Se há um direito de o governo Lula se sentir vítima do inexorável ditado "desgraça pouca é bobagem", esse diz respeito ao seu frustrado relacionamento com o Movimento dos Sem-Terra (MST). Seria o caso de lembrar Julio César, dizendo a Brutus: "Até tu, meu filho?" Pois o balanço divulgado pelos líderes emessetistas sobre o governo Lula não passa de extenso rol de decepções. Para eles, em três anos o governo esteve longe de cumprir suas promessas. Depois de ter reduzido - de 1 milhão para 400 mil assentados - o ambicioso plano original de assentamento que pedira ao MST, o governo não merece crédito desse movimento nem quanto ao cumprimento do programa previsto no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), anunciado sexta-feira pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de atingir a meta de 115 mil assentados, prevista para 2005.
Mas há outras queixas dos líderes do Movimento dos Sem-Terra. Tanto eles quanto os da Comissão Pastoral da Terra (CPT) acusam o governo de incluir, em seus levantamentos de assentados, aquelas famílias encaminhadas para lotes abandonados de antigos assentamentos. Quer dizer, é como se esses assentados "não existissem" e o governo só pudesse contabilizar os ocupantes de áreas "novas" - ou a primeira leva de assentados em terras adquiridas ou desapropriadas para efeitos da reforma agrária.
Eis aí demonstrada, por parte desses movimentos, uma visão apenas distributivista da terra. Houvesse um projeto cujo objetivo principal fosse de fato a reforma agrária, não a simples ocupação de terras, mas a devida qualificação, para a produção agrária, daquelas famílias de assentados - por mecanismos incluindo a educação, o treinamento em técnicas agrícolas ou pecuárias, a concessão de crédito, o escoamento de produtos, a formação de cooperativas, etc. -, não se haveria de contestar a existência de participantes no programa de reforma agrária do governo, só por estes se utilizarem de terras que outros deixaram.
E as queixas continuam: os sem-terra consideram que o atual governo, tal como o anterior, concentrou os assentamentos na região da Amazônia legal, em terras da União, o que significaria apenas legalização de terras públicas e não "mudanças na estrutura fundiária". Será que o termo "legalização" - que significa a simples colocação de algo (seja terra, situação ou bem de qualquer natureza) em conformidade com a lei - é tão incompatível, assim, com o programa de reforma agrária?
Os sem-terra também reclamam do fato de terem sido poucas as famílias assentadas nos Estados com maior tensão na zona rural, como Rio Grande do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul. E poderia ter sido diferente? As regiões de conflito, permeadas de disputas judiciais pela posse da terra, não apresentarão, por si, mais dificuldades de regularização e assentamento, no âmbito da reforma agrária?
Deixemos de lado as previsões otimistas do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto - amplamente contestadas pelos líderes do Movimento dos Sem-Terra -, que ainda acredita na possibilidade de cumprimento, até o fim do ano 2006, da meta de assentar 400 mil famílias; suspendamos a questão da discussão sobre os parâmetros de produtividade, uma das principais reivindicações do MST, que aumentaria o rigor no critério de aferição de produtividade da terra, para livrá-la de desapropriação para efeito de reforma agrária.
É que nos chama mais a atenção, nisso tudo, a má vontade em relação ao governo - numa anunciada mudança de tática, visto que antes o Movimento dos Sem-Terra sempre tentava não atrapalhar o governo Lula - de uma organização sem vida legal que jamais tivera antes tanta facilidade de circulação nos gabinetes de Brasília, que nunca recebera tantos recursos para suas atividades, que nunca indicara tantos prepostos para cargos governamentais e, enfim, que nunca recebera tamanho apoio presidencial (com boné e tudo mais), sem qualquer preocupação em deixar de atuar à margem da lei.
Intensificar suas manifestações em 2006, em pleno ano eleitoral, como promete - e é impossível dissociá-las das invasões, depredações de sedes de fazendas e práticas de violência de todo o tipo -, tem que ser avaliado, no mínimo, como expressão de pura ingratidão.