''''Governo é perdulário e mau gastador''''
Carlos Marchi
Para Gabeira, Lula não se preocupa em melhorar a capacidade gerencial do governo porque tem uma idéia equivocada sobre choque de gestão. O presidente, avaliou ele, pensa que o choque de gestão tem, no poder público, o mesmo efeito que exerce sobre a empresa privada - causar demissões.
Numa profunda revisão histórica, Gabeira - que participou de um seqüestro em 1968 - afirmou que o seqüestro político é uma forma de luta "abominável". "Não há situação política que justifique um seqüestro", afirmou. Eis a entrevista:
Que lição o governo deve tirar da derrota na CPMF?
A vitória da oposição e de uma parte da sociedade, ao derrotar a CPMF, foi um elemento importante de reflexão para o País. Não que houvesse, em mim,um desejo de ver o governo se dar mal, mas porque fez o governo considerar a hipótese de racionalizar os seus gastos e obter mais resultados com os recursos que usa.
A derrota da CPMF obriga o governo a ser mais eficiente?
Exatamente. Na verdade, o resultado da CPMF ofereceu ao governo a possibilidade de racionalizar os seus gastos e alcançar resultados melhores.
O sr. quer dizer que o governo era perdulário ou mau gastador?
Era e ainda é. O governo é perdulário, é mau gastador e vai ser forçado a rever as suas políticas de gestão. Isso é positivo tanto para o País, como para o governo também.
O governo era perdulário e mau gastador por incompetência ou por falta de cuidados?
Existem as duas coisas. A incapacidade para gerir e uma vontade incontrolável de ocupar a máquina pública de forma partidária. A combinação desses fatores acaba produzindo resultados piores do que ele poderia obter.
Nesses dois mandatos, qual foi o maior erro de Lula?
O grande erro, que até hoje repercute para ele, foi a forma de conduzir a relação com o Parlamento e a maneira de construir as maiorias. Grande parte dos problemas políticos do governo decorrem dessa opção. O escândalo do mensalão e a derrota da CPMF revelam que a opção de formar maiorias na base de trocas fisiológicas é equivocada. Também é equivocada a idéia de fazer uma frente do tipo "arca de Noé", na qual entra quem quer se salvar. Primeiro, é preciso ter um programa. E, dentro do programa, uma fronteira, onde se determine quem é aliado, quem é adversário. Isso nunca ficou claro para o governo Lula.
O que passa pela cabeça de Lula quando opta por esse caminho?
Fernando Henrique Cardoso, num determinado momento, afirmou que tanto o PSDB quanto o PT estariam condenados a ser a vanguarda do atraso se entrassem por esse caminho. Se não é possível o entendimento com a oposição, o governo procura os que não se importam com divergências e aceitam participar do governo ou apoiá-lo se forem recompensados em suas reivindicações. Então, apela para a fisiologia.
Como resolver essa impossibilidade de entendimento entre as principais forças políticas?
Acontece que está chegando ao fim o processo de polarizações muito rígidas, como entre esquerda e direita ou entre contracultura e conservadorismo. Isso dá margem para construir pontes que podem conduzir a uma política majoritária.
Como construir pontes que superem hábitos de fisiologia?
Primeiro, temos de encontrar a ponte teórica. Dou um exemplo na discussão do aborto: temos posições muito rígidas a favor e contra. Como achar a ponte? Simples: vamos aumentar a informação das adolescentes brasileiras para conseguir evitar a gravidez indesejada. Essa fase de entendimento impossível vai se esgotar quando os partidos perceberem que as divergências entre eles não são insuperáveis e é possível achar um denominador comum.
PSDB e PT terão um momento de programas comuns?
Na prática, existe uma política comum a ambos. Por exemplo, a política econômica de Lula tem o apoio teórico do PSDB. As políticas sociais já estavam esboçadas no governo FHC, mas uma ênfase maior foi dada por Lula. No conjunto de idéias para conduzir o País, vemos que todos "pertencem" ao mesmo partido. Só que esse "pertencer", essa comunhão parcial de idéias, não é o que predomina, porque, além dela, existe o desejo específico de ter o poder. Por isso é que se briga muito. Mas a briga não é para ter políticas diferentes.
O governo vai viver bem sem a CPMF?
É perfeitamente possível desenvolver uma política social generosa e, simultaneamente, reduzir a carga tributária. Há uma dificuldade, que localizei no discurso de Lula. Na campanha presidencial, ele disse que não faria choque de gestão porque a experiência dele mostrou que isso termina com gente desempregada. Isso é verdade para ele, que era um líder sindical na área das multinacionais. Mas ele não pode transplantar esse temor para o Estado, no qual a racionalização libera recursos para usar em políticas que dão emprego. Mas ele raciocina assim.
O Bolsa-Família está dando novo status social às pessoas?
O que o Bolsa-Família está dando às pessoas é uma vida mais digna. Aí surge a discussão sobre a "porta de saída". Raciocino em função do País: é um alívio que esses milhões de pessoas tenham uma vida mais digna, mas imagine a capacidade, o talento e as possibilidades de realização desses milhões de pessoas, que não estão sendo desenvolvidos! Esta é uma questão vital para o País. É importante dar às pessoas condições de viver com dignidade, mas o Brasil precisa de mais que isso, precisa do talento, da capacidade e da criatividade dessas pessoas.
O coronel Hugo Chávez coordenou a troca de reféns da guerrilha colombiana. Isso não é um tanto déjà-vu, com gosto de revival da guerrilha modelo anos 60?
Acho que sim, mas é preciso entender que Chávez quer criar, na América Latina, um pólo em que ele apareça como líder. Seu principal instrumento são os dólares do petróleo. Essa troca de reféns, que ele está transformando num espetáculo dele, deveria, na verdade, ter acontecido há mais tempo. As Farc deveriam ter sido forçadas a entregar esses reféns há muito tempo. Não faz sentido ter algum tipo de relação política com uma organização que não só está fora da lei, mas que também usa métodos absolutamente inaceitáveis. Chávez está usando as Farc para aumentar o seu prestígio, mas acaba transmitindo a essa organização uma importância e uma solenidade que ela não tem mais.
O sr. participou de um seqüestro. O que separa aquele ato dos seqüestros das Farc é o tempo decorrido. De lá para cá, o que mudou?
Mudou a minha compreensão dos fatos. Hoje eu considero o seqüestro uma forma de luta abominável, um desrespeito à lei e aos direitos humanos da pessoa seqüestrada, da sua família, seus amigos. Hoje eu vejo o seqüestro com os olhos da Ingrid Bettancourt. Eu participei de um seqüestro na década dos 60 e hoje integro um comitê que tenta libertar Ingrid.
Seqüestros já eram abomináveis em 1968 ou alguma situação política pode explicá-los?
Eu concluí que não há situação política que justifique um seqüestro. A explicação política do seqüestro é que os fins justificam os meios. Essa justificativa é a mesma que conduziu os partidos de esquerda a seus erros mais profundos.
Na conferência do clima, em Bali, foi cobrado dos países em desenvolvimento a redução dos gases-estufa. O Brasil consegue cumprir esse compromisso?
Tem plenas condições de cumprir. Apesar do nosso inventário de emissões ser da década dos 90, indica que 70% das nossas emissões vêm do mau uso da terra e das queimadas.
A redução do desmatamento se deu porque a fiscalização é dura ou porque os preços das commodities caíram?
O processo de redução dos últimos dois anos coincidiu com a queda nos preços das commodities. Temos de apurar se as políticas do governo são frágeis ou não. O Brasil não tem recursos para fazer uma política adequada para a Amazônia. Precisa de recursos internacionais. Mas é muito difícil que esses recursos venham sem que haja um projeto nacional claro, uma autoridade brasileira cuidando da Amazônia e sem que haja transparência no uso desses recursos.
O governo vai fazer a transposição do Rio São Francisco?
Nosso caminho é concentrar toda força na revitalização do rio. Mas vai ser difícil que Lula não faça a transposição, porque ela dará a ele a sensação de que está entrando na história. Lula não resistirá à idéia de realizar um projeto que foi cogitado por d. Pedro II.
Quem é:
Fernando Gabeira
É deputado no quarto mandato - três pelo PV, onde está hoje, e um pelo PT.
Jornalista, é autor de dois livros polêmicos: O que é isso, companheiro? e Nós, que amávamos tanto a revolução, um diálogo com o líder estudantil francês Daniel Cohn-Bendit.
Cursou Antropologia na Universidade de Estocolmo, enquanto estava no exílio.
TRANSPOSIÇÃO: "Lula não resistirá à idéia de realizar um projeto que foi cogitado por d. Pedro II"
IMPOSTOS: "A vitória da oposição e da sociedade, ao derrotar a CPMF, foi elemento importante de reflexão"
SEQÜESTRO POLÍTICO: "Eu concluí que não há situação política que justifique um seqüestro"