JB
Policarpo Quaresma, o célebre personagem xenófobo de Lima Barreto, encaminhou requerimento à Câmara com a proposta de que a língua portuguesa fosse substituída pelo tupi. O tupi, na mente conturbada do bravo Policarpo, era um idioma verdadeiramente brasileiro, cultura de um povo inteligente, uma identidade autóctone, ao contrário do português, um vernáculo que nos foi emprestado. Por conta de tamanha patriotada, ele virou motivo de piada em todos os jornais do Rio, foi tido como louco, perdeu o emprego e acabou no manicômio.
A realidade, de vez em quando, nos parece tão estranha quanto à ficção. Eis que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara — cujos membros igualmente fazem jus a uma robusta camisa-de-força — aprovou, por unanimidade, projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, comunista juramentado, que veta estrangeirismos. Dispõe sobre a substituição de todas as expressões estrangeiras em uso no país por equivalentes ou neologismos na língua portuguesa, no exíguo prazo de 90 dias. Esta violência contra a liberdade de emprego pelo cidadão da língua que bem entender segue agora para votação em plenário, e corremos o risco seriíssimo de, mais uma vez, sermos obrigados a nos submeter à opinião do estado, só porque um parlamentar alienado sofre da síndrome de Policarpo Quaresma.
É claro que a lei é de uma imbecilidade atroz. Na melhor das hipóteses, além de não ser cumprida como tantas outras idiotices engendradas pelas mentes doentias que infestam nosso Parlamento, com toda certeza será motivo de chacota e excelente matéria-prima para chargistas, comediantes e programas humorísticos. O risco de leis como esta jaz na crença de muitos de nossos congressistas de que têm o poder de nos tanger como gado. Chegam agora ao ponto de nos querer impor o modo de falar, estabelecer as palavras que devemos usar e escolher por nós o idioma em que devemos nos expressar. Este é o perigo. Reagir é preciso, com vigor e decisão. Ninguém pode nem deve — principalmente o estado — possuir tamanho poder.
Os chauvinistas (desculpe-me Aldo Rebelo o galicismo) tentaram algo parecido na França, mas foram frustrados pela Suprema Corte daquele país, cujo acórdão declarou inconstitucional pretensão tão abusiva quanto ridícula. Será que nossa Constituição — que só não legisla sobre cuspe em distância — não possui um dispositivo que proteja o direito de o indivíduo usar o idioma que quiser? É inconcebível imaginar que a grafia de filé-mignon ou software passará a ser contravenção, quando o bom senso decreta que crime mesmo é patrulhar o uso de palavras por qualquer motivo.
O estrangeirismo é essencial na dinâmica de uma língua. Negar a influência de um idioma sobre outro é negar a natureza de todas as línguas. Cerca de 30% do vocabulário português provêm de outros idiomas. Apesar da luta dos puristas de todas as épocas, as línguas vivem em constante mutação. Qualquer estratégia de defesa do idioma não deveria ser feita por decreto, mas pelo aprimoramento do sistema educacional.
É falaciosa a noção de que a língua portuguesa precisa ser defendida. A xenofobia de Aldo Rebelo é fruto da ignorância. O nacionalismo fanático torna o ser humano desconfiado de tudo que vem de fora; a ignorância faz com que não se reconheça que o processo pelo qual passa o português é a natural evolução da língua.
Se entrar em vigor, passaremos a ter um glossário oficial de aportuguesamento, e todo vocábulo estrangeiro, quando publicado na imprensa ou em anúncios publicitários, terá de vir acompanhado de um correspondente em português. Haja trabalho para filólogos e gramaticões! Resta saber se a lei castradora fará o deleite dos puristas com o banimento de todos os galicismos e anglicismos. É patético, raiando pelo escárnio. Enfim, tudo é possível num país que elege e reelege um Lula da Silva; e também não se pode esperar muito de nossa Suprema Corte tapuia que jamais vislumbrou a exeqüibilidade do bom senso. É relaxar e levar na galhofa.