Augusto Nunes Veja On line
Mas só se aprende a votar votando, deveria ter acrescentado Pelé depois de trocar por uma vírgula o ponto final da frase lastimavelmente verdadeira: brasileiro não sabe votar. Por não adotar tal cautela, e por ter sido sincero antes que se encerrasse a era dos generais, o Rei foi transformado em alvo preferencial dos patrulheiros ideológicos. Os que sabem votar não se sentiram ofendidos: o maior craque da história acertara no ângulo. A turma que celebra a democracia cubana, sonha com o partido único e despreza a liberdade tratou de reduzi-lo a sócio-atleta do Clube Militar, o camisa 10 do time dos serviçais da ditadura, outro agente da elite paulista. Só um loiro de olhos azuis como Pelé ousaria dizer que brasileiro não sabe votar.
Não sabe mesmo, berra o coro imenso dos delinquentes perigosos e estelionatários gentis, ineptos de carteirinha e cretinos fundamentais, todos fantasiados de senador, deputado, governador, prefeito, vereador ou síndico de prédio. Seja qual for o partido a que pertencem, obedecem ao comando da bancada da bandidagem. Seja qual for o nível de escolaridade, são todos doutores em pilantragem. Seja qual for o sotaque que identifica a origem, todos falam com fluência a língua geral dos fora-da-lei.
Pelé decerto pensava no Brasil dos grotões embrutecidos pela miséria e pela ignorância, dos currais eleitorais subjugados desde o começo dos tempos por coronéis brutais, dos vilarejos esquecidos em algum lugar do passado. Menos de 40 anos depois de divulgada, a frase inspirada nesse mundo primitivo vale para o país inteiro. Aos rebanhos conduzidos desde sempre pelos pastores do atraso, juntaram-se os que pastam nos campos da civilização. Não chega a ser surpreendente que o eleitorado de João Alfredo envie ao Congresso um Severino Cavalcanti, nem que o transforme em prefeito depois de expelido da presidência da Câmara por gatunagem. O que surpreende é a contemplação do que anda acontecendo em cidades plantadas no Brasil moderno. Santa Cruz do Sul, por exemplo. Fundada por imigrantes alemães no coração do Rio Grande do Sul, a 150 quilômetros de Porto Alegre, tem boas escolas, aeroporto, até um autódromo. A cada ano, a maioria dos habitantes, mais de 120 mil, diverte-se na maior Oktoberfest do interior gaúcho. A cada dois anos, faz o que manda o deputado Sérgio Moraes.
Caso se candidatasse a orador da turma do manicômio, até os doidos de pedra achariam insensato eleger alguém que se lixa para a opinião pública. É muita insensatez. Até os napoleões de hospício negariam o voto a quem trata seus partidários como perfeitos idiotas. É muita maluquice. Até os que babam na gravata compreenderiam que o prontuário de Sérgio Moraes só o credencia a candidatar-se a xerife de cadeia. O histórico resumido em junho de 2008 pelo jornalista Alexandre Oltramari, em junho de 2008, na edição 2066 de Veja, é mais que suficiente para convencer qualquer cérebro com mais de três neurônios de que nem o Congresso brasileiro merece alguém assim.
A maioria do eleitorado de Santa Cruz do Sul discorda. Antes de despachá-lo para a Câmara, elegeu-o vereador, prefeito (duas vezes) e deputado estadual. A prefeita é sua mulher, Kelly, companheira de lutas desde os tempos em que lucravam com um o aluguel de garotas de programa numa casa de prostituição disfarçada de ”clube noturno”. Esses e outros empreendimentos fizeram do deputado um freguês da Justiça. A freguesia eleitoral acha isso tudo irrelevante.
“Entro num ginásio e sou aplaudido”, gabou-se Moraes numa entrevista do Estadão. “São 27 anos com mandato. E com um detalhe: escolhendo dentro de casa”. O monarca municipal simulou uma sessão deliberativa doméstica em que define o próprio destino, o da mulher prefeita, o do filho vereador e o da cidade: ”Escuta, o que tu vai ser agora? Ah, quero ser prefeito. Ah, então tá. Então eu vou ser deputado federal. Quem sabe tu não sai a deputado estadual? Tu sai a vereador”. A fórmula lhe parece irretocável: ”A gente decide dentro de casa e só informa a população. E em todas a gente ganha. Lá, eu ganho o que eu quero”.
“Lá” quer dizer Santa Cruz do Sul. Para redimir-se dos pecados recorrentes, basta que a cidade transforme a próxima eleição no instrumento da vingança merecidíssima. Se mantiver no cargo o presidente do clube dos cafajestes, se ratificar o voto de obediência ao clã, ficará claro que a manada majoritária merece o sinuelo debochado. Quem não merece uma cidade assim são os habitantes ajuizados e o Rio Grande do Sul moderno. Quem não merece um Congresso infestado de sérgios moraes é o Brasil que presta.