Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 23, 2007

FERREIRA GULLAR

Descabida metade das partes


Vivia perturbado pelas contradições da existência, que lhe parecia inexplicável

DÉCIO FOI um dos primeiros amigos que tive, ao me transferir para o Rio de Janeiro. Conhecemo-nos na casa de Mário Pedrosa, que gostava de seus poemas, os quais, além de bons, eram bem diferentes dos de outros poetas. Poemas estranhos como ele, seu autor, mesmo porque não nasceram da leitura de nenhum outro poeta e, sim, da conhecida lei de Newton: "matéria atrai na matéria na razão direta das massas na razão inversa do quadrado das distâncias".
Leu-a por acaso, não por ser leitor de livros científicos. É que, durante um tempo, trabalhou vendendo coleções de livros, de porta em porta e, às vezes, abria algum deles e lia algumas páginas; poucas, já que não lhe agradava muito ler -preferia pensar e pensar por conta própria. Tinha necessidade de entender o mundo, e daí por que a frase de Newton o tocara tão fundo: não era literatura, era ciência. Melhor dizendo: ele pretendia explicar a realidade e não apenas falar de sentimentos e fantasias.
Falava pouco e tinha no rosto uma expressão angustiada, que se apagava num sorriso quando achava graça em alguma coisa. Mas não se queixava, não se referia às possíveis causas de sua tristeza. A verdade é que vivia perturbado pelas contradições da existência, que lhe parecia inexplicável. Não cria em Deus e demonstrou isso num poema: "Entre as lamentações da vida/existe um canto no alto/bem no alto/designando o baixo/bem no baixo/que é alto".
Claro, se não existe o alto nem o baixo, não existe o céu, que seria a residência de Deus. Um dia fechou uma flor numa das mãos e tapou com a outra: "Tapei a flor na noite e os dias se esconderam/ descabida metade das partes/ relâmpago das cores".
Certa tarde, Décio me levou à sua casa e então conheci sua mãe, dona Hortência, cuja figura me surpreendeu. Se ele era calado e tímido, ela, pelo contrário, era expansiva e falastrona. Quando chegamos, ouvia, numa vitrola antiga, valsas ainda mais antigas. Era em pleno verão, num pequeno apartamento daquele bairro decadente, aquelas valsas soavam como algo quase irreal. Mais inusitada, porém, era a própria figura dela, vestida como se fosse passear, com o rosto exageradamente pintado de ruge, batom nos lábios e brincos nas orelhas. Décio percebeu minha surpresa e sorriu para mim, pois achava graça na extravagância da mãe. Contou-me que, quando jovem, era dançarina de teatro rebolado da praça Tiradentes. Foi lá que o pai de Décio a conheceu, apaixonaram-se e ela foi morar com ele em Cavalcanti. Com a morte do marido, passou a viver dos aluguéis de pequenas casas que possuía no subúrbio -uma espécie de cortiço- e de pastéis que punha para vender em botecos na vizinhança. Mesmo assim, as despesas a obrigaram a alugar um dos quartos do apartamento para um senhor aposentado, que se revelou um hóspede implicante e rabugento. Implicava com Décio, com a música, com tudo. Um dia, depois de um bate-boca que provocou a intervenção do síndico -amanheceu morto, e a polícia levou dona Hortência e Décio para depor na delegacia, sob suspeita de homicídio. Era o que faltava!
São coisas passadas. Como o drama que ele viveu com as saúvas do quintal de sua casa, ainda em Cavalcanti. Observou que as saúvas estavam devorando um tomateiro e resolveu intervir a favor da planta, retirando dela, uma por uma, as saúvas que, persistentes, voltavam e reiniciavam sua faina devastadora. Ele voltava a retirá-las, até que refletiu: se impeço as saúvas de comerem, salvo as plantas, mas mato as saúvas, o que não é justo, pois elas também têm direito de viver. Diante de tal dilema insolúvel, largou tudo para lá.
A vida nos afastou. Um belo dia, ele apareceu com um livro que mandara imprimir: uma proposta para mudar radicalmente o modo de escrever o português. Queria que eu lhe conseguisse os endereços da Unesco, da Universidade de Coimbra e do presidente de Portugal, para lhes enviar o livro. Ajudei-o como pude. Algum tempo depois, ele me apareceu com um telegrama que recebera do presidente português, agradecendo-lhe o livro.
- Nossa! -exclamei eu. Você deve estar feliz!
Ele apenas sorriu, depois foi embora. Daí a meia hora, voltava.
- Espero que não se zangue comigo -disse ele. Fiquei esse tempo todo na esquina, sem saber se devia dizer isto a você, mas tenho que dizer: Não é nossa, não, é minha.


Caro leitor, esta coluna, a partir de hoje será ilustrada por Rubem Grillo, um dos melhores gravadores brasileiros, em substituição a Antônio Henrique Amaral que, durante três anos, emprestou a ela o brilho de seu talento.

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