O Globo
Era um debate sobre jornalismo e literatura, com muita gente amiga na plateia que faz as duas coisas ou faz uma e pensa em também escrever livros. Foi ao fim de um dia chuvoso na última terça-feira, de trânsito travado em Brasília, e eu tinha passado a tarde no Ministério da Fazenda. As perguntas no teatro eram tão certeiras que era melhor ter resposta inteligente e sincera.
Há um conflito entre um e outro ofício? Ou um conluio? É isso que meu amigo Afonso Borges, que há 27 anos faz o evento literário Sempre um Papo, tem proposto para algumas duplas. Sérgio Abranches e eu, entre elas.
Numa dessas conversas, em São Paulo, dias atrás, demos de falar de Guimarães Rosa, que saiu pelo sertão de Minas anotando tudo, como se jornalista fosse, escreveu um livro inquietante e inesquecível "e espalhou pelo mundo", como me disse uma vez um sertanejo, morador das cercanias do Parque Grande Sertão Veredas. A conversa rosiana nasceu quando alguém da plateia admitiu que nunca concluiu a travessia das 50 primeiras páginas. Ficamos explicando que o jeito de ler o grande livro é diferente; ele é cheio de veredas. O jeito é não se preocupar em saber cada palavra, mas ouvir a música.
Só escrevi não ficção, e a ficção é apenas uma veredazinha na qual fiz três livros infantis que estão com a Rocco para publicar. Jornalismo é o que eu tenho feito há 40 anos. E o novo livro que escrevo para a Intrínseca é também não ficção. Mas, às vezes, fujo para um quarto secreto e escrevo, escondido, entrando em outras veredas. Uma senhora no teatro admitiu que tem "rabiscado" a vida inteira sem coragem de escrever livros: o que deveria fazer com esse desejo secreto e irrealizado?
Sérgio Abranches, lançando em Brasília o seu romance "O Pelo Negro do Medo", deu a ela a resposta que ouvimos da grande Ana Maria Machado. "Escreva para você e não para ser lida, depois de pronto o texto, pense o passo seguinte."
Mas a pergunta do começo desta coluna deixei sem resposta. Acho que jornalismo e livros não estão em conflito. São companheiros, desde o início. Muita gente vai para o jornalismo por amar os livros e depois, em algum momento, encontra um veio que os leva aos livros. E eles são bem diferentes. Livro é lapidação. Difícil de fazer que assombra e intimida. Exige tudo o que se aprendeu no jornalismo e mais alguma coisa que talvez nem se tenha. Quem vai de um ofício ao outro sabe que as ferramentas da lapidação são afiadas diariamente no jornalismo. É um labor que pode levar ao livro-reportagem ou até à ficção, como acaba de fazer o mestre Zuenir Ventura, aos 80 anos, com seu excelente "Sagrada Família".
Alguém me perguntou se, por acaso, eu escrevesse algo de ficção se a história seria ambientada em Minas. Disse sim, categórico. Mas o que é Minas? Fiquei intrigada depois, me perguntando isso. Passei mais tempo longe de Minas do que os tempos que vivi na terra. E em cada parada aprendi e me transformei - Espírito Santo, Brasília, São Paulo, Rio - mas o lugar no qual se nasce, e se fica nos primeiros anos, deixa marca que o tempo ressalta.
Dias atrás um amigo mineiro que mora na Europa me ligou de Paris e grande parte da conversa foi sobre o destino do Rio Doce. O rio que correu na cidade da sua infância ainda o preocupa tantos anos depois e com tanta distância interposta. Assim é o mistério dessas sensações primeiras que ficam.
Minas o que é? É tão interna que está condenada a ser nacional. Ela não tem saída para o mar, não tem um único pedaço de sua terra que não seja cercado de Brasil, e por isso sua história é sempre não paroquial e ligada ao sentimento de país. Veja-se a Inconfidência, chamada mineira, mas que é uma luta pela liberdade e independência do país. Minas é uma certa desconfiança de que há algo mais para saber atrás das montanhas. "Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa", disse o jagunço Riobaldo, do escritor mineiro de Cordisburgo Guimarães Rosa, dono de linguagem universal. Minas é um certo mistério. "Ninguém sabe Minas, só o mineiro sabe e não conta", avisou o itabirano Carlos Drummond de Andrade, que escolheu tão decididamente o Rio.
Não sei, na verdade, com que caminhos se vai do jornalismo à literatura, sei que não vou escolher. Se alcançar o segundo, não deixarei o primeiro por não saber respirar sem o jornalismo. Você pode me perguntar o que deu em mim de fugir tão completamente do assunto a que tenho que me dedicar nesse espaço. Respondo: nasci num 7 de abril, numa casa cheia de livros, em Minas. Esse foi o rio da minha infância. E hoje é dia do jornalista. Por motivo duplo me dei esse presente de inventar algo para escrever que não tenha ordem, apenas o prazer da prosa. Conto neste final da conversa que, hoje, a primeira coisa que farei será pisar o chão de Minas. Por nada. Só para ouvir o som da raiz primeira.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2013
(629)
-
▼
abril
(101)
- Xadrez com os pombos - FERNANDO GABEIRA
- Brincadeira tem hora - DORA KRAMER
- STF tem a palavra final - MERVAL PEREIRA
- Pisando no tomate... Josef Barat
- Tutores de Maduro - MIRIAM LEITÃO
- Sede ao pote - DORA KRAMER
- Só pensam naquilo - MERVAL PEREIRA
- Autonomia ao BC - agora vai? - SUELY CALDAS O
- Pense Melhor - DANUZA LEÃO
- Ah se não fosse a realidade! - FERREIRA GULLAR
- João Ubaldo Ribeiro -Medo e controle
- Reforma ou golpe? - JOSÉ SERRA
- Muito cacique - MERVAL PEREIRA
- Oficina de remendos - DORA KRAMER
- Arrumar o futuro - CARLOS ALBERTO SARDENBERG
- Novo ciclo de aperto - MIRIAM LEITÃO
- 3 versus 30 - ELIANE CANTANHÊDE
- A decisão do BC sobre os juros - ROBERTO MACEDO
- Banho-maria - DORA KRAMER
- Maioria a serviço - MERVAL PEREIRA
- As bases trincadas - MIRIAM LEITÃO
- Como descobri o rádio - ROBERTO DAMATTA
- Inflação, tomates e outros pepinos - ALEXANDRE SCH...
- Derrota moral - MERVAL PEREIRA
- Atenção, concentração - DORA KRAMER
- Prisão dos mensaleiros refunda a República - MARCO...
- Eu tive um sonho - RODRIGO CONSTANTINO
- Bolhas e pânicos - MIRIAM LEITÃO
- Inimigos cordiais - DORA KRAMER
- Momento decisivo - MERVAL PEREIRA
- Degringolou de vez - GAUDÊNCIO TORQUATO
- Duas damas - SUELY CALDAS
- E agora BC? - CELSO MING
- Olhar imediato - MIRIAM LEITÃO
- Thatcher e seu fiel consorte - DORRIT HARAZIM
- Grito do Ipiranga na China - VINICIUS TORRES FREIRE
- Thatcher e Erhard - HENRIQUE MEIRELLES
- Maus sinais para 2013 - EDITORIAL O ESTADÃO
- Segredos no STF - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Teste de credibilidade para governo e Banco Centra...
- Combate à inflação: a missão impossível - AFFONSO ...
- COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO
- O capitalismo de compadrio entrou em cena - ELIO G...
- Ciência e paciência - FERREIRA GULLAR
- O medo, o luxo, a PEC - DANUZA LEÃO
- Exclusiva com o comandante Borges - JOÃO UBALDO RI...
- Ausências e presenças - MERVAL PEREIRA
- O futuro do passado - MIRIAM LEITÃO
- A revolução da empregada - GUILHERME FIÚZA
- O efeito Abe-Kuroda - CELSO MING
- Francisco e a razão de Estado - ROBERTO ROMANO
- Mais um capítulo do drama venezuelano - EDITORIAL ...
- Excessos chineses - EDITORIAL FOLHA DE SP
- COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO
- Razões a favor do aborto - DOM ODILO P. SCHERER
- Reeleição a qualquer custo - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK
- A busca da alternativa - MERVAL PEREIRA
- Ponta do iceberg - DORA KRAMER
- Fim de ciclo - CELSO MING
- Fevereiro magro - MIRIAM LEITÃO
- Boca livre cultural - NELSON MOTTA
- Dilma e os 40 ministros - FERNANDO GABEIRA
- Na Broadway da Justiça - LUCAS MENDES
- A inflação da omissão - EDITORIAL O ESTADÃO
- Apego ao atraso - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR
- Os desnecessários novos tribunais regionais - EDIT...
- Além do teto - EDITORIAL FOLHA DE SP
- COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO
- A falta que nos faz uma boa direita - CARLOS ALBER...
- Data vênia... - DORA KRAMER
- Torre de Babel - MERVAL PEREIRA
- Limites dos recursos - MERVAL PEREIRA
- Sistema capenga - DORA KRAMER
- Razão e bom senso - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
- Ativismo compulsivo - SUELY CALDAS
- A moda: e isso pega? - DANUZA LEÃO
- Sobre o Rio - ARTUR XEXÉO
- A teia das probabilidades - FERREIRA GULLAR
- Pode ser agora - CELSO MING
- Minas e livros - MIRIAM LEITÃO
- Saúde! - JOÃO UBALDO RIBEIRO
- Seca denuncia incompetência desde a monarquia - ED...
- Mantega e os juros - MIRIAM LEITÃO
- Bondade para quem pode - CELSO MING
- O que faz Dilma diferente - LUIZ CARLOS MENDONÇA D...
- Vale o escrito - NELSON MOTTA
- Entre iguais - Merval Pereira
- Além da imaginação - Dora Kramer
- Desencontros - MERVAL PEREIRA
- Pela desigualdade - CARLOS ALBERTO SARDENBERG
- Chá de ostracismo - DORA KRAMER
- Tantinho e tantão - CELSO MING
- Manipulação inadmissível - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
- O FMI verde - MIRIAM LEITÃO
- Patroas e empregadas CORA RONAI
- Brecha para a impunidade - EDITORIAL ZERO HORATole...
- Remoção de obstáculos - DORA KRAMER
- Ano ainda não esquentou - MIRIAM LEITÃO
- Desarrumação - CELSO MING
- O limite da ineficiência - MERVAL PEREIRA
-
▼
abril
(101)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA