Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 26, 2013

Xadrez com os pombos - FERNANDO GABEIRA



O Estado de S.Paulo - 26/04


Um dos bons momentos da minha vida de repórter foi entrevistar Arthur Bispo do Rosário, na Colônia Juliano Moreira. Bispo ficou sete anos encerrado num cubículo e reconstruiu o mundo usando o tecido do uniforme e tudo o que lhe caía na mão. Ele é só um dos grandes artistas que o manicômio revelou. No final de nosso encontro, depois de ver as bandeiras que desenhou, todos os pequenos objetos que ordenou com muito bom gosto, ele me convidou para uma partida de xadrez. O tabuleiro e as peças haviam sido feitos por ele, e tinha regras que eu não conhecia, de forma que só movemos as peças e conversamos, sem vencido ou vencedor. Esse era o jogo.

Lembrei-me dessa partida de xadrez no Aeroporto de Viracopos. Um homem pôs o laptop na bolsa, dirigiu-se a mim e disse: "Há uma frase interessante aqui, na internet". Encorajei-o com o olhar. "Discutir com esse governo é o mesmo que jogar xadrez com um pombo. Ele sapateia no tabuleiro, desarranja todas as peças e sai com o peito estufado, proclamando vitória." A frase fez-me pensar e os fatos foram se desenrolando dentro dela, como se ganhassem um novo trilho e nova luz.

Dilma Rousseff debatendo a inflação, por exemplo. Os índices ultrapassaram as metas e, levemente, o nível de tolerância fixado pelo próprio governo. Muitos, naturalmente, se inquietaram com a inflação. Numa de suas entrevistas, Dilma declarou que a ênfase no aumento de preços é algo de quem torce contra o Brasil, transformando o tema num jogo em que se defrontam torcedores pró e contra o Brasil. E com isso fez o País e ela se tornarem uma coisa só, numa amálgama verde-amarela que não nos deixa nenhuma chance de vitória. Saiu como um pombo proclamando vitória.

As regras do xadrez foram para o espaço de novo com Graça Foster, presidente da Petrobrás. "Acho lindo o engarrafamento", disse ela sobre o aumento do número de carros. Como executiva, queria mostrar que seu negócio é produzir e vender petróleo e seu foco, o crescimento da empresa e a prosperidade dos acionistas. Nenhuma preocupação com a mobilidade urbana, nosso drama nas metrópoles, nem com o aumento de emissões de CO2, o drama planetário. O mundo empurra os executivos das grandes empresas para ideias bem mais avançadas do que o exclusivo foco no lucro. Decerto ela conhece o jogo. Apenas quis dar uma sapateada nas pedras do tabuleiro. Pensar como um vendedor de biscoito ou de água mineral no engarrafamento.

Já na política, sapatear é pouco. O governo e seus aliados passam com um trator sobre a oposição e criam uma lei para tornar inviáveis novos partidos. Isso depois de ter cooperado ativamente para a formação de um novo partido que fortaleceria suas bases. São os pombos mais agressivos. Embaralham as peças, fazem cocô e saem com o peito estufado: foi pelo bem do País.

Em escala continental, o xadrez será mais surpreendente ainda. Nicolás Maduro venceu na Venezuela. Mas venceu mesmo? O socialismo do século 21 entra em declínio e estamos nas duas primeiras décadas. Com o país dividido, inflação de 25%, 80% dos alimentos importados. O socialismo do século 21 está se tornando vírus tropical da doença holandesa. Dependente do petróleo, a Venezuela não consegue diversificar satisfatoriamente sua indústria. Em Buenos Aires, grandes manifestações de rua mostram a resistência ao projeto de Cristina Kirchner de controlar a Justiça. Sem falar na insatisfação econômica, nos falsos índices oficiais de inflação.

A situação do Brasil é bem confortável, o próprio Financial Times, numa comparação negativa com o México, reconheceu pontos fortes na economia brasileira. Ainda assim, o medo começa a bater e o jogo, a ficar mais duro. A retórica eleitoral do governo não deixa dúvida de que vai destinar à oposição o papel de Joseph K de O Processo, de Kafka: tudo o que falar vai se voltar contra você.

Esse embaralhar do jogo nada vale nos momentos de verdade. Maduro abandonou o espírito de Hugo Chávez, que lhe aparece em forma de passarinho. E soltou o verbo: "Poderia ter-me matado" - referia-se ao manifestante que o interceptou na tribuna e lhe tomou o microfone na cerimônia da posse. Ao menos ficou claro que seu esquema de segurança não presta.

Os ventos mudam em Caracas e vão mudar na América do Sul. A oposição não pode ficar só apanhando e dizendo: "Olha o que fizeram conosco". É preciso jogar um xadrez real, discutir entre si e encontrar meios de somar forças. Ela não precisa repetir que ama o Brasil nem usar boné da Petrobrás. A inquietação com a alta inflacionária já é uma forma de querer bem o País. E quanto à Petrobrás, o petróleo é nosso, mas as bobagens, não.

Embora o cotidiano pareça cheio de absurdos, as perspectivas são boas no longo prazo. Li na Atlantic interessante artigo sobre a importância de dar um sentido à vida. A articulista, Emily Smith, afirma que isso é mais importante que a busca da felicidade. Baseia-se na vida e obra do psiquiatra Viktor Frankel e sua experiência num campo de concentração. O próprio Frankel suportou melhor o campo porque foi para lá por amor aos pais. Publicou um livro chamado O Homem em Busca do Sentido. Pelo que li, o sentido pode ser encontrado no amor à família ou mesmo numa profissão.

Mas existe esse nesga de sentido voltada para o país, para o futuro comum, que não deve ser desprezada. Esse sentido pode materializar-se num programa, num conjunto de atitudes, num desejo de mudança. Tudo isso também depende da existência de uma oposição.

No passado, a oposição cantava Bob Marley para o povo: get up, stand up, fight for your rights. No Brasil esse processo será invertido: a sociedade é que vai cantar Bob Marley para a oposição. Com visão de médio prazo, trabalho cotidiano, sem estar fixada apenas nas eleições, é possível, aos poucos, descortinar um caminho diferente do atual, diferente do que o antecedeu, uma resposta às novas circunstâncias do País. Só assim é suportável o xadrez com os pombos: encontrar um sentido no futuro do País.

Brincadeira tem hora - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 26/04


Em boa hora, sensata e, espera-se, irrevogável decisão, o presidente da Câmara, deputado Henrique Alves, evitou mais um vexame para o Poder Legislativo ao barrar ontem a tramitação de emenda aprovada no dia anterior pela Comissão de Constituição e Justiça.

Seria cômica se não almejasse a um objetivo trágico a proposta de cassar a supremacia da mais alta instância judicial do país e tomar-lhe o lugar na tarefa de dar a palavra final em questões constitucionais. Não bastasse, arvora-se o direito de alterar o quórum para decisões do STF em ações de constitucionalidade e súmulas vinculantes. Uma brincadeira fora de hora e lugar.

Seria um fato isolado se não revelasse uma intenção coletiva de retaliação, bem como seria algo irrelevante se não traduzisse o caráter de irrelevância que certos tipos conferem à Constituição ao propor que o Legislativo se aproprie de prerrogativa do Judiciário essencial para a preservação do equilíbrio e da independência entre os Poderes, pilar da República, cláusula pétrea da Carta.

Seria só mais uma tolice se não fosse iniciativa de um deputado do PT, aprovada em reunião presidida por um petista, na presença de menos de um terço de seus integrantes presentes e o voto de dois condenados pelo STF, cuja lisura é posta em dúvida por dirigentes do partido no poder quando a corte contraria suas expectativas.

Tratou-se, portanto, de pura e nefasta malandragem. A intenção que motivou o gesto foi a de transferir a guarda da Constituição a uma Casa voltada para seus interesses e submetida às vontades do Executivo detentor de maioria obtida sabemos todos de que forma.

A respeito dela, o Supremo Tribunal Federal contou em parte os detalhes sórdidos durante o julgamento do processo do mensalão.

Se da Corte Suprema é ceifada uma competência que traduz sua razão de ser em termos de garantias legais, tudo o mais pode vir a ser permitido. Um golpezinho aqui, um artifício ali, uma concessão ao sofisma acolá e daí à barbárie não haverá barreiras

O flagrante delito ora suspenso foi urdido nas entranhas de cabeças deformadas pela sanha e pela sede. Contribui para diminuir o Brasil em sua afirmação civilizatória e reforça a evidência de que determinados grupos – lamentavelmente detentores de força política – acreditam que aqui as instituições podem ser controladas e manipuladas ao molde venezuelano.

Modelo este rejeitado pela metade daquele país, conforme noticiou o resultado da recente eleição presidencial.

As reações imediatas de repúdio e espanto à violência institucional aprovada na Comissão de Constituição (?) e Justiça (?), vindas do Judiciário, do Executivo e do próprio Legislativo já indicavam que a manobra não tinha chance de prosperar. Foi aprovada à sorrelfa, na presença de 21 dos 68 deputados que compõem a CCJ.

O Congresso se origina da sociedade que, embora de maneira não tão influente quanto desejável, impõe limites. Impede o Parlamento de enveredar pelo terreno do controle dos meios de comunicação, tornou natimorto o "piloto" de projeto para aprovar a possibilidade de um terceiro mandato para o então presidente Lula e levou à breca a ideia de se usar uma CPI como instrumento de vingança.

Suas excelências exorbitam, mas não põem fogo às vestes. Quando a coisa é muito escandalosa, evitam remexer na cumbuca. E o conteúdo desta é particularmente escabroso.

Agora é aguardar para ver se algum parlamentar ou algum partido terá a desfaçatez de pedir ao presidente da Câmara que libere a tramitação de tal temeridade.

STF tem a palavra final - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 26/04
Não há como negar a existência de uma crise entre o Legislativo e o Judiciário neste momento, e o pano de fundo é o julgamento do mensalão, agora na sua fase decisiva. Há diferenças fundamentais, no entanto, entre decisões tomadas nas últimas horas que geraram esse ambiente de mal-estar institucional.

O equilíbrio entre os poderes da República será quebrado caso o escandaloso projeto de emenda constitucional aprovado pela CCJ da Câmara, dando ao Congresso a possibilidade de rever decisões do Supremo e até mesmo submeter algumas delas a plebiscito, prossiga até o final do processo legislativo. Uma retaliação clara de um grupo petista à atuação do Supremo no julgamento do mensalão.

Já a liminar concedida pelo Ministro Gilmar Mendes sustando a tramitação do Projeto de Lei que cria obstáculos a novos partidos segue rigorosamente a jurisprudência da Corte e representa a defesa constitucional dos "princípios democráticos, do pluripartidarismo e da liberdade de criação de legendas." A base de toda a discordância está na não aceitação por parte de grupos políticos da predominância do Supremo Tribunal Federal no que se refere à interpretação constitucional.

É com o objetivo de ressaltar esse papel do Supremo de dar a última palavra em termos de Constituição que o Ministro Gilmar Mendes lembra na liminar que, quando analisou a ação direta de inconstitucionalidade contra o PSD, que tinha o objetivo de impedir que os parlamentares que foram para a nova legenda levassem consigo o tempo de televisão e o dinheiro do Fundo Partidário, o Supremo decidiu "assegurar aos partidos novos, criados após a realização das últimas eleições gerais para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, considerada a representação dos deputados federais".

Diante dessa decisão, que, lembra Gilmar Mendes, foi acatada na última eleição municipal, o Projeto de Lei "parece afrontar diretamente a interpretação constitucional veiculada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Adin 4.430, relator Ministro Dias Toffoli, a qual resultou de gradual evolução da jurisprudência da Corte, conforme demonstrado".

O presidente do Senado, Renan Calheiros, levou a questão para o plano emocional quando afirmou que, "da mesma forma que não interferimos no Judiciário, não aceitamos que o Judiciário influa nas nossas decisões". Na própria liminar, o Ministro Gilmar Mendes já respondera a essa acusação reproduzindo um texto do decano da Corte, o ministro Celso de Mello, que diz que o Supremo pode interferir "sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites delineados pela Constituição ou exerçam as suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros do Congresso Nacional".

Para o Ministro Gilmar Mendes, diante da decisão anterior do STF, "a aprovação do Projeto de Lei em exame significará, assim, o tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos em uma mesma legislatura. Essa interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência democrática, afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos específicos".

Ministro Gilmar Mendes trouxe ao debate mais uma vez, na sua liminar, a impossibilidade de se alterar uma decisão do STF através de um projeto de lei, coisa que o próprio Supremo já considerou inconstitucional. A esse respeito, há a famosa discussão entre Rui Barbosa e Pinheiro Machado, que criticava uma decisão do STF. O episódio foi lembrado por Celso de Mello durante o julgamento do mensalão, dizendo que Rui definira "com precisão" o poder da Suprema Corte em matéria constitucional:

"Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. O Supremo Tribunal Federal, não sendo infalível, pode errar. Mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, a alguém deve ficar o direito de decidir por último, de dizer alguma coisa que deva ser considerada como erro ou como verdade."

segunda-feira, abril 22, 2013

Pisando no tomate... Josef Barat

O ESTADO DE SÃO PAULO - Economia e Negócios

Sábado, 19 de Abril de 2013.

 


Com o velho tormento da inflação a espreita, voltam à cena os suspeitos de sempre. Já se amaldiçoou o chuchu pela elevação dos preços, mas naquele tempo de forte "controle social da mídia", era arriscado contestar esta tese. Hoje é o tomate o culpado, mas pode-se falar mais livremente sobre o fato – comum na agricultura – dos preços de frutos e legumes oscilarem pela sazonalidade ou mera escassez e terem efeito limitado sobre os índices gerais de preço. Podem ser apontadas, assim, outras razões mais fortes de suspeição: frouxo controle dos gastos públicos, rápida expansão do crédito, exacerbação do consumo, pouco investimento e um sistema produtivo pouco competitivo, com baixa produtividade e custos elevados de produção.

 

Outro fator importante, que afeta produtividade e custos, é a precariedade das infraestruturas em geral. No passado, muitos economistas se referiam aos gargalos nas infraestruturas como fatores estruturais da inflação, em contraposição aos fatores conjunturais de pressão sobre os preços.  Pois bem, eis que continuamos às voltas com este problema crônico, agravado pelos baixos níveis de investimento público. Busca-se, assim, a participação privada, por meio de concessões ou parcerias, para investir na modernização e ampliação da oferta de infraestruturas vitais para o crescimento, como as de logística, transporte, energia, comunicações e saneamento.

 

Olhando para um passado distante, quando a maior parte dos serviços públicos era prestada por concessionárias privadas, um grande obstáculo à continuidade das concessões foi a inflação crônica. O aviltamento das tarifas inviabilizava os investimentos necessários à expansão dos serviços. No modelo de concessão vigente, a remuneração se dava exclusivamente pela tarifa do serviço e os riscos eram da concessionária. Num quadro de desinteresse pela continuidade de grande parte das concessões, a Emenda Constitucional nº 1/69 assegurou a justa remuneração do capital pelas tarifas, impondo o controle dos custos, investimentos e lucros das concessionárias restritos, porém, à remuneração do capital. Tratava-se de conceito de caráter estático e aplicado aos investimentos existentes, não considerando a tarifa como fonte de recursos para a expansão dos serviços e deixando a concessionária de correr riscos.

 

A esta altura, no entanto, a prestação dos serviços públicos já se tornava uma atividade predominantemente estatal, com a criação de uma miríade de empresas estatais, nos três níveis de governo, o que impôs um longo interregno na tradição das concessões. Uma sucessão de eventos como a crise fiscal, colapso do sistema de garantias, dificuldade de créditos de longo prazo e ameaças de hiperinflação, tornaram crucial a questão de como financiar os investimentos nas infraestruturas. A perda de funcionalidade do Estado e o fim do financiamento inflacionário consolidaram, a partir do Plano Real, as bases sólidas de uma reforma institucional (responsabilidade fiscal, superávit fiscal e metas de inflação), acompanhada de programa de privatizações e concessões de longo prazo.

 

A Constituição de 1988 deixou de contemplar a justa remuneração do capital e a Lei 8.987/95 optou por fixar a tarifa pelo preço. Assim, o serviço público é concedido por conta e risco da concessionária. O poder concedente deixa de controlar custos, para ter o foco em resultados. A tarifa, portanto é fixada pelo preço do serviço definido na licitação e o licitante, após elaborar seu "Project Finance", oferece a sua proposta, sendo que não há limitação no lucro, mas também não há garantia. Os reajustes são assegurados contratualmente por índices pré-estabelecidos.

 

Em tempos de ameaça de inflação, no entanto, o ambiente de confiança pode ficar conturbado e afastar potenciais investidores privados, em razão de incertezas e riscos que não são inerentes à própria concessão. Quem garantirá que os reajustes das tarifas permitirão o cumprimento dos compromissos de investimento? Apontar frutos ou legumes como vilões dará mais confiança aos investidores?

 

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Josef Barat – Economista, consultor de entidades públicas e privadas, é Coordenador do Núcleo de Estudos Urbanos da Associação Comercial de São Paulo.

 

 


domingo, abril 21, 2013

Tutores de Maduro - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 21/04


A pequena diferença de votos, os mortos nos protestos, as reações autoritárias deixarão cicatrizes no governo de Nicolás Maduro, na Venezuela. A recontagem dos votos é um alívio, mas não deve mudar o resultado. A trinca no chavismo foi vista na declaração do presidente da Assembleia, Diosdado Cabello, de que é preciso fazer autocrítica diante da vitória por margem mínima.

O maior risco que o governo de Maduro corre, caso não consolide sua liderança política na Venezuela, vem dos militares, e não da oposição. Os militares governam mais de 20 estados. Numa forma de se garantir, Chávez colocou companheiros de farda como candidatos aos governos estaduais. Estão nas mãos de civis os poucos estados governados pela oposição.

Outra fatia do poder está nas mãos dos cubanos, que têm predominância sobre os setores de segurança e inteligência e controlam toda a área de saúde.

- A situação na Venezuela tem todas essas complexidades. Chávez entregou às Forças Armadas, especialmente ao Exército, grandes fatias do poder. Por outro lado, os militares venezuelanos não veem com bons olhos o controle de oficiais cubanos na área de segurança e inteligência. Além disso, quase 50 mil médicos dominam a área da saúde. Maduro também terá que consolidar o próprio chavismo, que tem várias facções - disse o embaixador Rubens Ricupero.

Maduro nunca será Chávez, por mais que tente encarnar o fantasma do líder, mas a oposição também não é mais aquela. Os métodos administrativos de Hugo Chávez eram discutíveis, mas ele alimentou demandas de participação dos mais pobres na vida do país, da qual eles não vão mais abrir mão. Por isso, a oposição liderada por Henrique Capriles não pode ser o rosto jovem da velha oligarquia bipartidária - Copei e AD - que governou a Venezuela antes de Chávez.

Também não pode ser a mesma oposição que tentou o golpe em 2002. Neste ponto, o curioso é que o governo acusa a oposição de golpista - e houve de fato o triste episódio de 2002 - mas a tentativa de golpe militar que Hugo Chávez liderou, em 1992, é tratado como um ato heroico e uma data cívica nacional. Não se fala que ele foi anistiado depois.

A novidade da eleição permanece intrigando os analistas. Maduro despencou 10 pontos em poucas semanas, desde as primeiras pesquisas de intenção de votos. O chavismo perdeu apoio. A aceitação da recontagem pelo Conselho Nacional Eleitoral dará mais legitimidade ao eleito. Por um tempo, o CNE não disfarçou sua parcialidade. A composição do órgão que comanda as eleições foi alterada nos últimos anos para ser favorável ao chavismo.

As reações autoritárias de maduro de impedir manifestações, censurar as televisões e ameaçar não repassar recursos da federação para Miranda, o estado governador por Henrique Capriles, só aprofundam a divisão da sociedade venezuelana.

Hugo Chávez governou pela divisão da sociedade. Ele extraia poder e seguidores demonizando uma parte dela. Esse é seu pior legado. O conflito do país não é fácil de sanar, principalmente por um líder sem carisma como Nicolás Maduro.

A crise econômica com inflação, desabastecimento, déficit público, dívida alta e baixo crescimento pode tornar mais difícil ainda a governabilidade do país. O excesso de militarização da política e da administração é outro complicador. A presença excessiva dos cubanos, outro. Não há bom tempo à frente.

O melhor seria se Maduro tentasse trabalhar pela conciliação da sociedade venezuelana, o que significa fazer o oposto da radicalização que está propondo neste primeiro momento.

Se a oposição quiser se preparar para governar a Venezuela - seja no meio do mandato, no caso de referendo revocatório -, ou se ganhar a próxima eleição daqui a seis anos, tem que começar a trabalhar para vencer os focos de resistência. O referendo é previsto na Constituição para o meio do mandato.

Mas, nos próximos meses e anos, o grande fiador de qualquer solução serão as Forças Armadas.

- Na hipótese de o governo Maduro não controlar as reações contrárias, ou não reverter a crise econômica, as Forças Armadas é que entrarão em ação. Ao contrário de outros países, em que os militares governaram e saíram desmoralizados, na Venezuela, o último governo militar acabou em 1957 - lembrou Ricupero.

Sede ao pote - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 21/04


Não bastasse o PT usar o governo para fazer política, a presidente Dilma Rousseff atrelou o governo à sorte na eleição, conforme apontam os fatos e é de conhecimento geral.

A questão em aberto é a seguinte: aonde isso vai dar? José Sarney e Fernando Henrique Cardoso podem relatar experiências ruins sobre quando, em 1986 e 1998 respectivamente, decidiram engatar a condução da economia a seus projetos eleitorais.

Sarney jogou fora a popularidade obtida durante o Plano Cruzado, chegando à eleição de 1989 sem condições sequer de tentar influir na escolha de candidato para a sucessão.

Fernando Henrique contratou uma crise cambial em 1999, começou a perder o patrimônio político conquistado no Plano Real e, não obstante tenha se mantido no caminho da estabilidade não podendo ser comparado a quem levou o país aos píncaros da inflação, não fez o sucessor. Inclusive porque nem ele nem o candidato (José Serra) em 2002 pareciam muito interessados um pelo outro.

Pois agora a avidez eleitoral chegou ao grau da obsessão. Com isso, a superioridade do campo governista vem sendo usada de maneira temerosa. O Planalto e o PT podem fazer o diabo para alcançar o objetivo de consolidar a hegemonia e dizimar a concorrência. Mas, nesse trajeto, andam cultivando desacertos e desafetos que também podem lhes infernizar a vida no caminho da reeleição.

O PMDB percebeu o tamanho do apetite e tratou de arrancar o compromisso da Vice-Presidência em 2014. O governo fica, assim, amarrado ao partido, sem margem de manobra para negociar a vaga. O PSB teve plena noção da volúpia na eleição municipal do Recife, quando o PT descumpriu um acordo com Eduardo Campos em torno de uma candidatura petista, mas conveniente para os dois lados, e quis impor outro nome no intuito de avançar sobre a seara do governador.

Desse modo abriu para Campos uma janela de oportunidade de se apresentar ao país como alternativa de poder, quando o roteiro original previa que só fizesse esse movimento depois de ajudar Dilma Rousseff a obter o segundo mandato.

Outro dado a ser levado em conta: a força com que o governo se jogou na aprovação do projeto para vedar o acesso de novos partidos ao Fundo Partidário e ao horário de rádio e tevê antes de terem passado pelo crivo de uma eleição. Se não foi um gesto contra a legenda que a ex-senadora Marina Silva tenta criar para concorrer em 2014, pareceu.

E o que vale para efeito de ação e reação é a interpretação dos prejudicados. Durante a sessão na Câmara (o projeto ainda precisa ser aprovado no Senado), o deputado Alfredo Sirkis ocupou inúmeras vezes o microfone para alertar o PT sobre as consequências do ato visto como de forte hostilidade.

Lembrou que, em 2010, a neutralidade de Marina no segundo turno pesou em favor da candidata do PT e avisou que em 2014 pode haver engajamento desse grupo representativo da "política nova" ao adversário de Dilma. E se disputar com ela a etapa final Marina Silva teria força política para desequilibrar um jogo dessa magnitude?

Talvez sim, talvez não, mas o governo pagou para ver, assim como está pagando para conferir se a aposta de Eduardo Campos é para valer. Se fosse menos ávido e obsessivo por vitórias a qualquer preço, o PT não precisaria criar arestas. Bastaria cumprir acordos e reconhecer o direito ao espaço alheio. Teria pela frente caminho mais suave.

Variável Alckmin
O senador Aécio Neves atua com um olho no peixe (a candidatura presidencial) e outro no gato (Geraldo Alckmin). Há quem considere que se lançou a campo com antecedência para testar a posição do governador de São Paulo.

Quer ver se Alckmin lhe dará apoio consistente ou se o fará apenas no discurso. Aécio tem antenas treinadas e experiência própria para captar movimentos ambíguos.

Só pensam naquilo - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 21/04

A ânsia do governo de tentar cortar pela raiz a ameaça que vê na candidatura da ex-senadora Marina Silva em 2014, impedindo que seu novo partido tenha direito a tempo de propaganda eleitoral na televisão, revela uma preocupação que não corresponde à larga vantagem que a presidente Dilma Rousseff tem atualmente nas pesquisas eleitorais, e, sobretudo, denota o receio de ter que enfrentar um segundo turno na disputa pela reeleição.
O que pode explicar essa incongruência é o temor de que a situação econômica se deteriore até lá, pois, a permanecerem as condições atuais, nada indica que Dilma tenha maiores dificuldades para se eleger ainda no primeiro turno.

Situação semelhante ocorreu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em sua reeleição em 1998. O governo chegou à eleição com a economia debilitada pela necessidade de desvalorizar o real frente ao dólar, e temia-se que, se houvesse segundo turno, o PT pudesse vencer. No primeiro mês do segundo governo do PSDB houve a desvalorização, e a partir daí foram sendo criadas as condições para a chegada do PT ao governo.

A presidente Dilma chega a ter uma popularidade mais homogênea que a de Lula nos melhores momentos, pois conseguiu colocar um pé no eleitorado de classe média que ainda a tem como a "faxineira" ética que não compactua com a corrupção.

Cabe à oposição conseguir explicar ao eleitorado que a "faxineira" abandonou a vassoura há muito tempo, trazendo de volta ao governo todos aqueles que havia enxotado em defesa do bem público.

O problema da oposição é que todos os candidatos estão procurando o apoio desses mesmos personagens da vida política brasileira, que pilotam partidos com robustos tempos de televisão e escassos compromissos com a ética.

Além da questão ética do PT, que aparentemente Dilma conseguiu superar com sua atuação isolada da cúpula partidária envolvida no mensalão, o governo tem a seu favor até o momento ações concretas que mexem no bolso do cidadão: redução das tarifas de energia, corte do IPI para automóveis e aparelhos domésticos, desoneração da cesta básica, tudo anunciado pela televisão num abuso eleitoral não impedido por nenhuma ação do TSE, mesmo porque ainda não estamos, em tese, em época eleitoral.

Apesar de todas essas vantagens, o governo não quer dar chance ao azar, e a manobra governista para impedir a criação de novos partidos, que até recentemente era negada, acabou chancelada pelo secretário-geral da Presidência, ministro Gilberto Carvalho, que se declarou favorável à fidelidade partidária, como se esse dispositivo não houvesse sido questionado diversas vezes pelo próprio PT por ser um "entulho autoritário".

A ação desabrida do governo está provocando, porém, uma aproximação dos partidos de oposição, que pode levar a uma ação conjunta mais forte do que seria provável anteriormente.

A ex-senadora Marina Silva, considerada a grande atingida pela ação do governo, voltou a ter a força eleitoral presumida com base em sua eleição de 2010, o que lhe dá uma expectativa de 20 milhões de votos que já não constava das avaliações mais recentes.

O PSDB, a quem ela recusou o apoio no segundo turno, hoje é o partido que mais está empenhado em ajudá-la na luta para barrar a investida da maioria governista no Senado, para onde vai o projeto após a aprovação da Câmara. O senador Aécio Neves atua nos bastidores, seu melhor ambiente político, para garantir que a lei só valha para depois de 2014.

E até o governador Eduardo Campos, cujos correligionários do PSB diziam meses atrás que não apoiariam Marina, caso ela fosse para o segundo turno, mostra-se empenhado em vê-la na disputa, já tendo elogiado a sua atuação política. Aos três interessa que todos estejam na disputa, para aumentar a chance de haver um segundo turno, no qual cada um espera o apoio dos demais, considerandose o único capaz de vencer a presidente Dilma.

Autonomia ao BC - agora vai? - SUELY CALDAS O

Estado de S.Paulo - 21/04


"No meu governo não tem ninguém autorizado a falar de inflação e juros sem ser o Banco Central. O ministro da Fazenda fala sobre dívida e superávit", respondeu a presidente Dilma Rousseff à pergunta de jornalistas sobre opiniões contraditórias de integrantes de sua equipe econômica. Ocorreu num café da manhã no Palácio do Planalto, em 28 de dezembro do ano passado, portanto, há apenas quatro meses. Pois se estrepou quem confiou na declaração da presidente.

Há 15 dias, em palestra a empresários, em São Paulo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, voltou a falar de juros e admitiu a possibilidade de elevar a Selic. E na terça-feira, véspera da reunião do Copom para decidir a taxa, a própria presidente Dilma tratou de antecipar a decisão e ainda deu a dica do porcentual de aumento: "Será possível fazer em patamar bem menor". No mercado, as apostas em aumento de 0,5% na taxa recuaram para 0,25%. E quem ainda tinha dúvida sobre se o governo interfere nas decisões do Copom passou a ter certeza.

Para cumprir com êxito a missão de "assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda e um sistema financeiro sólido e eficiente", como está escrito em destaque em seu site, o Banco Central (BC) precisa trabalhar com autonomia, não sofrer influências políticas que o enfraquecem nos embates cotidianos com especuladores e dificultam o êxito de sua missão. Declarações inconvenientes contrariam objetivos do BC, do governo e da própria presidente. Quer ver um exemplo?

Durante a reunião dos Brics na África do Sul, no final de março, Dilma declarou discordar de políticas de combate à inflação que sacrifiquem o crescimento. Efeito imediato, a taxa de juros no mercado futuro despencou. Irritada, ela acusou agentes do mercado de manipularem suas palavras. Se tivesse ficado calada, nada disso teria acontecido, o mercado não teria motivo nem respaldo para criar volatilidade, instabilidade.

Nos países onde a autonomia ao BC é garantida em lei foi consolidado um entendimento geral - no governo, na sociedade, no mercado - de que decisões sobre juros e controle da inflação cabem exclusivamente ao BC. E ninguém questiona. Não se vê o presidente Barack Obama nem o primeiro-ministro inglês, David Cameron, darem palpite sobre juros, como fazem Dilma e seus ministros no Brasil. Aqui, vivemos um sistema híbrido em que a autonomia do BC foi respeitada por FHC e Lula, menos por Dilma, porém, por não estar regulamentada em lei, depende da vontade de quem ocupa o trono em Brasília.

Mas surgiu algo novo que pode mudar para melhor a estrutura do BC e o rumo dessa questão. Aparentemente sem o aval de Dilma, o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, senador Lindbergh Farias (PT-RJ), revelou à Agência Estado que vai discutir e colocar a autonomia em votação. O ponto de partida será um projeto do senador Francisco Dornelles (PP-RJ), pelo qual o Conselho Monetário Nacional (CMN) define a meta de inflação e a diretoria do BC tem autonomia para decidir e executar políticas que garantam seu cumprimento. Para isso, os oito diretores terão mandato fixo de seis anos, durante os quais o presidente do País só poderá demiti-los por motivo grave definido na lei e com aprovação do Senado.

A proteção contra demissões injustificadas é o que garante independência, autonomia e liberdade para os diretores do BC tomarem decisões que contrariem a opinião ou o desejo do presidente, de ministros e da classe política, sem temer represálias. Por vezes, o combate à inflação exige decisões impopulares, de que os políticos não gostam, mas que são absolutamente necessárias.

A intenção de Dornelles é discutir e aprovar para a autonomia vigorar em 2015. O próximo presidente, portanto, poderá manter parcialmente ou mudar todos os atuais diretores. Mas, como o mandato é de seis anos, seu sucessor vai conviver por dois anos com toda a diretoria que encontrar. Não convém a coincidência do término de mandatos. Melhor alterná-los entre os oito diretores, como constava de projeto do BC no final da gestão de FHC.

Pense Melhor - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 21/04


O cigarro é um vício traiçoeiro: custa barato, pode ser comprado em qualquer botequim, e não é crime


Qual a coisa mais preciosa do mundo? Não é dinheiro, nem amor, nem poder, e vou dar uma pista: não tem forma, nem cheiro, nem cor, não pode ser emprestada, nem dada, nem comprada. Não se vive sem, mas muitos fazem bobagens, um dia precisam dela para viver, mas aí pode ser um pouco -ou muito- tarde. Adivinhou?

As pessoas começam a fumar cedo: porque é moda, para mostrar que não seguem as modas, ou por qualquer coisa tão boba quanto. Aconteceu comigo.

Fumei todos os cigarros a que tive direito, e houve um momento em que escadas e ladeiras viraram um verdadeiro suplicio. O curioso -e trágico- é que nunca nenhum amigo (e foram muitos), ao me ver assim, me disse que o problema era o cigarro.

E como eu não sabia, quando parava para descansar, num café ou num banco de rua, relaxava fumando mais um cigarro, ai ai.

Há alguns anos fiquei mais ou menos e parei, claro. Quando voltei a me sentir bem, achei que fumar um cigarrinho ou dois não me faria nenhum mal, e tive pequenas recaídas. Como sou ansiosa, e se puserem uma caixa de chocolates perto de mim vou comer até o último, com os cigarros é a mesma coisa -sem comentários.

Comecei então a inventar pequenos truques: comprava dois cigarros no varejo, na banca de jornais; à noite, se fosse preciso, comprava mais dois. Dessa forma, eu achava que havia vencido o vicio, mas se algum amigo tirava um maço do bolso eu me atirava como se fosse a mais miserável viciada em crack.

Houve vezes em que, num restaurante -no tempo em que ainda se fumava em restaurantes- eu via alguém fumando, chegava perto e dizia, na maior simplicidade, "eu deixei de fumar, será que posso filar um cigarrinho?"

Não há maior solidariedade do que entre viciados, sejam eles em cocaína, heroína, ou nicotina. As pessoas a quem eu pedia um cigarro eram todas simpáticas, nunca nenhuma delas me disse não; sempre sorrindo, cúmplices, compreensivas.

A vida foi correndo solta, até que em uma viagem a um país onde cigarros não são vendidos no varejo, comprei um maço. Foi o primeiro de muitos; voltei péssima, as coisas tinham ido além do limite. Tive medo, parei no tranco, mais uma vez, e entendi que com vícios não dá para brincar.

Hoje, quando vejo uma pessoa fumando na rua tenho vontade de parar, sacudi-la pelos ombros e contar o que foi o cigarro na minha vida. Mas lembro que quando ouvia um discurso contra o fumo, acendia um, só para provocar; como se pode ser tão idiota?

O cigarro é um vício traiçoeiro: custa barato, pode ser comprado em qualquer botequim, e não é crime. Além disso, é -aparentemente- o companheiro na hora do estresse, da solidão, da festa, da tristeza, enfim, de todas as horas.

Eu me convenceria de que o cigarro não faz mal se visse, numa reunião de diretoria de um Marlboro da vida, quando são discutidas as novas técnicas de marketing para aumentar as vendas, todos fumando. Aliás, se fosse um só diretor, já me convenceria.

Dá para acreditar que alguém ponha um tubinho na boca, acenda e aspire, várias vezes por dia, sabendo que -é inevitável- um dia vai sofrer de falta de ar?

Como eu dizia, a coisa mais importante que existe na vida não tem cheiro, nem forma, nem cor, e não se compra com dinheiro nenhum: é o ar que se respira.

P.S.: Quanto mais cedo você parar, melhor, mas é sempre tempo. Para mim, foi.

Ah se não fosse a realidade! - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 21/04


Jovens insistirem num sonho revolucionário que há muito já se dissipou, é, no mínimo, surpreendente


Estava assistindo a um programa de televisão onde eram entrevistados alguns artistas de teatro e cinema. Um deles, que foi entrevistado isoladamente, e que não era brasileiro, demonstrou sua profunda decepção com o momento atual e especialmente com sua geração, desinteressada da revolução.

Por isso mesmo, sentia-se isolado, uma vez que, no seu entender, a sociedade atual é inaceitável e teria que ser varrida do mapa. Não deixou claro que outra sociedade seria posta no lugar desta, mas certamente nada teria a ver com o capitalismo.

Em seguida, falou uma jovem atriz que, embora não tão radical quanto o anterior, também lamentou o fato de que a sua geração, ao contrário da de seus pais, não sonha com a revolução, nem pensa nisso.

O entrevistado seguinte, um pouco mais velho, também lamentou a falta de espírito transformador que impera hoje, quando as pessoas só pensam em seus próprios interesses, indiferentes aos problemas que tornam nossa sociedade inaceitável.

Enquanto os ouvia, me veio à lembrança uma conversa que tive, faz já algum tempo, com uma jovem universitária. Tinha ido à UFRJ fazer uma palestra e ela ficara de me trazer de volta para casa.

Deu-me o exemplar de um jornal do PC do B e perguntou o que eu achava das ideias desse partido. Respondi que não estava muito atualizado com o que aquele partido pregava mais recentemente mas, no passado, opunha-me a seu radicalismo exagerado. Ela não gostou de ouvir isso e defendeu o radicalismo como a única maneira de levar à mudança da sociedade capitalista.

Sem pretender travar polêmica com a moça, mas puxado por ela a discutir o assunto, argumentei. Com cuidado, perguntei-lhe se não lhe parecia bastante difícil fazer uma revolução comunista, hoje, depois de tudo o que aconteceu no mundo.

Veja bem --disse eu-- o sistema socialista, liderado pela URSS, chegou a ser a segunda potência militar e econômica do mundo e ainda assim, fracassou. Acha você que, agora, quando já quase nada existe daquele poder, é que vocês aqui no Brasil vão fazer a revolução e recomeçar tudo de novo? --perguntei-lhe.

-- E por que não?, disse ela. A URSS seguiu o caminho errado. Lembrei-lhe que a China, que tinha divergência com os soviéticos, também mudou e tornou-se agora um país capitalista. A resposta dela foi que a China nunca tinha sido de fato comunista. -- E Cuba? Cuba é que está certa? Mas a coisa por lá não anda muito bem. -- Aquilo ali não é socialismo, respondeu ela.

Fiquei olhando-a, sem entender. Então tudo o que aconteceu, desde a revolução de 1917, estava errado, nada daquilo era o verdadeiro socialismo? Sim, era isto o que ela afirmava ali, dentro daquele carro.

O verdadeiro socialismo era o do PC do B, embora seja ele hoje um partido sem maior expressão na vida política brasileira e tudo o que conseguiu foi ocupar o Ministério dos Esportes nos governos do PT. E logo o Ministério dos Esportes! Se há uma coisa que sempre esteve fora da preocupação do PC do B foram exatamente os esportes, que certamente viam como pura alienação...

Ao comentar essa conversa com o professor que me convidara a fazer a tal palestra, ouvi dele que, dos 30 alunos que compunham aquela turma, quase todos, senão todos, se diziam comunistas.

Admito que fiquei realmente surpreso. Que pessoas de minha geração, por terem militado na esquerda, ainda se mantenham fiéis àquelas convicções ideológicas, dá para entender. Mas jovens, que nasceram após o fim do sistema socialista, insistirem num sonho revolucionário que há muito já se dissipou, é, no mínimo, surpreendente.

Mas tampouco dá para entender a tese daquela mocinha para a qual tudo o que houve e ainda resta com o nome de comunismo não deu certo porque não era o verdadeiro comunismo. Ou seja, se fosse, teria dado certo. Pensando assim, ela se sente à vontade para acreditar em algo que não precisa acontecer para existir. A conclusão é que esse pessoal não dá muita bola para a realidade.

Agora mesmo, apareceu na internet um documento, supostamente assinado pelo PC do B, PT e outras entidades, solidarizando-se com a Coreia do Norte, que estaria sendo ameaçada pelos belicistas norte-americanos. Pode?

João Ubaldo Ribeiro -Medo e controle

 O Estado de S.Paulo

Essa estupidez inqualificável perpetrada em Boston aviva o receio de um futuro de insegurança, desconfiança e medo para toda a Humanidade. Grande parte dela já enfrenta isso, mas todos podemos esperar um futuro bem diferente do que os que cresceram no século passado imaginavam. Acreditávamos possível uma vida privada, sem partilhar com ninguém nosso comportamento pessoal, práticas, idiossincrasias e mesmo esquisitices que não fossem da conta alheia. Encarávamos como um pesadelo distante e evitável o mundo descrito por George Orwell em 1984, com sua omnipresente teletela sempre ligada e a vida dos governados escrutinada em todos os detalhes.

Hoje a tecnologia prevista por Orwell parece saída das velhas séries de Flash Gordon e a aspiração a uma vida privada, ao menos parcialmente livre do controle do Estado e de grandes organizações, não passa agora - e no futuro muito mais - de uma utopia ou lembrança nostálgica. Estamos só começando, mas a tecnologia marcha aceleradamente e as mudanças chegam sem aviso, para só as percebermos quando se torna claro que vieram para ficar. Muitos de nós entontecemos com essa velocidade, gostaríamos que houvesse mais tempo para assimilar as novidades, cansamos de tanto aprender e desaprender sem cessar. Os recalcitrantes se escondem delas, fazem tudo para ignorá-las e mesmo hostilizá-las, mas sabemos que não adianta. Por exemplo, se um vírus hipotético afetasse repentinamente todos os computadores de um país qualquer, inclusive o Brasil, o caos seria absoluto. Não teríamos comunicações, água, energia elétrica, aviões voando, bancos e comércio funcionando, hospitais, nada mesmo. O vírus resultaria, nesse sentido, muito mais eficaz que um bombardeio pesado. Os programas de sabotagem eletrônica são importante arma de guerra, porque não há como escapar da malha informática.

O atentado de Boston aumentará o empenho não só do governo americano, mas de todos os outros, em reforçar e aprimorar mecanismos de segurança. Isso está longe, é claro, de restringir-se a revistas em aeroportos, episódicas varreduras em busca de explosivos, contratação de pessoal especializado e assim por diante. O mais importante é o acompanhamento da vida de cada um, porque, nestes tempos loucos, todos são suspeitos. Londres, por exemplo, está cada vez mais coberta de câmeras de segurança e a circulação de um indivíduo talvez já possa, ou em breve poderá, ser acompanhada o dia inteiro. Por onde quer que ele passe ou aonde vá, lá estará a câmera de olho.

Penso em filmes policiais de antigamente, com a cena da saída do suspeito em seu carro e o detetive pegando um táxi e dando a ordem de "siga aquele carro" ao motorista. A ordem agora é diferente, é "monitore esse celular". A depender do caso, o sujeito pode ter sua vida completamente espionada, desde os locais por que circula às conversas de que participa - e isso inclui os eles e elas cujos cônjuges desconfiem de prevaricação. Aliás, grampear telefone, celular ou não, é coisa do passado. Vocês já devem ter lido que cada voz humana é única, é como as impressões digitais, não há duas idênticas. Em decorrência, mesmo que um ouvido animal não distinga entre vozes muito parecidas, há aparelhos que distinguem e, se lhes fornecem essa assinatura vocal, ela sempre será identificada. A novidade é que o "grampeado" não tem como fugir. Quando ele começa a falar no telefone, seja celular, doméstico ou orelhão, em qualquer lugar onde esteja, uma central especializada compara a voz com as assinaturas em seu poder. Se reconhece a do freguês, grava a conversa. Fulano pode disfarçar a voz e dizer que é Sicrano à vontade, mas o banco de dados não se engana. E, se as chamadas forem cifradas, o governo certamente alegará razões de Estado para exigir dos autores a chave da cifra.

Os atuais momentos íntimos poderão não ser mais tão íntimos. Nada de gravador debaixo da cama, primitivo e arriscado. O amanto ou amanta (eu faço que esqueço, mas não esqueço as novas normas gramaticais da República) poderá até engolir um minúsculo gravador de circuito integrado, com microfone configurado para suprimir frequências sonoras inoportunas, como as de borborigmos e assemelhados, mas de resto capaz de gravar uma bela trilha sonora do embate amoroso, desde os jogos preliminares à hora de vestir a roupa. Também mentir ficará bem difícil, porque os novos detectores de mentiras não mais se fiam numa combinação complexa e enganosa de alterações cardíacas, respiratórias ou nervosas, mas em sensores que medem mudanças inconscientes na voz e na emissão da fala - dizem que estão ficando infalíveis.

A tendência comum, talvez normal, é o cidadão aceitar sua perda de privacidade, em troca da segurança individual ou da coletividade, até porque não costumam dar-lhe escolha e o medo é uma força muito grande, mais difícil de vencer que outras emoções. E é reacendido não somente por fatos da magnitude do que aconteceu em Boston e suas previsíveis consequências, como pelo que a gente encontra, por exemplo, na internet. Para citar apenas um caso, lembro os muitos sites que mencionam impressoras 3D, as quais tornam possível que se compre um objeto na rede e a entrega seja feita por um aplicativo que instrui a impressora do comprador a "imprimir", ou seja, reproduzir aquele objeto na casa do comprador, sem necessidade de entregador. As impressoras e os programas já estão em funcionamento, aprimorados diariamente. Não é fantástico? É, sim, pelo menos até vocês fuçarem outros sites e descobrirem empresas desenvolvendo programas, materiais e impressoras 3D para oferecer armas de combate. Qualquer um, do bandido ao psicopata, poderá comprar e "imprimir" quantas quiser, sem numeração ou registro. Dá medo disso, dá medo daquilo - e a gente fica sem saber o que pensar.

sexta-feira, abril 19, 2013

Reforma ou golpe? - JOSÉ SERRA


O ESTADÃO - 11/04

Ainda bem que a Câmara dos Deputados parece ter sepultado a proposta de reforma política petista, cujo relator era o deputado Henrique Fontana (PT-RS). O ruim - o modelo que temos - ainda é melhor do que o pior, representado pela proposta que o PT pretendia enfiar goela abaixo do País, já que não houve debate a respeito. Reforma política? Era mesmo isso o que se pretendia?

Há distinções claras entre revolução, reforma e golpe. A primeira convulsiona a sociedade, conquista a maioria dos que padecem sob a ordem vigente, lança no imaginário coletivo amanhãs redentores e faz novos vencedores. Nas revoluções virtuosas, os oprimidos de antes não se tornam os opressores do novo regime, mas os libertadores das potencialidades do futuro. Penso, por exemplo, na Revolução Americana.

Golpe, em qualquer lugar e em qualquer tempo, é uma reação dos que se veem ameaçados pela emergência de novos atores na cena política ou buscam perpetuar-se no poder eliminando os adversários. O golpe é sempre reacionário - seja o de 1964 no Brasil, o de 1973 no Chile ou os de 1966 e 1976 na Argentina. Ou o que matou César.

E a reforma? É uma tentativa de mudança pacífica, que procura não fazer nem vitoriosos nem derrotados. Não se trata de virar a mesa ou de banir da cena os adversários tornados inimigos.Uma reforma não privilegia grupos, mas busca o bem-estar coletivo - ainda que eu saiba que esse espírito anda em baixa nestes dias. Nos últimos anos o Brasil tem vivido sob a égide das "reformas", sempre necessárias, mas jamais levadas a efeito. Uma das que mais mobilizam as consciências é a "reforma política", que, na versão do PT, foi sepultada na noite de terça-feira. De fato, os petistas não queriam uma reforma, mas um golpe.

O PT queria aprovar, por exemplo, o financiamento público exclusivo de campanha, que tem seduzido muitos incautos. Segundo o relatório do deputado Fontana, as campanhas eleitorais seriam pagas na sua totalidade com o dinheiro dos contribuintes, por meio do Tesouro Nacional.O TSE estabeleceria o montante, mas o Congresso e o Executivo tomariam a decisão final na aprovação do orçamento.

A direção do PT, partido que levou o uso do caixa 2 ao paroxismo na vida pública brasileira, apresenta a solução do financiamento público para combater o... caixa 2! Pretende assim, diante da opinião pública e de sua militância menos informada, maquiar a própria história. Mas isso é só uma patranha. O golpe estava em outro lugar.

No projeto, a distribuição dos recursos para o financiamento público levaria em conta a representação na Câmara dos Deputados e, principalmente, o volume de votos obtidos na eleição anterior, fator que beneficiaria, é evidente, o PT. Até o PMDB, que tem uma grande bancada, mas não o maior número de votos dos eleitores, seria condenado a uma progressiva inanição, que só beneficiaria o partido que está no centro do poder de fato, o PT, que domina a máquina pública federal e controla as estatais e seus fundos de pensão.

Com essa proposta, aos cartórios já existentes, do Fundo Partidário e do tempo de TV, se somaria um terceiro, pantagruélico, gigantesco, faminto: o do fundo público de financiamento de campanhas eleitorais. Não custa lembrar que no sistema atual os partidos já recebem quase R$ 300 milhões por ano do Fundo Partidário. A essa montanha de dinheiro se soma a renúncia fiscal, pela qual o Tesouro Nacional remunera as emissoras de rádio e televisão pelo horário eleitoral, que de gratuito não tem nada - na eleição do ano passado custou R$ 600 milhões. Tudo isso é, insisto, dinheiro público, já distribuído segundo o tamanho das bancadas.

Em essência, o projeto do PT era continuísta e buscava fortalecer apenas a si mesmo, golpeando, assim, as possibilidades de alternância de poder. Imaginem se um projeto como esse fosse apresentado quando o partido tinha apenas oito deputados. Seus militantes sairiam às ruas gritando... "golpe!". No entanto, como eles tiveram em 2010 o maior volume de votos para deputado federal, seus dirigentes chamam de verdadeira revolução o que não era nem sequer uma reforma.

O leitor de boa vontade, enfarado com os desmandos e a roubalheira, poderia ver-se seduzido pela proposta: "E o caixa 2? Não é bom eliminá-lo?". Claro que sim. Mas o projeto não tinha esse condão, pois a legislação atual já o proíbe. Ora, se com as doações privadas permitidas já existem os "recursos não contabilizados", o que aconteceria se elas fossem proibidas? Haveria uma verdadeira inundação de dinheiro ilegal na campanha.

É também falaciosa a tese de que o financiamento exclusivamente público evitaria compromissos espúrios entre financiadores de campanha e políticos. Ora, hoje em dia, ao menos uma virtude há: os doadores são conhecidos. Caso se instituísse o caixa 2 como princípio de fato - esse seria o efeito deletério e fatal do que propõe o PT -, nem mesmo tal controle existiria. As eleições seriam ainda menos transparentes.

Os demais partidos teriam de suportar limites estreitos, de cujos efeitos, no entanto, o PT conseguiria desviar-se. Pesaria ainda mais, por exemplo, a importância do "caixa 3", representado pela mobilização de recursos de entidades-satélites do partido, como ONGs, sindicatos, centrais sindicais, que fazem campanha para a legenda e seus candidatos sem ter de prestar contas à Justiça Eleitoral.

Uma reforma política de verdade procuraria aperfeiçoar o mecanismo de representação, aproximando mais o eleito do eleitor. A sociedade seria chamada a debater, entre outros temas relevantes, o voto distrital - um poderoso fator de aperfeiçoamento da democracia e de drástica redução de custos das campanhas. Em vez disso, depois de perder três eleições e vencer outras três com o financiamento privado, o PT empenhou-se em criar um mecanismo que tornasse a sua derrota, se não impossível, muito difícil. A Câmara disse "não", em boa hora, ao projeto que não era reforma, mas golpe. 

quinta-feira, abril 18, 2013

Muito cacique - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 18/04

Na terça-feira, quando índios invadiram o plenário da Câmara, além da correria dos deputados e funcionários, o que de mais interessante aconteceu foi o comentário do deputado Miro Teixeira, do PDT do Rio: "É a primeira vez que tem mais índio que cacique nesse plenário", ironizou o deputado. E foi uma manobra dos "caciques" governistas que mais mobilizou a atenção dos políticos nesses últimos dias. Eles demonstraram mais uma vez que, quando é para tratar de assunto de interesse próprio, são ágeis e rápidos.

Só que desta vez houve eficiência dos dois lados, e a fusão do PPS com o PMN superou todos os obstáculos burocráticos e se fez em tempo recorde. Por isso, a mais recente manobra governista para limitar a atuação política de prováveis adversários da presidente Dilma na corrida presidencial em 2014 não deve ter grande repercussão no resultado final para o grid de largada, pois tanto a ex-senadora Marina Silva quanto o governador de Pernambuco Eduardo Campos têm alternativas partidárias além dos novos partidos que os apoiariam.

Campos tem o PSB, uma força partidária mediana, mas com poder de atrair alianças. Já Marina tem a alternativa de voltar a concorrer pelo Partido Verde enquanto organiza a sua REDE. Além do mais, tendo sido aprovada a fusão do PPS com o PMN antes mesmo que a votação na Câmara acontecesse, o novo partido estará apto a participar das eleições presidenciais com todos os direitos dos partidos existentes, e provavelmente apoiará Campos.

O que o tratoraço governista pode provocar é uma rede de apoios a Marina que acabará provavelmente no Supremo Tribunal Federal. O que mais se fala hoje no Congresso Nacional é sobre a necessidade de defender as minorias da fúria majoritária, e é disso que se trata agora. O novo partido Movimento Democrático, fruto da fusão do PPS com o PMN, poderá servir de apoio a Marina para uma Ação direta de inconstitucionalidade no Supremo, numa tentativa de mudar a decisão do Congresso de retirar as condições mínimas de uma nova legenda subsistir.

A base da Adin serão justamente os votos de vários ministros do Supremo ao julgar o pedido do PSD de ter tempo de propaganda eleitoral e acesso ao Fundo Partidário, depois de ter tido a legenda oficializada pelo TSE. Vários deles fizeram a mesma afirmação em seus votos: já que a nova legenda foi aceita, seria condená-la à morte por inanição não permitir que concorra em igualdade de condições com os demais partidos, proporcionalmente ao tamanho de sua bancada.

Esse argumento, o de que a maioria tenta sufocar o direito de uma minoria, será a base da arguição de inconstitucionalidade. Mas mesmo que a ação não seja recebida pelo Supremo, criou-se no meio político um movimento de solidariedade a Marina Silva, com o apoio do PSB de Campos e do PSDB de Aécio Neves, que pode semear uma unidade política na oposição que não se viu nas últimas eleições.

O PSB já teve Ciro Gomes e Garotinho como candidatos contra Lula, mas os dois voltaram à aliança com o PT no segundo turno. O máximo que fizeram candidatos saídos da base do governo, como Cristovam Buarque, do PDT, em 2006, e Marina Silva, do PV, em 2010, foi ficarem neutros no segundo turno, sem explicitar a dissidência.

Essa demonstração de arrogância da maioria está permitindo que cresça na oposição um sentimento comum de que é preciso união de forças para derrotar a base governista. Além disso, alguns partidos que formalmente fazem parte da aliança que apoia a presidente Dilma estão gostando muito do cerco que os prováveis adversários da reeleição estão fazendo a eles, como Eduardo Campos, que sugere que pode vir a convidar um nome do PDT para ser seu vice. Fala-se no senador Cristovam Buarque, pernambucano como Campos, mas com atuação política em Brasília. Ou Aécio Neves, que flerta tanto com o PP quanto com o PR da família Garotinho, em busca de um palanque forte no Rio de Janeiro.

Oficina de remendos - DORA KRAMER


O Estado de S.Paulo - 18/04

Essa discussão sobre a ofensiva governista no Congresso para dificultar a vida de novos partidos a rigor nem deveria existir. Só existe porque se criou um festival de casuísmos em que um erro passou a justificar o outro, a ponto de o Poder Judiciário aderir à lógica de que há leis que pegam e outras que não pegam.

O caso da vez é a ideia de vedar aos novos partidos o acesso aos recursos do Fundo Partidário e ao horário eleitoral no rádio e na televisão. A tese enuncia a necessidade de impedir a criação de mais legendas de aluguel e, assim, moralizar o processo.

Seus porta-vozes fazem papel de santos em ambiente de devassidão; apresentam-se para organizar uma bagunça da qual são sócios proprietários.

O objetivo imediato de um lado é dificultar apoios a prováveis oponentes da presidente Dilma Rousseff em 2014 e preservar uma fatia do mercado. De outro, entrar no rateio do Fundo Partidário (R$ 294 milhões em 2013) e do tempo de propaganda.

Um casuísmo? Escandaloso: no ano passado gente que está hoje contra o projeto era a favor, e vice-versa. Na hora de ajudar o então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, o PSB que hoje se sente prejudicado estava junto com outros aliados na sustentação dos pilares sobre os quais foi erguido o PSD.

O PMDB que agora apoia a barreira aos novatos, no ano passado estava junto com o DEM, o PSDB, o PPS e outros signatários da ação no Supremo questionando o direito do PSD ao Fundo Partidário e ao tempo e televisão na proporção do tamanho da bancada, àquela altura com cerca de 50 deputados. Nenhum eleito pela legenda criada em 2011.

Casuísmo explícito, mas não o único nessa série de remendos em série decorrentes, ao que tudo indica, de um pecado de origem: o desleixo em relação à lei vigente.

Duas delas dizem expressa e claramente que os partidos terão direito à distribuição dos recursos e ao tempo no horário eleitoral "proporcionalmente à representação na Câmara dos Deputados". E como se faz esse cálculo? Segundo as leis, "de acordo com os votos obtidos na eleição anterior".

Segundo a lei eleitoral, uma terça parte do horário em rádio e TV é distribuída entre todas as legendas com registro e dois terços repartidos pelo critério do tamanho das bancadas. A lei que rege os partidos reserva 5% do fundo para todos e manda que 95% sejam repartidos conforme a representação resultante da eleição antecedente.

Pois bem, o PSD tinha um ano de vida, não havia passado por nenhuma eleição e, portanto, não atendia ao critério. Ainda assim, obteve do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal o benefício que a lei negava.

E por que isso aconteceu? Resultou da interpretação de uma questão anterior, da fidelidade partidária, examinada em 2008 pelo TSE e o STF. Ficou determinado que os mandatos pertenciam aos partidos; perderiam os mandatos os eleitos que trocassem de legenda. Exceção aberta aos migrantes para novas legendas ou quando o político fosse vítima de perseguição em sua agremiação.

Para as siglas resultantes de fusão a norma é diferente: não perde o mandato quem sai, mas perde quem entra porque a justiça não entende como novo o partido produto de união com outro.

De qualquer forma, brecha aberta, a maioria entendeu nos tribunais que "a realidade" se sobrepunha à letra fria da regra e que não teria cabimento impedir que um partido já com bancada expressiva não recebesse recursos e tempo proporcionais à representação. Por menos que não tivesse passado por uma eleição, como legalmente exigido.

E assim, de exceção em exceção, nenhuma regra se consolida e, à falta de disposição para reforma digna do nome, a política se transforma numa oficina de remendos. Mal feitos.

Arrumar o futuro - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 18/04


É preciso colocar a economia em ordem, sem inflação, sem dívidas excessivas, abrir espaço para um futuro adequado


Tem jeito para tudo ou, vá lá, para quase tudo — é o que nos diz o FMI em seu último Panorama Econômico Mundial. Os alemães, por exemplo, dariam uma boa ajuda à Europa se gastassem mais, tanto as famílias quanto o governo. E deveriam gastar comprando coisas dos vizinhos em dificuldades, além de viajar para lá.

Já os franceses precisam trabalhar mais e economizar mais. Precisam também criar condições para isso, com uma boa reforma para aumentar a competitividade de seus produtos.

Italianos, portugueses e gregos não têm outro jeito senão prosseguir na austeridade para equilibrar dívidas públicas e privadas. Mas, cuidado. Excesso de austeridade pode matar.

Japoneses fizeram muito bem em iniciar políticas de estímulo ao consumo para sair da recessão. Uma "inflaçãozinha", uns 2% ao ano, seria boa ajuda para convencer as pessoas a gastar mais.

Mas o governo não pode se esquecer de que carrega uma dívida enorme que, em algum momento, terá de ser reduzida.

Isso também vale para os americanos. Tudo bem com a política de gastos agora, mas devem ao menos dizer quando voltam à austeridade para reequilibrar as finanças públicas.

Os emergentes fizeram um bom papel até aqui, mantendo um bom ritmo de crescimento, mas precisam voltar a cuidar dos fundamentos. Quais? Os clássicos: inflação baixa e estável, de menos de 3% ao ano, contas públicas equilibradas, dívida externa financiável.

E todos, literalmente, precisam fazer reformas estruturais. São de dois tipos. No primeiro grupo, estão as reformas destinadas a garantir financiamento de longo prazo para os gastos que mais pressionarão o bolso das famílias: aposentadorias e saúde. A causa é a mesma: com melhores condições, as pessoas estão vivendo mais.

Poderão dizer: mas isso é responsabilidade dos Estados. Tudo bem, mas continua saindo do bolso das famílias, que pagam os impostos direta ou indiretamente. Ou seja, a coisa é mais complicada: é preciso construir esquemas para financiar tanto gastos públicos quanto privados.

Isso exige a criação de estímulos e condições para que os jovens de hoje poupem para financiar seu futuro. Mas também exige que os, digamos, mais maduros, na ativa, trabalhem um pouco mais e contribuam um pouco mais.

Há aí uma clara dificuldade política e psicossocial: sacrifícios no presente para ganhos lá na frente e, em parte, ganhos da outra geração.

O segundo grupo de reformas tem como objetivo abrir caminhos para o desenvolvimento da educação, ciência, tecnologia e inovação. Considerem só um caso: comida.

A população mundial cresce mais no lado emergente, onde há também expansão econômica e, pois, ganho de renda. Portanto, são pessoas deixando a pobreza, ingressando nas classes médias, o que significa maior consumo de alimentos.

No outro lado da equação, há escassez de terra cultivável e ambientes já degradados. Conclusão: é preciso produzir mais alimentos, mais nutritivos, em espaços menores, sem destruir o que sobra de natureza e, de preferência, refazendo o que foi destruído.

Isso depende de ciência e tecnologia — ou seja, de boas escolas e institutos de pesquisa — mas também de instituições que permitam a passagem do conhecimento para a inovação prática nos campos e nas fábricas.

A Embrapa, por exemplo, está desenvolvendo uma vaca transgênica, de cujo leite se poderá extrair insulina. Em outras pesquisas, aqui e lá fora, nos setores público e privado, também estão sendo desenvolvidos bois e vacas que produzem carne mais saudável e mais nutritiva, em menos tempo de vida. Há uma vaca que produzirá leite sem lactose. E por aí vai — difícil e complexa realização. Entretanto, aqui no Brasil e em vários outros países, mais difícil e complexo será passar pelas diversas instâncias governamentais para obter a aprovação legal dessas vacas. Sem contar o inevitável debate "político" — seria a vaca transgênica um fruto proibido do agronegócio capitalista? — o que pode atrasar ainda mais esse processo.

Aqui também se está preparando o futuro. Esses alimentos ficarão prontos para as novas gerações, mas seu desenvolvimento tem de ser pago pelas atuais.

É verdade que sempre foi assim, uma geração preparando para a outra, mas nem sempre funciona. Não raro, os de hoje criam problemas para os de amanhã. E parece que o momento atual, no mundo, é decisivo. As gerações atuais usufruem de avanços extraordinários obtidos ao longo do século passado, graças aos quais vivemos mais e melhor, mas está chegando a hora de pagar a conta.

O que nos leva de volta ao começo: é preciso colocar a economia em ordem, sem inflação, sem dívidas excessivas, abrir espaço para um futuro adequado.

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