Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, abril 01, 2015

O dia 12 e a memória das calçadas Elio Gaspari

O GLOBO
A rua marcou um novo encontro com a doutora Dilma para o domingo, 12 de abril. O 15 de março mostrou ao comissariado o tamanho da insatisfação popular e ele não entendeu nada. O grito geral condenava a roubalheira e recebeu um pastel de vento. Seguiram-se o "Chega de PT" e o "Fora Dilma". Quem sai de casa num domingo para gritar na rua merece respeito, seja qual for o seu grito. Isso não elimina o fato de que uma pessoa tenha gritado por uma coisa e, tempos depois, perceba que foi feita de boba. O único instrumento para se acabar com o PT é o voto em candidatos da oposição. "Chega de PT" ou "Fora Dilma" são palavras de ordem que deságuam numa proposta de impedimento da doutora. Ele seria possível sem o apoio do PMDB de Renan Calheiros, Eduardo Cunha e Michel Temer? Nem pensar. Se esse apoio viesse, como ficariam o petrocomissário Sérgio Machado e o inolvidável Fernando Baiano?
A memória das calçadas é cruel. Quem pintou a cara de verde e amarelo em 1992 tem doces lembranças das manifestações que defenestraram Fernando Collor. Um dos líderes desse movimento era o presidente da União Nacional dos Estudantes, Lindberg Farias. Militava no PCdoB, migrou para o PT, elegeu-se prefeito de Nova Iguaçu e senador. Hoje está de cara lavada na lista do procurador-geral Rodrigo Janot, pois o "amigo Paulinho" ajudava-o a captar recursos junto a empreiteiras da Petrobras. Mandar Collor para casa podia ser uma boa ideia, mas na agenda de Lindberg, do PCdoB e do PT havia outros interesses.
E quem vestiu uma camisa amarela e saiu por aí na campanha das Diretas de 1984? A ideia era excelente, mas a aprovação da emenda constitucional que restabelecia a eleição para presidente da República era uma impossibilidade aritmética. A agenda de Tancredo Neves era outra. Boa, porém outra. Graças às pessoas que saíram de camisa amarela, Tancredo construiu a conciliação que liquidou o consulado militar.
E quem foi à Passeata dos Cem Mil, em 1968? Um pedaço da avenida gritava "o povo unido jamais será vencido" e outro dizia que "o povo armado jamais será vencido". As agendas eram duas. Algumas centenas de pessoas que se julgavam a vanguarda da sociedade armaram-se e o povo dividido foi vencido.
Recuando-se um pouco mais, há 50 anos a esquerda foi para o Comício da Central, realizado diante do Ministério da Guerra, onde os blindados pareciam simbolizar o apoio militar ao presidente João Goulart. O gênio de Carlos Lacerda chamou a manifestação de "Comício das Lavadeiras", pois nele só havia "tanques e trouxas". Dias depois os tanques começaram a prender os trouxas. Em resposta ao Comício das Lavadeiras, realizou-se em São Paulo a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", com um forte componente religioso. Deposto Goulart, o ministro da Guerra, general Costa e Silva, disse que "a doutrina social da revolução coincide com a doutrina social da Igreja". Lorota. Começava ali a hostilidade da ditadura contra religiosos e seis anos depois o secretário-geral da CNBB, Dom Aloisio Lorscheider, foi detido por uma tropa do Exército. Nessa época, a esquerda divertia-se com um versinho: "Marcharam com Deus pela democracia? Agora chia... Agora chia."
Ir pra rua é sempre uma boa ideia, mas não custa se perguntar: Pra quê? Com quem?
Elio Gaspari é jornalista

ROBERTO DAMATTA Entre portas e pilotos

O ESTADO DE S PAULO
Ser obrigado a levar em conta o mundo diário para comentá-lo é um trabalho curioso. Muitas vezes, ocorrem coincidências. Os assuntos de uma crônica se rebatem nos da vida que, surpreendentemente, repete a seu modo o tema do comentário. Teriam os cronistas parentesco com os profetas?
Na semana passada, eu contei uma experiência pessoal de quase-morte num avião e, hoje, estamos às voltas com o malfadado voo da Germanwings, no qual o copiloto perturbado suicida-se e torna-se célebre por ter levado na sua morte com hora marcada 149 pessoas. Foi um suicídio egoísta clássico, como diria um pioneiro e mestre no assunto (Émile Durkheim), mas que teve um lado perverso, como ocorre com os assassinos que se imortalizam pela cruel disposição de se matarem matando dezenas de inocentes que nada tinham a ver com seus demônios, mas que a ele ficam ligados para sempre. No caso do jovem Andreas Lubitz, há uma ligação problemática, já que ele era profissional de uma máquina voadora, a qual raramente falha sem um empurrão do inesperado que existe em todos os seres humanos. Ademais, há a porta cuja fechadura era exclusiva de quem estava na cabine. A recusa a abrir portas, impedindo o comandante de entrar na cabine e assumir o seu papel, harmoniza-se com a infeliz decisão de espatifar o avião e, com ele, o mundo e todas as suas relações que lhe dão sentido, densidade e motivos para continuar vivendo, apesar dos absurdos da existência.
As caixas-pretas dos aviões são o nosso inconsciente tecnológico. Tal como mostrou Freud para a vida psíquica, elas registram tudo. Ouvindo as caixas-pretas, descobrimos o que a consciência não registra, seja porque não quer, seja porque não pode porque, se assim fizesse, não seríamos capazes de focar em coisa alguma e a vida seria impossível, como ocorre nos casos dos transtornos obsessivos e no autismo. Essas peças que, certamente, deleitariam o velho Freud, abrem um portal. Fechado na cabine, o copiloto impediu o retorno do comandante e, propositadamente, inibiu a relação com o líder, que, talvez, o impedisse de cometer o absurdo de um suicídio ligado à patologia da celebrização — essa morte individual que leva com ela os que estão em suas mãos.
A porta inexpugnável com chave ou senha tem um rico simbolismo. Dizem que no Céu há uma porta controlada por São Pedro. A senha, a chave e possibilidade de entrar ou sair, permite acumular, esconder ou dissipar tesouros. Os tesouros da troca e do amor que ajudam a viver e morrer.
Mas eis que as portas secretas marcam também o petrolão brasileiro, tornando-o, precisamente por isso, o maior escândalo da História do Brasil. Refiro-me ao controle remoto eletrônico do Sr. Renato Duque. Um aparelho que permitia abrir ou fechar, num clique mágico, um compartimento secreto situado dentro de um closet, situado dentro de um quarto, situado dentro de uma invejável cobertura de um bairro fino do Rio de Janeiro, os seus tesouros modernos. Tesouros no melhor estilo do Conde de Monte Cristo, obtidos, como manda o figurino das fábulas, em segredo e — quem sabe — com ajuda de algum oculto abade Farias?
Essas portas especiais que nos levam a salas secretas dentro de quartos ocultos, os quais estão escondidos em outros quartos, salas e palácios, lembram as bonecas russas e as caixas chinesas. É um não mais caber de fatos dentro de fatos, de pessoas dentro de pessoas, de cargos não honrados, englobados e bancados por outros cargos — todos vergonhosamente dissipados seja por ideologia, seja por incompetência, seja por um grau de onipotência pouco visto no caso do nosso aeroplano que tem voado em automático e, pelo visto, sem nenhum piloto, talvez porque o comandante tenha, ele próprio, se trancafiado na cabine.
Em suma, se é que isso tem suma: cai um avião na Europa e, na América do Sul, desmancham-se governos cujo símbolo são portas intransponíveis — as utopias. Cada qual com uma fechadura mais complicada que a outra. Suas chaves e senhas recusam o trabalho da aceitação dos limites que levam à responsabilidade de pilotar o que é sagrado, justamente porque é de todos.
A combinação de portas intransponíveis, fechaduras complicadas e chaves complexas (essas patologias) resulta — no caso dos aviões — em tragédia e sofrimento. Em países, o saldo é a ruína e a vergonha, porque o piloto não apenas sumiu, mas não parece ter a mínima noção da função daqueles "reloginhos" que são parte da cabine da nave que deveriam comandar. Mesmo porque, ela tem rumos que seus passageiros desconhecem.
PS: Desejo sucesso a Renato Janine Ribeiro, o novo ministro da Educação.
Roberto DaMatta é antropólogo

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