Eleitores e 'eleitores'
O Estado de S.Paulo
08 Setembro 2014 | 02h 04
Nas eleições brasileiras existem dois tipos de urnas. A primeira, material, é aquela em que a parcela da população apta a votar - 141,8 milhões de cidadãos este ano - tem o direito de escolher seus governantes e representantes, de acordo com o mais democrático dos princípios: uma pessoa, um voto, um nome para cada cargo. A outra urna, metafórica, é aquela em que também uma parcela da população - uma gota no oceano, perto da outra - tem o privilégio de registrar o seu apoio, por via transversa, a tantos candidatos quantos convenham aos seus interesses. Ou a tantos quanto possam permitir as suas, digamos, planilhas cívicas.
Valha individualmente o que valer, o voto singular do eleitor comum exprime uma esperança ou um protesto. Já o voto múltiplo desse outro eleitor diferenciado, cujo valor é perfeitamente mensurável, representa sempre uma perversão e um investimento. Perversão porque dá a um punhado de pessoas, por meio das organizações que controlam, um poder além do alcance do eleitor de carne e osso. Afinal são aquelas cédulas - quaisquer que sejam os seus formatos - que tornam possível aos candidatos bancar os gastos cada vez mais extravagantes, sobretudo com propaganda, decorrentes do modelo brasileiro de campanha, para adquirirem efetivas chances de sucesso nas cabines de votação. Desde 2002, cada disputa custa mais do que a anterior.
As organizações, evidentemente, são as empresas. Evidentemente também, elas não votam. Evidentemente ainda, os recursos que repassam aos políticos merecedores de sua generosidade - até 2% do rendimento bruto no ano anterior ao pleito - lhes dão condições especiais para moldar o curso da conquista do voto popular. E a sua aberrante participação no processo de renovação periódica das elites dirigentes, sob regras democráticas, é um investimento porque embute uma expectativa de retorno sob a forma de contratos com a administração pública e da aprovação de projetos que alavanquem os seus negócios (e do bloqueio daqueles outros que os travem). Mas ainda não é tudo a devastação do primado da igualdade de oportunidades eleitorais, provocada pela absurda situação em que pessoas jurídicas, por definição sem direito a voto, são os grandes eleitores do País.
Um levantamento do Estado em parceria com a ONG Transparência Brasil, cujos resultados saíram na edição de sexta-feira, escancara outro escândalo: apenas três empresas - a Construtora OAS, o frigorífico JBS e a Construtora Andrade Gutierrez, nesta ordem - respondem por 39% das doações aos candidatos à Presidência da República, conforme as prestações de contas de suas respectivas campanhas, encaminhadas à Justiça Eleitoral, como exige a lei. Em números absolutos, tais contribuições somam aproximadamente R$ 64 milhões de um total da ordem de R$ 202,3 milhões. A candidata Dilma Rousseff lidera de longe o ranking dos "mais votados". Os R$ 123,6 milhões que acumula equivalem a 2,7 vezes do que entrou no caixa do tucano Aécio Neves e a 5 vezes o valor coletado pelo PSB de Eduardo Campos e, depois, Marina Silva.
Um dado à primeira vista inexplicável é a peculiar evolução das doações à presidente. Na primeira prestação de contas divulgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no começo de agosto, referente aos 30 dias iniciais da temporada eleitoral, ela havia amealhado parcos R$ 6,2 milhões - ou R$ 700 mil a menos do que no mesmo período de 2010, graças, então, à força do seu patrono Lula. Os números deste agosto deixaram o PT em oitavo e último lugar no rol dos partidos que informaram doações recebidas no mês anterior. De lá para cá, no entanto, a campanha dilmista engordou uma fábula: R$ 117,4 milhões, ou 1.120%. Não seriam as pesquisas o motivo dessa disparada.
O sistema, de qualquer forma, parece estar com os dias contados. Seis ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já votaram ou anunciaram que votarão pelo fim das doações de empresas, na ação movida nesse sentido pela OAB. O julgamento está suspenso desde abril, quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo. Cedo ou tarde, porém, ele devolverá os autos - e quem sabe já nas eleições municipais de 2016 a anomalia terá sido erradicada.
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