Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 06, 2010

O legado do tempo Miriam Leitão


O GLOBO - 06/06/10

O presidente Lula rejeitou o exemplo de Hugo Chávez de perseguir mandatos sucessivos e seguiu o modelo Álvaro Uribe que aceitou a ordem da Suprema Corte de que um terceiro mandato era inconstitucional. Melhor: nem esperou a Justiça.

Mesmo assim, Lula corre risco de perder esse ponto positivo em sua biografia política desrespeitando tão abusivamente as leis eleitorais.

Lula se equivoca quando pensa que a medida do sucesso do seu governo será a capacidade de eleger seu sucessor.

Isso nem sempre prova alguma coisa. Só o tempo decantará o que há de marketing nessa avaliação positiva para traçar o retrato definitivo que ficará do presidente na História. Ter feito o sucessor não está entre requisitos do bom julgamento.

Até Paulo Maluf elegeu seu sucessor. Isso não fez diferença em sua desastrosa biografia política.

Lula será avaliado no futuro pelo que fez ou deixou de fazer. No seu caso, algumas coisas que deixou de fazer serão parte integrante da sua lista de méritos. Seu programa continha promessas capazes de incinerar avanços duramente conquistados nos anos anteriores, como a normalização das relações com a comunidade financeira internacional, a estabilização, a abertura comercial. Como já é História, ele não fez o que prometeu — e que sugeriam vários dos economistas do seu grupo político — e assim acertou.

Mas certamente pesará contra ele o comportamento abusivo de uso da máquina governamental e o descumprimento das leis eleitorais que ele tem praticado nos últimos meses. É um desrespeito à Presidência e ao Judiciário que ele esteja usando o governo, em suas várias instâncias, para afrontar a Justiça Eleitoral e as normas desse período de campanha.

Em pleno comício no ABC, dias atrás, Lula disse que ele tem que dar exemplo, por isso não faria campanha, quando já estava fazendo o que negava fazer.

Prometeu voltar no segundo semestre para fazer campanha na porta de fábrica.

Se ele pudesse se despir da Presidência, poderia fazê-lo. Ou até o mais básico, se ele pagasse os custos das suas viagens políticoeleitorais já seria um pouco melhor, mas quem paga para ele desrespeitar a lei eleitoral são os contribuintes brasileiros.

Até agora o país está vivendo uma situação em que o crime compensa. O TSE dá suas sentenças e elas são ignoradas. No pior dos casos, o TSE postergou tanto a pena para o PT que ela recairá em 2011, quando já não fará mais diferença no atual pleito. O tribunal tem dado sinais de perigosa flexibilização em algumas interpretações.

Se o TSE não for rigoroso, o que estará em jogo é a própria autoridade da Justiça Eleitoral no país.

Além das suas viagens eleitoreiras, o país viveu o abuso de pagar com recursos do contribuinte as viagens da pré-candidata quando ela era ainda ministra, mas já fazia campanha.

Dizer que aqueles palanques que o Brasil viu, e o brasileiro pagou, não eram comícios, é dizer que somos todos bobos.

Casos como os dos dias passados em visitas às obras do São Francisco, em que pouco se fiscalizava e muito se posava e discursava para a campanha, ou o extemporâneo e caro circo do lançamento do PAC-2 são fraturas expostas nas regras do bom comportamento político.

Se a candidata do presidente for eleita, isso não apagará o mal feito. Ficará o país sabendo que Lula inaugurou a temporada do vale tudo no governo federal quando o governante quer eleger o sucessor. Isso avacalha a democracia que o país está construindo.

A conta parcial de alguns desses eventos foi apresentada por requerimento do deputado Raul Jungmann (PPSPE): R$ 3 milhões. Quem paga campanha é partido — para isso tem até dinheiro público distribuído às legendas — mas não pode ser com o orçamento do Palácio do Planalto.

É acintoso.

As declarações da linha do "nunca antes" não vão impor realidades. Quando baixar a poeira do marketing superlativo do atual presidente, o país registrará o bom e o ruim do legado da era Lula. Mesmo agora, adianta pouco falar que desde Geisel nunca se investiu tanto em estradas, se elas estão intransitáveis; que a Saúde está perto da perfeição, se há filas de pacientes para cirurgias; relançar as notas do real para se vincular a um plano ao qual se opôs; ampliar o gasto público para forçar um crescimento econômico exuberante na reta final, se as estatísticas vão mostrar que nos anos de boom mundial o Brasil cresceu menos que a média dos outros países e dos vizinhos. Nada ficará da tese de que 2003 é a data inaugural do Brasil, porque a História registrará o processo de modernização que começou antes e continuará depois de Lula.

Também não servirá para a História sua tese de que foi vítima do mensalão. O escândalo será visto como é: não uma conspiração contra ele, mas o pior caso de corrupção da História do Brasil e ocorrido no coração do governo Lula, com o concurso dos seus mais próximos colaboradores.

Seus méritos serão mais bem dimensionados quando passar a temporada dos autoelogios, aos quais Lula se entrega com ímpeto enquanto deprecia outros governantes. Suas boas políticas serão valorizadas quando não forem peças de palanques. Os avanços desses oito anos serão constatados e calculados não pela capacidade de eleger quem quer que seja, mas pelo balanço lúcido e informado que o tempo permitirá fazer.

Hoje, seu afã de eleger, a qualquer custo, a candidata que escolheu só vai malbaratar sua herança, vai fazer mal à democracia brasileira, vai apequenar a Presidência e desrespeitar o papel institucional da Justiça Eleitoral.

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