O DIA EM QUE O ESTADÃO NÃO ENTENDEU UMA PIADA. E ISSO É COISA SÉRIA A ironia não faz muito sucesso no Brasil. Dia desses, afirmei que, embora míope, enxergo muito bem com a mente. E ainda emendei um daqueles risos enlatados (by Diogo) de Internet — “hehehe” —, temeroso de que alguns não atentassem para o gracejo, meio bobinho e até autodepreciativo. Pois muitos não atentaram e mandaram ver: “Como você é arrogante!” Pode??? Pode!!! Imaginem se, aos 47 anos, eu teria a coragem de usar a sério o par antitético “enxergar com os olhos/ enxergar com a mente”. Não me subestimem, HEHEHE... Quando tinha revista, botei no índex a expressão “corações e mentes”, por exemplo. Podia-se conquistar qualquer coisa em Primeira Leitura, até um hipopótamo enlameando com crise de identidade, mas nunca se conquistavam naquelas páginas “corações e mentes”... Xiii, já me desviei. Falava sobre certa incapacidade, em nosso meio, de lidar com a ironia. Mesmo quando ela é desabrida, quase arreganhada. Costumo dizer que, renascido no Brasil, Swift (1667-1745) seria preso pela Polícia Federal de Protógenes e Paulo Lacerda, acusado de incentivar ou a pedofilia ou o canibalismo. Em 1729, escreveu um texto chamado “Uma Modesta Proposta” em que sugeria aos irlandeses que comessem seus adolescentes (entre 12 e 14 anos) para resolver o problema da fome. Chego ao ponto. No domingo, o Estadão publicou na página A-18 um texto verdadeiramente assustador, explosivo, assinado por Maureen Dowd, colunista do New York Times. Título: “Alucinações de um vice-presidente”. Na linha fina, como chamamos no jargão profissional aquele subtítulo logo antes do texto, lia-se: “Dick Cheney conta em comissão do Senado como a tortura salvou os EUA de ataques terroristas”. A íntegra está aqui. Era a tradução de uma coluna de Maureen publicada no NYT no dia 28 do mês passado, que já convocava, desde o título, o desconfiômetro do leitor: “Vice’s Secret Vices”: Os vícios secretos do vice. Sem contar que “Secret Vice” remete a algumas fabulações entre literárias e lingüísticas de J. R. R. Tolkien — sim, aquele de O Senhor dos Anéis. Estamos no terreno da imaginação e da ficção. O texto de Maureen, em suma, era uma ironia, uma brincadeira, que, a um só tempo, expunha as suas conhecidas contraposições a Dick Cheney, mas também levavam ao exagero lendário a sua brutalidade e estupidez. A editoria de Internacional do Estadão levou tudo a sério. Publicou como texto referencial mesmo, sem qualquer advertência. O leitor que acompanha Maureen no NYT não precisa de explicação. Não é a primeira vez que ela recorre a esse expediente — aliás, ela é craque nesse tipo de coisa. Mas os brasileiros desavisados ficaram sabendo que Cheney se expressa assim numa comissão do Senado quando se refere à tortura e a Barack Obama: Aqueles insetos nem sequer eram venenosos", rosnou Cheney. "Tapas na cara? Socos na barriga? Arremessar um homem nu contra a parede? Coisa de criança. Esses métodos funcionaram. Eles nos mantiveram em segurança durante sete anos. Muito mais seguros do que sob o olhar daquela delicada florzinha havaiana na Casa Branca. Vocês imaginam que senadores dos EUA iriam tolerar que um cidadão comum — porque agora é isto o que é Dick Cheney: um cidadão comum —chamasse o presidente do país de “delicada florzinha havaiana da Casa Branca”? Mais: é pensável que um ex-vice-presidente se refira ao atual presidente nesses termos? A ficha não caiu. Não caiu nem mesmo quando Maureen relata a suposta altercação de Cheney com o republicano John McCain. Ninguém menos: O senador John McCain, mostrando-se enojado, começou a gritar com Cheney, dizendo a ele que submeter uma pessoa a 183 simulações de afogamento num único mês era contra a lei: "Os japoneses que fizeram isto durante a 2ª Guerra foram julgados e enforcados." "Cale a boca", respondeu Cheney. "Todos estão cansados de ouvi-lo fazer apologia da tortura. Por que você não se junta àquele vira-casaca do (Arlen) Specter no time adversário, que é seu lugar?" O senador Russ Feingold entrou na briga, perguntando a Cheney com sarcasmo: "Pode nos dizer quais foram os complôs terroristas que a tortura evitou?" Faltassem dicas no longo texto de que se tratava de uma peça de ficção, o artigo de Maureen termina assim: Bayh levantou-se e sussurrou algo à presidente da comissão. "Sr. Cheney", disse Feinstein. "O depoimento do senhor é delirante, além de ter sido copiado de outras fontes." Cheney mostrou-se apoplético, além de apocalíptico. "Como ousa manchar a honra do nosso melhor agente de combate ao terrorismo: Jack Bauer?", gritou ele.” Sim, Jack Bauer, aquele da serie 24 Horas... É coisa séria Tudo parece piada, mas a coisa é séria. Por que um texto evidentemente irônico sobre a era Bush, em que Dick Cheney surge como uma óbvia caricatura, é levado a sério por um jornal, publicado como se fosse uma reportagem, sem qualquer alerta ao leitor? Ora, porque se estabeleceu um doxa — aqui e, verdade seja dita, em quase todo o mundo: "Em matéria de governo Bush, nós acreditamos em qualquer coisa, especialmente nas piores”. Não duvidem: no Brasil, a Al Qaeda goza mais freqüentemente do privilégio da dúvida do que o ex-presidente dos EUA. Um colunista vive ocupando o seu tempo na TV para sustentar que Bush e Osama Bin Laden são opostos combinados. Até em assuntos domésticos, tal mecanismo de pensamento está presente. Percebam: na imprensa brasileira, bandido falou, está falado. Se a fonte é a polícia, o verbo vem no futuro do pretérito, e a informação se faz acompanhar do adjetivo "suposto" ou do advérbio "supostamente". Não querem acreditar na polícia? Ok. Mas por que acreditar em bandido? Mas retomo. Ora, não é preciso ser muito bidu para constatar o óbvio: se tudo o que vem de Bush toca o extremo do mal, tudo o que vem de Obama toca o extremo do bem. Daí a cobertura aborrecida, chata e cafona que a imprensa brasileira faz do governo Obama, sem atentar minimamente para seus problemas, seus recuos, suas inconsistências. Até anteontem, o novo governo americano queria falar com o “Taleban moderado” (podem procurar no arquivo). Ontem, a coisa já havia se complicado porque o avanço desses extremistas no Paquistão pode fazer um milhão de refugiados. Tanto quanto se acredita que Cheney defenda no Senado que as pessoas sejam jogadas contra a parede e chame Obama de “florzinha do Havaí”, acredita-se que o governo democrata tem sempre a resposta certa. A bobagem foi feita no Estadão, é fato. Mas poderia ser publicada na maioria dos grandes veículos da imprensa brasileira, dada a rendição acrítica e bocó ao governo Obama — em alguns casos, ao lulismo também. Há muita gente no jornalismo que decidiu aposentar o pensamento e ver a realidade como um filme de mocinhos e bandidos. Ler isso no Estadão é um pouco doloroso. Já foi o jornal brasileiro com a melhor cobertura de assuntos internacionais. O obamismo turvou o seu juízo. É pena. |
Por Reinaldo Azevedo | |
Entrevista:O Estado inteligente
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