fora têm acesso a CUCs; os demais são obrigados a se virar com salários em pesos.
"As pessoas que encontrei até agora são umas simpatias, a música é sensacional, a cidade é o sonho de qualquer pessoa que gosta de fotografar, mas viver no mundo paralelo do turismo, que tem até a sua própria moeda, é tão constrangedor que chega a ser ofensivo", continuei. "Passei o dia com dor na consciência, como se comer direito e me hospedar com conforto fossem atos vagamente criminosos, dos quais precisasse me envergonhar."
Essa sensação permaneceu comigo até o fim da viagem.
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"Se você acordar cedo, fizer café e ficar parada na porta de casa vendendo cada xícara a um peso, no fim do dia vai ter ganhado mais do que se trabalhar o mês inteiro", disse o motorista que me levou para ver Havana. O motorista é engenheiro. Formou-se em Cuba, fez pós-graduação na Ucrânia, fala três línguas e tem um Lada velhíssimo com que tenta pagar as contas. Deixou de trabalhar na profissão porque não conseguia viver com o salário de 400 pesos. Apenas com o tour que fizemos de manhã ganhou 20 CUCs, ou 500 pesos. Está namorando uma válvula de descarga que custa 568 pesos, 168 a mais do que o antigo salário.
Infelizmente ele não tem muitos tours na agenda, porque os turistas preferem os belos carros americanos antigos ao seu pobre carrossauro soviético. Eu também preferiria, mas não tive coração de recusar os seus serviços por causa de uma questão automobilística. Sua mulher é médica, tem duas especialidades e ganha um dinheirão em termos cubanos: 1,7 mil pesos, o equivalente a US$ 68 mensais. Com isso pode comprar quase nove copos de vidro numa loja de importados.
Como sobrevivem os cubanos? Nem eles sabem responder. Todos têm um carnê de racionamento que lhes dá direito a comprar uma cesta básica em pesos: arroz, feijão, óleo, açúcar, um frango, fósforos. Ovos, verduras e legumes também podem ser encontrados a preços razoáveis. Para o resto, CUCs.
Pedi para ir a um supermercado. Fomos a um supostamente bem abastecido, numa zona melhorzinha. Nas poucas prateleiras em que havia alguma coisa, os preços eram inatingíveis para o grosso da população. Os fregueses compram um sabonete, um pacote de queijo, umas latinhas. Bolsas devem ser deixadas do lado de fora; na saída, o conteúdo das sacolas de compra é conferido com o tíquete do caixa.
As poucas lojas do shopping seguem padrão parecido. Pouquíssima mercadoria, em geral de marcas desconhecidas. As exceções são Adidas e Samsung. Um engenheiro cubano precisa trabalhar cinco meses para comprar um tênis, um ano para comprar um micro-ondas.
Na volta, paramos para tomar sorvete na Coppelia. Fila gigantesca — exceto para estrangeiros, que dispõem de um salão reservado. Só havia chocolate, baunilha e mesclado de chocolate e baunilha. Perguntei se o embargo era responsável pela pouca variedade de sabores.
— O embargo é responsável por outros males, mas não por esse — respondeu o meu novo amigo. — Há poucos sabores porque as pessoas estão desmotivadas. Afinal, qual é o estímulo para fazer bem feito se você ganha 400 pesos por mês?
Os deputados Eduardo Cunha (PMDB) e Arlindo Chinaglia (PT) divulgaram as respectivas plataformas de campanha com as quais pretendem convencer seus pares, daqui a dez dias, a votarem neles para presidente da Câmara.
O posto não é uma irrelevância do ponto de vista da República nem se presta ao abrigo de um capricho pessoal desse ou daquele político. Guarda estreita relação com os interesses da população em geral.
O presidente da Câmara dos Deputados é o segundo na linha de sucessão, depois do vice-presidente em caso de vacância da presidência da República; controla a pauta de votações da Casa. Em última análise depende dele a aceitação de pedidos de impeachment presidenciais e de instalações de comissões parlamentares de inquéritos.
Trata-se de pessoa de muito poder, embora a maioria da população não se dê conta disso. De onde as disputas pelos comandos das Casas do Congresso ocorram distantes do crivo popular. Os candidatos falam como se os compromissos dissessem respeito unicamente ao público interno.
Assim estão postas as plataformas de Cunha e Chinaglia. Ambos falam como quem se dirige a um público restrito aos 513 parlamentares da Casa, sem conexão com os milhões de eleitores que os levaram até lá nas últimas eleições.
Prometem equiparar salários do Legislativo ao teto do Executivo e do Judiciário, a fim de evitar o desgaste de votações separadas para reajustes; acenam com a construção de um novo prédio de RS$ 400 milhões para abrigar novos gabinetes, aumento de verbas extras e toda uma gama de melhorias internas.
Isso atende as expectativas do público interno, bastante para eleger um ou outro. Eleitorado insensível aos ecos de possíveis efeitos da Operação Lava Jato sobre os concorrentes às presidências da Câmara e do Senado.
Ocorre, porém, que por menos que o "público externo" se dê conta agora, a disputa do próximo 1.º de fevereiro não diz respeito apenas às internas do Congresso. Está em jogo a conduta do Legislativo.
Os dois candidatos principais iniciaram suas campanhas falando em "independência" da Câmara e agora jogam ambos na bacia das almas das promessas impossíveis de gastos dependentes de um Executivo em ritmo de contenção. Não será por aí a definição de votos.
De néscios os parlamentares não têm nada e saberão distinguir a distância entre o prometido e a realidade das medidas anunciadas pelo ministério da Fazenda. O Legislativo não produz verbas. Estas vêm do Executivo e, neste cenário, tão cedo não virão.
Logo, o discurso dos dois candidatos à presidência da Câmara não apenas contraria o anseio geral à contenção, como esbarra no projeto nacional (que os dois dizem representar) de economia de gastos. Além de transitar na contra mão de tudo o que pensa a opinião pública.
Conjunto da obra. Os envolvidos no escândalo da Petrobrás começam a trocar acusações em público. A empresa aponta Paulo Roberto Costa como responsável pelo superfaturamento nas obras da refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco. O ex-presidente Sergio Gabrielli responsabiliza o conselho de administração presidido por Dilma Rousseff, obrigando o Tribunal de Contas, mais dia menos dia, a esclarecer a situação.
Circunstância que ficou ainda mais nebulosa depois de a presidente ter dito, no início de 2014, que havia assinado o parecer favorável à compra da refinaria de Pasadena com base em relatório jurídica e tecnicamente falho da diretoria da área internacional da Petrobrás.
Em empresa como a Petrobrás não é crível que um diretor apenas tenha poder para direcionar negócios do porte de Abreu Lima. Se tiver, é sinal de que não há controles internos eficientes na empresa.
A partir de sexta-feira o filme "Selma" poderá ser visto no Brasil. Conta a história de um grande momento da história americana: a marcha de negros e brancos liderados por Martin Luther King a partir da cidade de Selma, no coração racista do Sul dos Estados Unidos. No dia 7 de março ela completará 50 anos. De lá para cá, um negro elegeu-se presidente, e a data de nascimento de King tornou-se feriado nacional. Os sapatos que Juanita Williams calçava durante a marcha podem ser vistos no Museu da História Americana, com seus saltos corroídos. É uma história emocionante.
Centenas de negros na cabeceira de uma ponte querendo começar uma marcha até a capital do Alabama pedindo o fim da discriminação racial eram um desafio inaceitável para o poder local. O pau comeu, a televisão mostrou as cenas de violência e, três semanas depois, a passeata chegou ao seu destino. O resto da história está no filme.
"Selma" foi maltratado pela Academia do Oscar, e está debaixo de chumbo pela maneira como retratou o presidente Lyndon Johnson. Para quem participou de marchas contra a Guerra do Vietnã, bem feito. Aquele texano enorme de maus modos, que assumiu depois do assassinato de John Kennedy, não merece sossego. Falso. Johnson destruiu-se pela paranoia que o jogou no Vietnã, uma guerra iniciada por Kennedy, mas foi um grande presidente, sobretudo na questão dos direitos civis.
O filme mostra Johnson querendo evitar a marcha de Selma. Afinal, numa peça de heróis negros, nada melhor que um presidente branco fazendo o papel de vilão. Na vida real deu-se o contrário. Já na noite de 27 de novembro de 1963, quatro dias depois do assassinato de Kennedy, Johnson reuniu seus assessores mais próximos para preparar seu primeiro discurso ao Congresso e levantou o tema dos direitos civis dos negros. Quando lhe disseram que isso significaria um desgaste político, ele respondeu: "Bem, e para que diabos serve a Presidência?" Mestre da costura política, Johnson não quis conter Luther King, aliou-se a ele para prevalecer no Congresso. Sem King e sem Selma, é possível que a aprovação da lei dos direitos civis demorasse algum tempo, mas, sem Johnson na Casa Branca, ela não teria sido aprovada em 1964.
"Selma" não precisava demonizar Johnson. Tudo bem que é um filme, mas a influencia desse meio produz mistificações. Até hoje tem gente que guarda a imagem dos bolcheviques subindo heroicamente as escadarias do Palácio de Inverno de São Petersburgo em 1917. Genial lorota do diretor Sergei Eisenstein no seu filme "Outubro", de 1927. Ele acaba enganando a memória, pois não há registro do episódio de 1917. O palácio estava desguarnecido e uns poucos bolcheviques entraram por janelas e portas laterais. Nas horas seguintes, quando acharam a adega do czar (uma das melhores do mundo), começou o maior porre da história da cidade. A única barricada da ocasião foi montada dias depois, pelos bolcheviques, para proteger as garrafas que restavam. É possível que tenham morrido mais figurantes durante as filmagens de Eisenstein do que na tomada do palácio. A cena da escadaria é uma alegoria, mas a descaracterização de Johnson em "Selma" é um veneno simplificador para a alma de quem vê o filme.
No livro "A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais", Mikhail Bakhtin observa que, a partir do Renascimento e do Iluminismo, a gargalhada espontânea e rude das formas festivas populares — próximas da carne, dos processos fisiológicos e da terra — começa e ser transformada e reprimida. O riso contido diz adeus ao seu estilo escandaloso e "grotesco", ligado à imagem de um corpo imperfeito, aberto, mutável e sujeito à decomposição. Surge um Equador cósmico entre o que fica acima (mãos, cabeça e juízo) e o que está vergonhosamente abaixo da cintura: o traseiro, os órgãos genitais e excretores, e os seus orifícios e funções. O grotesco tem nessa divisão sua origem, pois o interior do corpo e as suas passagens remetem ao obscuro das grutas. A mesa se divorcia da cama...
Na estética do Renascimento, que modelou a arte iluminista e "moderna", o corpo perde os orifícios, abandona seus produtos mais humildes: suas protuberâncias e sua capacidade de confundir-se concretamente (como no parto e no amor carnal) com outro corpo. Ele se individualiza. Para Bakhtin, as grosserias e obscenidades seriam "sobrevivências petrificadas e puramente negativas dessa concepção aberta do corpo". A podridão, os órgãos sexuais e a nudez desabrida caracterizavam as festividades populares, as quais baniam o pecado e o tabu, assim como a separação entre o humano e outros mundos.
A partir do século 18, surge um universo fundado na racionalidade que separa a gargalhada (que vem da garganta) do riso superficial educado. O gargalhar é lapidado e "toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo".
Agora temos o risinho mascarado superior, inaugurado por Voltaire e citado pelos estudiosos entendidos em França que comentaram o recente atentado de Paris. Essa seria a tradição do "Charlie Hebdo" quando, de fato, o terrorismo tem a volúpia dos mártires e — é óbvio — de alguns artistas imbuídos de profetismo, reproduzindo um grotesco rabelaisiano cuja onipotência encara a morte como uma diversão, e não como algo a ser suportado.
O riso irônico dos filósofos franceses separa a luta politica das opções religiosas. Naquela, matava-se com método (usando a guilhotina — uma maquina de matar moderna — igualitária e mecânica); no caso da religião, contudo, tudo se justifica em nome de Deus e do Profeta. A liberdade de dizer o que se quer é deste mundo; matar quem blasfema contra o nosso sagrado é uma guerra e uma vingança porque fala deste mundo e do outro.
A modernidade domesticou o riso que, supomos, pode ser dirigido contra ou a favor de alguma coisa ou alguém. "Certamente, continua Bakhtin, o riso subsiste mas ele se atenua e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo". Eu humildemente diria que, se o riso for além da ironia, ele readquire sua antiga volúpia utópica (e carnavalesca) que regenera e pode levar à morte. Morte física ou morte pela transformadora aceitação do gargalhar.
A essa altura, Bakhtin adverte:
"Haverá no mundo meio mais poderoso para opor-se às adversidades da vida e do destino? O inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta máscara satírica e a própria desgraça recua diante de mim, se me atrevo a ridicularizá-la! E, que diabo, esta Terra, com seu satélite sentimental, a Lua, não merece mais do que burla."
O poder atura tudo, menos a gargalhada reveladora de que até os valores tidos como eternos passam, num mundo que todo dia se acaba um pouco. Em outras palavras, podemos morrer de rir!
O Papa Francisco disse: se xingam minha mãe, eu tenho o direito de dar um soco no ofensor. Alguém me lembrou que, no cristianismo, a grande novidade era voltar a outra face. O direito de ofender é um bem inestimável no liberalismo; o não se sentir ofendido e receber o tapa (ou os tiros) aceitando e amando o ofensor fica para o lado religioso de quem é ofendido. O terrorismo recusa o que chamamos de "ética". Na guerra, que como disse Rousseau no "Contrato Social", só pode ser realizada entre estados nacionais, e não entre indivíduos, há uma declaração. No amor idem. Mas no estupro, na carta anônima, no assalto covarde e no assassinato em nome de Deus, o que perturba é a frieza inesperada que suspende as rotinas e asa mediações que nos tornam civilizados. Como negociar com o terror, cuja força vem exatamente da recusa ao dialogo?
A liberdade não é somente um principio abstrato. Suas manifestações criminosas e lesivas não são fáceis de classificar. Numa guerra, um "comando" elimina um chefe de Estado e todos ganham medalhas de honra. Não se trata de um assassinato, mas de defender a pátria. Num contexto de martírio religioso, no qual a motivação é ganhar a santidade e o paraíso num mundo globalizado, terrivelmente entrelaçado por uma dialética de simultaneidades e de intoleráveis diferenciações, a motivação é ainda mais potente. A menos que se equilibre fé e esperança — esse remédio antiterrorista.
Se fosse possível estabelecer uma escala de requintes sádicos para a execução da morte como pena oficial, o ritual criado pelo governo da Indonésia disputaria um lugar de destaque. De tal maneira é dolorosa a expectativa a que a vítima é submetida, que Rogério Paez, que foi colega de cela de Marco Archer por cinco anos, disse que o sofrimento do amigo era tanto que talvez tenha sido um alívio a notícia, enfim, do desfecho, pois chegara a pedir para morrer ao diretor do presídio, sem sucesso. "Marco, adoraria te matar amanhã", foi a resposta, "mas o homem lá de cima (o presidente) ainda não assinou. Espera mais um pouquinho". Esse diálogo surrealista obedece a uma legalidade cínica e perversa que inclui oferecer ao condenado que passou 11 anos preso a "regalia" de escolher se prefere ser morto em pé ou ajoelhado, de venda nos olhos ou de capuz, como se fosse um gesto magnânimo do bondoso algoz.
Se a Indonésia faz isso agora, quando diz ter orgulho de ser a terceira democracia do mundo, imagina quando era ditadura. Não é preciso imaginar, basta recordar. Há exatas cinco décadas, em novembro de 1965, o general Suharto deu um golpe de Estado e ordenou a eliminação de cerca de um milhão de pessoas acusadas de serem comunistas. O chamado "Massacre de Jacarta" foi considerado pela própria CIA, que ajudou a planejá-lo, como um dos piores do século XX — e isso num século que teve nazismo e stalinismo em sua trajetória.
Suharto achava que, matando os comunistas, acabava com o comunismo; Joko Widodo acredita que, exterminando traficantes, põe fim ao tráfico. Ele é implacável com os traficantes dos outros, mas compreensivo com os seus criminosos. Enquanto negava a clemência pedida pela presidente Dilma, solicitava o mesmo ao governo da Arábia Saudita para uma criminosa indonésia condenada à morte por homicídio e roubo.
Na Indonésia, quando a natureza não mata através de terremotos ou tsunamis, como ocorreu há alguns anos com mais de 200 mil pessoas, mata por fuzilamento no atacado, como fez Suharto, ou no varejo, como tem feito Widodo.
O governo de Dilma tenta agora salvar Rodrigo Gularte, o outro brasileiro condenado à morte, internando-o num hospital psiquiátrico. Médicos de lá teriam diagnosticado nele sérios transtornos mentais. O assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia procura manter-se animado: "A esperança é sempre a última que morre". Vamos torcer para que Rodrigo Gularte não morra antes dela.