O Globo |
15/4/2008 |
Há poucos dias, o IBGE divulgou um capítulo especial sobre programas sociais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006, a mais recente. Como sempre, um belo trabalho, mas que ficou nas análises mais gerais do programa. Seja como for, o IBGE disponibilizou os microdados da pesquisa, o que permite a qualquer um esmiuçar as informações que considerar mais importantes. É o que apresento aqui, tentando mostrar o foco de dois programas sociais. O quadro não é animador. De todas as famílias que recebiam o Bolsa Família, 44,1% recebiam o benefício sem preencher os requisitos legais: ou tinham renda per capita superior a R$120 ou tinham renda per capita entre R$61 e R$120 reais, mas sem filhos menores de 15 anos. Não se trata, portanto, de um erro de foco pequeno, de 5% ou 10%. É quase a metade de todo o público beneficiado, 44,1%, repito, um total de 3.100.294 famílias. Já o número daqueles que preenchiam os requisitos do Bolsa Família, sem, no entanto, receber o benefício, era de 3.399.241 famílias. Ou seja, ao que tudo indica, o programa inclui um caminhão de gente que a lei não prevê e deixa de fora outro caminhão de gente que, pela lei, deveria estar recebendo o benefício. O governo alega que toma os devidos cuidados para evitar essa situação: cruza o cadastro de beneficiários com outros cadastros que registram renda e emprego e faz convênio com os municípios e estados para que verifiquem se houve melhoria na renda das famílias que justifique uma exclusão do programa. Auditorias, por amostragem, feita por órgãos de controle (TCU, CGU etc.), ajudariam também a fiscalizar o programa. O ministério informa que, em conseqüência desses procedimentos, desde 2006 (data da Pnad) 1,55 milhão de famílias saíram do programa, sendo substituídas por outras em igual número, e que isso corrigiu eventuais distorções. Não estou convencido disso. Mesmo imaginando que o processo de exclusão e inclusão tenha ocorrido à perfeição, o que não é provável, mais de 1,5 milhão de famílias ainda estariam no programa indevidamente. E mais de 1,8 milhão continuaria de fora dele, mesmo preenchendo os requisitos. Alguém poderia imaginar que eu, contrário ao tamanho gigantesco do Bolsa Família, estou dando um tiro no pé com esses dados, pois eles provam que, se o gerenciamento do programa fosse perfeito, ainda assim ele teria de ser ampliado em praticamente 300 mil beneficiários. Não se trata disso. Para mim, como já se provou que não há fome endêmica no Brasil, o programa está superdimensionado. Nem por isso, porém, vou deixar de mostrar que, mesmo na lógica governamental, o gerenciamento do programa é malfeito. A verdade é que o governo não trabalha dentro das margens estabelecidas em lei, simplesmente porque conseguir um foco mais nítido seria muito caro. Assim, os gestores do programa se conformam com o fato de que, bem ou mal, todos os que recebem o benefício são pobres. Mas há pobres e pobres. A lei diz que tem direito ao benefício quem tem renda familiar per capita de até R$60, com ou sem filhos, e quem tem renda familiar per capita entre R$61 e R$120, desde que tenha filhos menores de 15 anos. A renda média familiar per capita do primeiro grupo é de R$28,42 e a do segundo grupo é de R$90,97. Já a renda média familiar per capita do grupo que recebe o Bolsa Família sem preencher os requisitos legais é absolutamente mais alta: R$211,66. Uma distorção acintosa. Há um outro caso: a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) determina que têm direito a um salário mínimo todos os idosos cuja renda familiar per capita seja inferior a 1/4 de salário mínimo. Nada menos do que 64% dos beneficiários tinham renda superior ao estipulado em lei. Por outro lado, 101.989 idosos permaneciam sem o benefício mesmo preenchendo os requisitos legais para recebê-lo. A renda dos que recebem o benefício de acordo com a previsão legal é baixíssima: R$14,52 contra uma renda média per capita de R$285,69 daqueles que recebem o benefício sem ser o público-alvo. Neste caso, mesmo diante desses números, o governo dirá que cumpre a lei rigorosamente. Como? A Constituição de 1988 é clara no artigo 203 ao garantir "um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família". Mas, que família? Nas sucessivas regulamentações do artigo, feitas antes do governo Lula, ficou estabelecido que família é o cônjuge, o filho menor ou inválido ou os pais ou o irmão menor ou inválido. Convenhamos, uma família quase impossível para um idoso de 65 anos ou mais (ter pai vivo ou filho menor, nesta idade, é a exceção, não a regra). Assim, chegamos à seguinte situação: se o idoso sem renda morar com um filho casado e os netos, uma situação muito comum no Brasil, ele terá direito ao benefício mesmo se o filho que o sustenta tiver uma situação financeira absolutamente confortável. O Estado chamou a si uma responsabilidade que, antes, era da família. Justo? Não posso negar, uma justiça social sueca. O problema é que moramos no Brasil, um país que não resolveu seus problemas básicos de educação. O orçamento da União prevê gastar este ano R$24,2 bi com a ajuda a idosos e deficientes físicos e com o Bolsa Família. Com investimentos em educação, o MEC gastará R$12,7 bi. Isso diz muito sobre quem somos e sobre quem queremos ser. P.S.: No cálculo da renda dos beneficiários de programas sociais jamais considerou-se o dinheiro obtido com tais programas. O interessado nos outros critérios técnicos que nortearam este artigo poderá encontrá-los em http://oglobo.globo.com/opiniao/. |
Entrevista:O Estado inteligente
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