O Estado de S. Paulo - 18/05/2011 |
A moderna sociedade brasileira é indevassável para um observador que não atente ou se recuse à perspectiva de estudá-la a partir das relações instituídas entre o seu direito e a sua política. O caso da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os direitos dos parceiros nas uniões homoafetivas, quando o vértice do Judiciário, numa decisão colegiada unânime, produziu lei nova com base na sua interpretação de textos constitucionais - isto é, por critérios hermenêuticos próprios à sua corporação, inacessíveis aos leigos -, consiste num exemplo, entre tantos, do estado de coisas reinante nas relações entre os Poderes republicanos. A decisão sobre matéria altamente sensível, até mesmo por suas óbvias ressonâncias religiosas, longe de ser recebida pela opinião pública e pelos principais partidos como uma manifestação patológica de nossas instituições republicanas, foi, bem ao contrário, saudada como a expressão, aliás, tardia, do justo. Na verdade, a reação da sociedade, especialmente dos seus círculos mais influentes, significou um reconhecimento de que as regras vigentes do Direito estavam aquém dos costumes já socialmente vigentes, razão por que a origem da síndrome da patologia deveria ser buscada no legislador, que as manteve - para se continuar flertando com a linguagem da sociologia de Durkheim - em antagonismo com práticas sociais emergentes. Não há outra tradução possível: o chamado terceiro Poder, sempre acusado de deter um insanável déficit democrático por não ser ungido pelo voto, diante de um quadro de injustiça, provocado pela discriminação exercida contra cidadãos por motivo de sua orientação sexual, se fez, à falta de um, de legislador substitutivo. O quadro ainda se torna mais intricado quando são identificados os autores das ações agora levadas a julgamento pelo STF, a direta de inconstitucionalidade (Adin) n.º 4.277 e a da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n.º 132, reunidas pela identidade do objeto de que tratavam, a primeira ajuizada pelo procurador-geral da República, a segunda por um personagem institucional do Poder Executivo, o governador do Estado do Rio de Janeiro, membro de um importante partido da coalizão governamental. Impõe-se daí a conclusão de que o Legislativo foi ultrapassado por uma intervenção que combinou, obviamente de modo não concertado, ações dos demais Poderes, o Executivo e o Judiciário. Vale dizer, no caso concreto do reconhecimento legal da união estável para casais do mesmo sexo está manifesta a intenção do Executivo de um importante Estado da Federação de recorrer à judicialização da política, conferindo, paradoxalmente, legitimidade a esse caminho, que surge, na verdade, de práticas institucionais das democracias ocidentais no segundo pós-guerra a fim de conter a vontade majoritária e de abrir passagem para direitos que ela não patrocinava ou embargava. Deve igualmente ser registrado que tal decisão judicial foi acolhida por importantes autoridades do governo federal que se posicionaram publicamente de modo favorável a ela. Cabe, agora, ao Legislativo, retardatário no atendimento de demandas procedentes da vida social, declaradas como justas pela via judicial, criar a legislação que conceda eficácia e plena inteligibilidade à inovação. O episódio, apesar do seu desenlace feliz, que veio a reparar uma situação de injustiça, retrata bem o crescente desprestígio da atividade parlamentar - fato anotado, em tom de lamento, por alguns ministros da Suprema Corte no dia do julgamento. A estrutura atual do sistema político não é, de modo algum, indiferente a esse processo, com a ultrapassagem do Legislativo pelo Executivo com seu uso abusivo das medidas provisórias sem que se satisfaça, em grande parte dos casos, a cláusula de emergência prevista na Constituição. A tomada de decisões, nas matérias públicas relevantes para os rumos da sociedade, subtrai-se, assim, da formação prévia da opinião tanto no âmbito parlamentar quanto no da sociedade civil, revestindo-se de um caráter decisionista a ser chancelado ex post pela maioria parlamentar. Por sua vez, a maioria parlamentar se faz garantir pelas características peculiares ao nosso presidencialismo de coalizão, que articula o vértice do Executivo, sob a mediação de parlamentares governistas que desfrutam acesso aos recursos públicos e influência entre os agentes responsáveis pelas políticas públicas, às bases locais que garantem a sua reprodução política. Nesse circuito perverso, reforça-se a dissociação entre representantes e representados, e se reduz a cidadania a uma massa de clientes. A opção paroxística pela governabilidade - marca do nosso presidencialismo de coalizão, que não se estabelece em torno de afinidades programáticas entre os partidos - cancela a antinomia entre moderno e atraso na política brasileira, induzindo a que, no Poder Legislativo, a agenda do moderno ceda a interesses e a concepções do mundo retardatários. Nessa construção, o moderno é apanágio do Executivo, deliberado no interior dos seus aparelhos, dado a público por modelagem iliberal decisionista, cabendo aos procedimentos do presidencialismo de coalizão, quando for institucionalmente necessário, traduzi-lo à linguagem da democracia representativa, compensando-se os setores eventualmente contrariados. A equação se fecha: justifica-se o decisionismo pelo baixo nível da cultura cívica da população; o resultado final da operação não pode deixar de confirmar o diagnóstico negativo, uma vez que, por natureza, ela inibe a autonomia dos cidadãos sobre os quais atua. O estreitamento da esfera pública, com o Legislativo desancorado de um processo de formação da opinião na sociedade civil, pavimenta, por sua vez, a via por onde avança, por meio de provocação da sociedade ou até de setores governamentais, a judicialização da política, que, nos níveis em que atualmente a praticamos, arrisca se tornar mais um caso de jabuticaba, uma fruta que somente medra aqui. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, maio 18, 2011
A judicialização da política e a política Luiz Werneck Vianna
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