Trata-se da anulação, há 10 dias, da Medida Provisória 394 marcando para 2 de julho de 2008 a data-limite para a renovação e registro de armas de fogo. A MP reeditava uma outra, retirada pelo governo para abrir caminho à votação da CPMF na pauta da Câmara.
Na reedição, o governo simplesmente ignorou a proibição constitucional à reapresentação de medidas provisórias sobre o mesmo tema na mesma sessão legislativa.
Melhor e mais claramente dizendo: a Presidência da República, com a anuência da Advocacia-Geral da União, descumpriu deliberadamente a Constituição e tentou aplicar um transgressor "se colar colou" na Câmara dos Deputados para fazer valer seu interesse imediato de desobstruir o que ela mesma ajudara a obstruir.
Teria "colado" se a oposição - no caso, o PSDB - não tivesse entrado com uma ação direta de inconstitucionalidade no STF, que de seu lado aplicou o corretivo em forma de "alto lá".
O Supremo restabeleceu o limite ultrapassado pelo Planalto que insiste em ignorar o Poder Legislativo como força de equilíbrio republicano. O Parlamento, por sua vez, tão acostumado está - principalmente no caso da Câmara - a fazer o papel de camareiro do Executivo que ia se deixando levar sem reclamar.
Como de resto deixou-se conduzir o ano todo. Em 2007, das 142 proposições aprovadas no Congresso, 72 foram de iniciativa do Executivo, sendo 61 medidas provisórias. Metade do material contabilizado como produção legislativa, na realidade, foi produzida no Executivo.
Os parlamentares vêem, se desconfortam, reclamam da situação, mas não tomam uma atitude como instituição. O episódio da MP derrubada pelo Supremo é exemplar e, ao mesmo tempo, vergonhoso. Para o Executivo por ser pilhado burlando a Constituição e para o Legislativo por ser flagrado em conivência.
Só este caso desmonta todo o discurso do Legislativo contra o excesso de medidas provisórias, que só avançou chegando ao ápice da ilegalidade mais flagrante porque o Executivo aprendeu que pode contar com a cumplicidade da submissão de um Poder que aceita tudo, é desrespeitado e continua sem se dar ao respeito.
Não dito
Uma leitura mais atenta dos termos do acordo entre governo e oposição para a aprovação da DRU revela o seguinte: o Planalto se comprometeu a "discutir", não a aprovar a reforma tributária em 2008; prometeu também empenho na votação da emenda que destina 10% da receita da União à saúde, mas não disse que dará os votos para tal; rejeitou a edição de "pacotes" de aumento ou criação de novos impostos, mas nada disse sobre medidas pontuais com o mesmo teor.
Ficou, portanto, aberto um amplo espaço para que o dito de ontem se transforme no não dito de amanhã.
Ademais, se é verdade que o governo não tinha jeito, estava mesmo nas mãos da oposição, esta também não tinha saída a não ser aceitar o "acordo" - em todas as suas aspas - sob pena de, ao endurecer na DRU, anular a vitória obtida na CPMF.
Balanço geral
Chegamos ao fim de mais um ano. O primeiro do segundo mandato do presidente Lula que, descontada a derrota da CPMF no último instante, não tem do que reclamar com a economia e a popularidade em alta.
Isso levando em conta que o governo não contabiliza como negação de desempenho a continuidade da crise aérea. A crise, em 2007, esteve toda no Congresso. Começou em maio, quando a Veja publicou a primeira de uma série de denúncias contra o então presidente do Senado e só cedeu em dezembro com a renúncia definitiva ao cargo.
Renan Calheiros fez mal ao Senado, mas o Senado dividiu com ele a tarefa absolvendo-o em dois julgamentos e deixando à instituição um rastro de desprestígio e desmoralização.
O Legislativo ficou devendo. Em independência, defesa dos interesses da sociedade, recuperação da credibilidade, restauração da ética, na execução de reformas importantes e, principalmente, as internas para acabar com o voto secreto e anacronismos do gênero.
Já o Judiciário encerra 2007 no azul. Pôs um limite ao troca-troca de partidos com a regra da fidelidade e restringiu a liberalidade moral com que se adotavam práticas de abuso na política, quando aceitou a denúncia contra os 40 acusados no escândalo do mensalão.
O Supremo ouviu o recado da sociedade, mas o Congresso no geral fez-se de surdo.
No mais, resta-nos a esperança, a alegria, o estímulo, a leveza de espírito e a crença de que, no fim, dá tudo certo. Desde que a vontade seja fazer tudo, ou quase tudo, certo. Até 2008, que chegará com a marca da largada para a sucessão presidencial.