O que a 'errata' revela
O Estado de S.Paulo
02 Setembro 2014 | 02h 06
Se for verdadeira a versão da candidata Marina Silva para a exclusão do seu programa de governo da defesa do casamento gay, da criminalização da homofobia e da produção de material didático de endosso às "novas formas de família", de duas, uma: ela pecou por omissão e por submissão. O documento foi divulgado na sexta-feira e modificado em menos de 24 horas. Segundo nota do comitê de campanha, as passagens expurgadas tinham sido incorporadas inadvertidamente ao texto por "falha processual" (sic) na sua edição.
O erro de procedimento, que é o que os autores da "errata" decerto pretendiam dizer, antes de sucumbir ao pedantismo, teria consistido em manter no programa, como se dele fossem parte intrínseca, as sugestões do chamado movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). Custa crer que não tenham passado pelo crivo da devota da Assembleia de Deus a descrição do País como uma "sociedade sexista e excludente em relação às diferenças"; o compromisso com os projetos em curso no Congresso "que garantem o direito ao casamento igualitário"; a promessa de "articular" a aprovação da proposta que estende à discriminação por orientação sexual as punições por racismo e suas variações, previstas no Código Penal; e a intenção de "desenvolver material didático destinado a conscientizar sobre a diversidade sexual".
Repita-se: é improvável que Marina tenha "assinado sem ler" o capítulo mais delicado de suas diretrizes de governo, não só porque está farta de conhecer as controvérsias não raro inflamadas que as citadas questões suscitam, sobretudo entre leigos e crentes como ela, mas também porque, em 2010, candidata pela primeira vez ao Planalto, a evangélica invocou uma "cláusula de consciência" para não se manifestar sobre as demandas dos ativistas no campo dos costumes. O que praticamente impõe a conclusão de que, diante das críticas que espocaram nas redes sociais contra essas páginas do programa, uma intimidada Marina rogou aos correligionários, em menos tempo do que gastaria para dizer "falha processual", que esquecessem o que ali estava escrito.
Não se trata, evidentemente, de entrar no mérito nem nas afirmações expurgadas do programa nem naquelas, abrandadas, que as substituíram. A saber: em vez do termo sociedade sexista, "sociedade que tem muita dificuldade de lidar com as diferenças"; em vez de apoio ao casamento gay, "garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo", o que o Supremo Tribunal Federal (STF) já garante; em vez de capitanear a criminalização da homofobia, o que pregadores pentecostais que verberam os gays tomam como ameaça, "criar mecanismos para aferir os crimes de natureza homofóbica"; em vez, por fim, do material didático que os opositores chamam "kit gay", nenhuma palavra.
O ponto é que teriam bastado "quatro tuítes do pastor Malafaia para que a candidata (…) desmentisse o seu próprio programa", como protestou o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), defensor da causa LGBT no Congresso, aludindo ao evangélico que lidera a campanha contra o aborto. De seu lado, o escritor Milton Hatoum, colunista deste jornal, considerou o recuo de Marina "falha moral" e retirou o seu nome de uma lista de apoios à candidata. "Não quero eleger um presidente que seja refém de bancadas religiosas", argumentou. Já o ex-governador tucano Alberto Goldman qualificou a versão da falha processual como "agressão à nossa inteligência". Manda a equanimidade, porém, admitir, contra a lógica, que tenha acontecido o que a nota justificando a errata diz que aconteceu.
Se assim foi, pior a emenda que o soneto. Porque, nessa hipótese, tendo deixado de esquadrinhar linha a linha o texto pronto a ser divulgado como produto de meses de estudos e debates com o então titular da chapa Eduardo Campos - e destinado a mostrar uma candidata com posições firmes e conhecimento de causa -, ela revelou um traço inquietante: o amadorismo. É cedo para dizer quais poderão ser as sequelas eleitorais do episódio. Mas não é cedo para reafirmar o ceticismo sobre a capacidade da ex-ministra de administrar um País que, no dizer de Aécio Neves dias antes do episódio, "não é para amadores".