O GLOBO
Quando anunciou, em tudo menos no nome, uma guerra contra o Estado Islâmico (EI), Barack Obama sublinhou dois pontos. O EI não é um Estado, mas uma organização terrorista, disse o presidente, acrescentando que também não é islâmico, pois o Islã não prega o ódio e a morte. Tony Blair não discorda de nenhum desses pontos, mas adiantou-se para fazer uma ressalva ao segundo. Num longo ensaio, "The way ahead", publicado em sua página eletrônica, o representante do Quarteto (ONU, EUA, UE e Rússia) para a paz em Israel/Palestina distinguiu o "islamismo" do Islã e convocou uma guerra geral contra o primeiro.
Blair defende que a Grã-Bretanha participe, ao lado dos EUA, das operações de bombardeio aéreo contra o EI, mas já antevê desdobramentos da campanha militar: "a menos que estejamos preparados para combater no solo, pode-se contê-los, mas não derrotá-los", declarou à BBC. O ex-primeiro-ministro não se refere ao engajamento de tropas convencionais, mas à extensiva utilização de destacamentos de forças especiais — que, aliás, já operam tanto no Iraque quanto na Síria. Entretanto, a novidade de seu texto está em outro lugar: a guerra de Blair não se circunscreve ao Oriente Médio.
"Junte os pontos", alerta Blair, desenhando o cenário de uma guerra global. "Há uma tendência a se encarar os conflitos que ocorrem em diferentes partes do mundo como desconectados, movidos por uma coleção de rivalidades separadas, essencialmente locais", mas trata-se, no fundo, de um desafio único. Sem negar as particularidades de cada conflito, o britânico enfatiza a motivação ideológica compartilhada pelos grupos islâmicos extremistas que operam no Oriente Médio, no Paquistão, na Nigéria, na Transcaucásia russa, no Xinjiang chinês e em outros lugares. É a "guerra ao terror", em versão 2.0.
De fato, a al-Qaeda, embora arruinada como organização, espalhou sementes jihadistas pelo mundo, que reativam antigas disputas singulares ou se nutrem de ressentimentos políticos, sociais, étnicos e religiosos encravados em diferentes sociedades. Blair tem razão no diagnóstico, mas a doutrina que delineia pode, inadvertidamente, abrir uma caixa de Pandora, legitimando a falsa identificação do fundamentalismo islâmico com o jihadismo. Nessa hipótese, a "guerra ao terror" 2.0 se transmutaria em ferramenta de repressão quase indiscriminada a serviço da manutenção de injustiças e da calcificação de regimes tirânicos.
Como os jihadistas, os fundamentalistas islâmicos almejam substituir o livro das leis (o contrato constitucional) pelo primado da Lei do Livro (o Corão). Os segundos, porém, circunscrevem sua ação às fronteiras nacionais e, em tese, podem comportar-se como um partido político, nos marcos do jogo da democracia. Em princípio, a Irmandade Muçulmana egípcia e o Hamas palestino, por exemplo, não se inscrevem na lista de grupos que, nas palavras de Blair, "formam partes diversas da mesma luta", pois sempre rejeitaram o canto de sereia da "jihad global". Entretanto, a nova ditadura implantada no Egito e o governo israelense têm todo o interesse numa interpretação ampliada dos significados da "guerra de Blair". Os resultados disso seriam desastrosos, empurrando os fundamentalistas na direção do jihadismo.
Há quase dez anos, muçulmanos britânicos inspirados pela al-Qaeda promoveram os atentados terroristas no metrô de Londres. Hoje, milhares de europeus atravessam diversas fronteiras para se juntar ao EI nos campos de batalha da Síria e do Iraque. Blair tem isso em mente quando escreve que as raízes do desafio estão fincadas no vasto e heterogêneo solo do extremismo ideológico. "O problema não é que enfrentamos uma franja de desvairados, um tipo de culto estranho confinado a uns poucos fanáticos. O problema é que nos defrontamos com um espectro de opinião baseado numa visão de mundo que se estende largamente por setores da sociedade muçulmana." Aviões, mísseis, drones e soldados bem armados não podem vencer um conflito travado no teatro de batalha das ideias.
O "espectro de opinião", no qual a "franja" ocupa apenas a ponta extrema, articula-se ao redor de "uma crença no exclusivismo religioso"; de "um desejo de reconfigurar a sociedade" segundo o literalismo corânico; da definição do Ocidente, "particularmente os EUA", como o inimigo "não só político, mas em termos de cultura e modo de vida". Blair faz referência à pregação islâmica radical entre comunidades muçulmanas europeias. O "espectro", explica, não é igual à "franja" — e, muitas vezes, a rejeita. Mesmo assim, nos amplos círculos do "espectro", por meio da mesquita ou da internet, dissemina-se o antissemitismo e propaga-se a noção de que todos os males do mundo muçulmano derivam de conspirações imperialistas passadas ou presentes.
O ensaio de Blair ilumina a camada saliente de um fenômeno mais profundo. No Oriente Médio, o "espectro" tomou espaços ideológicos antes ocupados pelo falido pan-arabismo. Fora dele, seu discurso reproduz com surpreendente nitidez uma chave argumentativa que caracterizou a narrativa terceiro-mundista. Na América Latina, não são necessários pregadores radicais islâmicos para a difusão de lendas fantásticas, como a de que a al-Qaeda e o próprio EI nasceram de uma operação maquiavélica dos serviços americanos de inteligência.
"Combater a franja, protestar ousadamente contra o espectro", sugere Blair, assinalando que os muçulmanos modernos são aliados na guerra das ideias. A estratégia de contrapor os valores da liberdade, da democracia e da tolerância ao discurso odiento dos "soldados da fé" deveria, porém, ser submetida a uma interpretação estrita. Numa "guerra", não é difícil transformá-la em pretexto para a xenofobia, a islamofobia e a perseguição da dissidência intelectual. Afinal, as palavras "guerra" e "ideias" nunca conviveram em harmonia.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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