Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 13, 2011

Um congresso no armário Fernando Gabeira

O Estado de S. Paulo - 13/05/2011

Pensando nos 60 mil casais gays no Brasil e nos milhares de outros que
se formarão, o reconhecimento de seus direitos pelo Supremo Tribunal
Federal é motivo de alegria. No entanto, da perspectiva de quem lutou
pelo tema no Congresso Nacional, é desapontador ver o tema ser
decidido em outra esfera de poder.

Não é uma decepção calcada apenas na superposição de um tribunal a uma
assembleia de representantes eleitos pelo voto popular. Ela se
alimenta também da certeza de que a maioria dos parlamentares
brasileiros pensa como os ministros que julgaram o tema, mas não houve
coragem para agendar a matéria e votá-la dentro dos ritos
democráticos.

A primeira e mais simples explicação é esta: os deputados não querem
criar problemas com as religiões. Mas, se avançamos um pouco na
análise, vamos constatar que a resposta é incompleta. Um tema que
também desagrada às religiões, a legalização do bingo, não tem a mesma
dificuldade de chegar à agenda. Ao contrário, é preciso sempre uma
forte aliança do governo com alguns dos seus adversários na oposição
para evitar que seja aprovada.

Uma segunda tentativa de explicar: os deputados não querem conflito
com a Igreja em ano eleitoral. Mas a incrível capacidade de
sobrevivência do projeto dos bingos indica o contrário: seus
defensores não só enfrentam a Igreja, como preferem fazê-lo em ano
eleitoral.

A diferença essencial não está, portanto, no enfrentamento com a
Igreja nem na proximidade de eleições. Está na natureza da questão:
uma é puramente ideológica; a outra representa, potencialmente, ajuda
financeira às campanhas.

A transferência de poder de assembleias eleitas para tribunais de
Justiça é um fenômeno moderno e alguns críticos o denunciam nos EUA,
onde parte das políticas sociais está sendo decidida fora do
Congresso, pela Suprema Corte. O que chamamos aqui de judicialização
da política segue seu curso e representa a falência dos mecanismos
parlamentares de negociação e da capacidade de produzir algum tipo de
consenso.

Historicamente, também contribuiu para isso o crescimento das lutas
identitárias envolvendo minorias culturais. Algumas foram mais bem
aceitas do que outras. A sociedade parece aberta à ideia de estender a
todos os mesmos direitos e mais resistente a criar uma legislação que
funcione como proteção especial a grupos minoritários. É um tipo de
tensão que esteve sempre presente nos temas multiculturais. Garantir
uma política igualitária que contemple todos ou enfatizar as
diferenças?

Se essa suposição for verdadeira, o Congresso, na sua ótica
oportunista, fez um péssimo negócio ao se omitir no projeto de união
gay. Deixou para o Supremo a tarefa de tornar realidade a disposição
da sociedade brasileira de abrigar todos sob as mesmas leis. E guardou
para si a tarefa de votar o projeto que criminaliza a homofobia, que
deve encontrar mais resistência numa sociedade propensa a adotar
políticas universais.

Essa tensão deveria ser considerada pelo Congresso, que está diante de
um desafio contemporâneo. Ora será solicitado a universalizar
direitos, ora a reconhecer diferenças, como já o foi na Lei Maria da
Penha e o será no caso de cotas para estudantes negros nas
universidades. No caso dessas cotas, há quem prefira políticas
universais que envolvam todos os pobres. E há quem considere essa
preferência universal como conservadora. Isso pode implicar uma visão
da sociedade como palco de uma multiplicidade de lutas isoladas, sem
denominador comum, sem vínculos entre os vários atores.

Mesmo sem ter respostas para todas essas questões, é fácil concluir
que o legalismo apolítico torna a democracia mais vulnerável. Perdida
a instância parlamentar, é mais fácil concentrar poder no controle do
Judiciário e da imprensa. Isso podemos constatar em outras
experiências em que a democracia está sendo posta à prova. Imprensa e
Judiciário são os alvos das perguntas 4 e 9 feitas na consulta popular
no Equador, no fim de semana. Felizmente, as que Rafael Correa tem
mais dificuldades de aprovar.

Com um Congresso no armário, perdido nas lutas por verbas e
empreguinhos, culturas minoritárias sempre acharão um lugar na
imprensa e no sistema judiciário para que suas demandas sejam
consideradas. Esse é um movimento moderno que põe em cena não mais o
cidadão abstrato, mas o indivíduo na busca da autenticidade, uma nova
categoria para se pensar a política.

O mesmo não acontece com os setores sociedade que dependem de
políticas universais produzidas num sistema que os deserdou. Os que
precisam de saneamento básico, por exemplo.

A decisão do Supremo, apesar da alegria com a correção de sua
sentença, coloca uma advertência sobre o futuro da democracia
brasileira. Foi para isso que tantos lutaram pelo fim da ditadura,
pelas eleições diretas? O declínio de um dos Poderes aparentemente
fortalece os outros. Assim como o ocaso da oposição, na superfície,
fortalece o governo.

No fundo, todos saem perdendo: a democracia não atua como o corpo
humano, que diante de uma perda se reorganiza para cumprir as funções
que órgão ausente deixou de satisfazer. Embora não pareça, a ausência
de uma oposição articulada enfraquece o governo. E a ausência do
Congresso em decisões importantes também enfraquece os Poderes que
ocupam seu espaço.

A vitória do movimento pela união gay é irreversível, assim como o foi
em diferentes países do mundo. Mas deixou um problema que ainda
estamos longe de superar.

Cobramos do Congresso sobriedade nos seus gastos. Denunciam-se os
desvios financeiros com alguma frequência, e isso é bom. Mas não basta
usar o dinheiro de forma correta. É preciso assumir a complexidade do
País, responder aos anseios, às vezes contraditórios, da sociedade.
Neste momento, olhamos para o Congresso e ele não está lá. Há um
imenso buraco na Praça dos Três Poderes.

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