O Estado de S.Paulo - 20/06/10
É curioso observar que a camisa de força imposta, a LRF, chegou a sofrer ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal de iniciativa do PT, PCdoB e PTB, que pediam a derrubada de 30 dos seus 75 dispositivos. O saldo positivo mostra que o endividamento dos municípios caiu de 8,04% das receitas em 2002 para 0,81% em 2008. Há oito anos, 2.556 municípios apresentavam insuficiência de caixa para honrar compromissos, número que caiu a menos da metade, 1.259. A maioria dos entes federativos cumpre limites, a transparência ilumina a escuridão das contas e os sistemas de controle, como Tribunais de Contas (TCs) e Ministério Público, ganham mais efetividade. A lei tem, assim, provada a sua eficiência.
A disposição da imensa maioria dos governantes, porém, é de escapar aos limites impostos pela legislação. Principalmente em anos eleitorais. Estados não se conformam que sua dívida se limite ao valor de duas vezes a receita. E apontam para a União, que não tem limites para gastos. A propósito, o Tribunal de Contas da União acaba de aprovar, com ressalvas, as contas do governo Lula, deixando, ainda, transparecer muitos buracos. De 2005 a 2009, só 3,7% das 511 mil multas aplicadas por 16 órgãos foram recolhidos, significando quase R$ 25 bilhões em sanções que escaparam do caixa. Mais de cem ações previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias nem sequer tiveram recursos previstos. Na esfera da União faltam disciplina e zelo no cumprimento das disposições. É inconcebível fechar a peneira em baixo e deixá-la aberta em cima. Se a LRF é aplicada com certo rigor no âmbito dos Estados e municípios, o fato se deve também à lupa dos TCs, cuja função foi normatizada na Constituição de 88.
Apesar de percalços vividos por um ou outro órgão, com foco no comportamento de certos conselheiros, o ordenamento dos TCs está profundamente imbricado à nossa cultura política. Basta lembrar que seu patrono é Rui Barbosa. Titular da Pasta da Fazenda, em 1890 o grande tribuno defendia sua existência como "um corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, com atribuições de revisão e julgamento de garantias contra quaisquer ameaças".
Guardião da coisa pública, tem como função primordial examinar os aspectos de legalidade, legitimidade, economicidade e gestão operacional das ações dos gestores. Tome-se o exemplo de construção de uma passarela de pedestres. Apreciar a legalidade da obra é verificar se houve autorização nas leis orçamentárias, se a Lei de Licitações e a LRF foram cumpridas; a economicidade relaciona-se ao custo, que deve refletir o preço de mercado; enquanto a legitimidade aponta para a observância dos princípios da moralidade e do interesse público. Se a obra for um desvio para ajudar empresa de parente ou amigo do gestor, poderá cair na malha de despesa ilegítima. Já o controle operacional deverá avaliar se a despesa foi executada de forma eficaz, eficiente e efetiva, ou seja, se foram contemplados os elementos data aprazada, recursos alocados de maneira racional e metas cumpridas de diminuição de atropelamentos.
Essa é a engenharia analítica que governantes sonham em desmontar. Entre as iniciativas para escapar aos limites impostos pela lei, está a criação de Tribunais de Contas municipais, com estrutura e funções semelhantes às dos Tribunais de Contas dos Estados. Alguns alcaides imaginam que poderiam tê-los sob domínio. As duas últimas tentativas nessa direção falharam (Rio de Janeiro e Tocantins). Mas no Tocantins o estouro da boiada continua a ser engendrado. Há pouco aprovou-se ali, em tempo recorde, um projeto de lei para retirar poderes do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Pelo projeto, o TCE fica impedido de julgar prefeitos na condição de ordenadores de despesas, revogando-se a Lei Orgânica daquele órgão. Curiosidade: o projeto foi apresentado às 17 horas de 10 de maio, aprovado em plenário na mesma noite, sancionado e publicado no dia seguinte. Artimanhas costumam aparecer em ano eleitoral.
É bem verdade que para enfrentar as teias de interesses os TCEs precisam aperfeiçoar seu desempenho, a partir de um controle externo. O conselheiro-corregedor do TC de Pernambuco, Valdecir Fernandes Pascoal, defende a criação de um Conselho Nacional de Tribunais de Contas, sob o argumento de que, "se o órgão é o fiscal da gestão alheia, deve ter a obrigação de ser referência para os demais Poderes nos quesitos legalidade e transparência".
Outra área crítica é a das indicações eminentemente políticas e sem a observância dos requisitos constitucionais de notório saber, idoneidade moral e reputação ilibada. Por que não aumentar a proporção das vagas destinadas aos servidores de carreira, que ingressam mediante concurso público? O apuro profissional dos tribunais é a alternativa para que os mecanismos de controle sejam efetivamente usados. Tribunais fracos e despreparados contribuirão para que as planilhas de contas estaduais e municipais sejam devastadas por viés eleitoreiro.
Há um porém: como reforçar o braço da moralização, se o braço da permissividade puxa em sentido contrário?
Eis a pista: puxar o apoio da sociedade para a banda da moral.